-Eu aproveitei que o obstetra ia me dar alta hoje e saí do
hospital pra revelar uma foto. Trouxe pra você- Lívia entrega a Danilo a