CENA 1
Na rampa do metrô, Thiago está pensativo, olhando para o céu e para as árvores que o rodeiam.
-Mais um dia pra lutar e vencer no mundo das Letras. Por que foi que eu escolhi isso mesmo, hein?
Um metrô para Camaragibe se aproxima.
-Misericórdia- começa a correr desenfreadamente- Dá licença, dá licença, dá licença!- pede passagem para os transeuntes, ao som dos primeiros acordes de "Sempre assim", do Jota Quest. Coloca o Vem na catraca e corre antes que a porta do veículo se feche.
Dividindo a tela, está Matheus, recém-saído de um Jardim São Paulo (Afogados) e descendo na calcada do colégio da concorrência. O adolescente encontra algumas amigas e vai junto com elas até a sua sala de aula, quando de repente...
-Vaca!- aparece o amigo Jeferson, batendo nele com um livro da série "O Senhor dos Anéis".
-Vadia!- retruca o co-apresentador de web show.
Thiago desce do metrô na estação vazia do Barro... Eu havia dito "vazia"!
Pronto! Apareceu um monte de figurantes na plataforma, sufocando o universitário ate não poderem mais. Do outro lado, agora dividindo a tela em três partes, chega Manjericão. Não, você não leu errado. A alcunha do personagem é Manjericão mesmo, mas depois o filme explica tudo. O professor entra num metrô cheio de pedintes e vendedores de "Sem Parar" e chocolates da Arcor, até se deparar com uma velhinha mística que levantou a blusa e deixou seu enrugado umbigo à mostra. Detalhe: envolto numa barriga mais saliente que os adolescentes que veem "MTV Sem Vergonha".
-Bom dia para todos. Me desculpem incomodar a paz espiritual de vocês com a minha voz, mas eu amamentei meus vinte e nove filhos...
-Vinte e nove? Mas é uma mãe ou é uma música do Legião Urbana? Deu a mulesta dos cachorros!
- ...Como eu ia dizendo... Eu me descuidei da minha forma física de mendiga e estou pedindo uma colaboração. Aceito ticket refeição, cartão do American Express, depósito na poupança da Caixa... Qualquer ajuda pra fazer minha lipoaspiração e comprar leite Camponesa para os meus dezessete rebentos menores de idade. Qualquer ajuda que vocês puderem dar, será muito bem-vinda.
-E eu que pensava que não havia nada pior do que pegar o Circular Barro/ Tancredo Neves. É a gota serena!
Thiago esta pronto para ir à universidade e embarca num ônibus com outras cento e trinta e oito pessoas (num transporte coletivo que só abarca setenta e oito, quarenta e duas dessas em pé). Uma jovem estudante, vestida de verde e branco, abraça o rapaz pelas costas.
-Você está me bulinando?
-Meu filho, tudo aqui é na base do assédio! Olha o espaço que a gente tem aqui dentro!
-Nunca me senti tão pegável quanto hoje...
CENA 2
Numa das salas de aula, Manjericão dá sua simples explicação sobre figuras de linguagem.
-E então, galera? Vamos fazer aquela revisão pra prova. Qual é o nome daquela figura de linguagem que dá permissão pra gente criar palavras novas?
-Neologismo!- gritam os alunos do sexto ano do ensino fundamental.
-Boa, turma! É só se lembrar do "neo", que é o radical para tudo que é novo. Agora eu quero ver quem é que vai se lembrar do exemplo de neologismo que eu dei na aula passada...
-Eu! Eu! Eu! Eu sei, professor!- os alunos, desesperados, levantam suas mãos.
-Vamos fazer assim, então: todo mundo fica de pé e canta comigo o refrão do neologismo. Um, dois, três e...
-Tchê, tchererê, tchê, tchê, tchererê, tchê, tchê, tchererê, tchê, tchê, tchererê, tchê, tchê, tchê, tchê, tchê, tchê! Gusttavo Lima e você!
-Sobre o exemplo que eu dei de estrangeirismo?
-Arigatô! Sayonara! Arigatô! Sayonara!
-Exatamente. Na prova de quarta-feira, vai cair também aquela figura de linguagem que tem a ver com o exagero. Qual é?
-Hipérbole!
-Manda pra mim um exemplo de hipérbole...
-Vou caçar mais um milhão de vagalumes por aí pra te ver sorrir, eu posso colorir o céu de outra cor...
-Nesse exemplo, eu sabia que você iam se amarrar. Quanto à metáfora...
-Agora pare! Pegue no bumbum! Agora desce! Pegue no “compasso”!
-Ninguém pega em nada, por favor! Vai cair também as funções da linguagem, principalmente a apelativa, que sempre quer convencer as pessoas. Um dos modelos dessa função é o Grupo Molejo. A gente vai revisar porque todo mundo vai passar nessa prova, ou eu não me chamo Leonardo Mantoanelli Jensen Ribeiro Castro Oliveira. Ou melhor: vocês não me chamam de Leonardo...
-Manjericão!
-Atenção, atenção, todo mundo no Samba Rock do Molejão pra aprender a função apelativa.
E no meio dos tchubidabidus da vida, eles entoam a famosa canção e aprendem ao se divertirem.
-Ei, vamos nessa, vem no miudinho. Vem no sapatinho. Não tenha pressa.
-Não tenha pressa- grita Manjericão, assustando os alunos das outras salas, inclusive Matheus, que caminha na hora do intervalo lendo um mangá, enquanto suas amigas leem outras publicações: Vic lê uma revista que fala sobre a série “Sobrenatural” e Julianne lê “Chapeuzinho vermelho”. O básico da educação infantil.
-Sou doida pra ter uma aula com esse tal de Manjericão... – sonha Vic.
-Olha, eu sei que ele é divertido, mas eu sou mais eu- Matheus se gaba.
-Muito até. Essas brigas com Jeferson são o poder. Vocês já acordam fazendo uma lista do que vão se xingar- lembra-se Julianne.
-Erros de rota, fazer o quê?
-Vem cá, que barulho é esse?- chega o diretor da escola, um Skinner de cabelo tingido.
-É na turma do Manjericão- responde Jeferson, que chega ao pátio.
-De quem?
-Manjericão, pô! O professor Leonardo, anta!
-Como é a estória, rapaz?
-Anta: adorável e notável técnico de administração. “Sigla grafêmica” é o assunto preferido dos alunos de Manjericão.
-Realmente, dá margem pra muita coisa... – observa Matheus.
-Manjericão que me aguarde... Quero dizer... Eu vou ter uma conversinha com o Leonardo... – promete o diretor.
CENA 3
Thiago chega ao prédio onde terá uma aula de disciplina eletiva. Mas quando chega ao mini-auditório, encontra a seguinte placa: “Por motivos de força pluvial, as aulas no Centro de Artes e Comunicação foram canceladas. A Defesa Civil recomenda que os alunos da Universidade não saiam de casa, a fim de evitar transtornos com as ruas da Várzea que certamente serão alagadas. Atenciosamente, a Reitoria.”.
-Eu só posso estar vendendo Cogumelo do Sol no metrô pra merecer um castigo desses. Bom, pelo menos vejo à tarde a naftalina do SBT!
CENA 4
Manjericão entra na sala do diretor.
-O senhor queria falar comigo?
-Sente-se, Manjericão... Digo, Leonardo.
-Ah, fica tranquilo. Já virou meu codinome. Estou praticamente indo ao cartório acrescentar “Manjericão” na minha certidão de nascimento.
-Temos que conversar sobre um assunto muito sério... Leonardo.
-Já vi que não é coisa boa.
-Como sabe?
-Uma pessoa que me chama duas vezes de “Leonardo” em menos de trinta segundos quer me dar uma bronca, só pode.
-Quando você foi contratado, sabia quais eram as diretrizes e os princípios que a Escola Municipal Correta Decisão seguia. E apesar disso, vejo que você não se esforça o mínimo para fazer o que te é exigido.
-Meu compromisso não é só com a escola. É com a educação. E o senhor vai me desculpar, mas acho que o segundo é mais importante. Eu quero formar pessoas que estejam interessadas em aprender, onde quer que elas se encontrem, aqui ou em outro lugar.
-Tente me entender. O seu estilo é um pouco... Descolado para uma escola tradicional. Leonardo, você acredita mesmo que se encaixa na proposta da escola?
-Eu não preciso me encaixar em proposta nenhuma. Eu sou a proposta. Todo professor é a proposta da escola pra melhorar o futuro de quem quiser ter seu futuro melhorado. Sinceramente, eu pensei que o senhor tivesse sacado isso desde que me contratou.
-Vamos por fatos, e não por intenções: como o Samba Rock do Molejão pode mudar o futuro dos alunos do sexto ano?
-Senhor diretor, é apenas uma forma de trazer os estudantes para aquilo que eu quero: que eles achem alguma conexão com o que eu tento ensinar. E o que eu ensino tem, sim, a ver com o que a escola quer: um cara que dê tudo bem mastigadinho.
-Já vi que não vamos conseguir chegar a um acordo.
-Adoro acordos, desde que eles não procurem mudar o que eu sou.
-Percebe que o seu “eu” será um desempregado?
-Percebo, e assumo o risco.
-Tem algum “plano B” em mente, não tem?
-No momento... – suspira- Nenhum.
O celular toca. É Zaira, a namorada do professor.
-Meu amor, tô chegando em casa já. Gastei o teu salário do mês passado. Bom, eu precisava comprar umas coisinhas pessoais pra colocar no apartamento.
-Tudo bem, Zaira.
-Que tom de voz é esse? O que aconteceu, Manjericão?
-Quando eu chegar, a gente conversa. Um beijo.
-Beijo- desliga, desconfiada.
-Eu vou pegar alguns livros na sala dos professores- levanta-se da cadeira, deixando sua carteira de trabalho cair.
-Sinto muito. De verdade.
CENA 5
Toca o sinal. Matheus, Vic, Julianne e Jeferson estão entrando na sala, quando Thiago chega, cutucando o primeiro.
-E então? Quais são as novidades desse fim de mundo?
-Thiago- Matheus e as meninas abraçam o universitário, enquanto Jeferson lhe dá uma leve tapa e Lucas, outro garoto da turma, arranca-lhe o boné.
-Muitas novidades. Pra começar, o colégio foi pintado de novo e está a cara do Cotel. Mas tudo isso será explicado na mais inédita edição de um grande sucesso jornalístico: o “Furo Decisão”.
-Viram só? O pequeno marginal, mais uma vez, tirou passaporte para viajar na maionese.
-Quem sabe a gente consegue entrevistar alguém importante?
-Uma pessoa importante no “Furo Decisão” é a mesma coisa que juízo na sua cabeça: nunca existiu a possibilidade.
-Isso é!
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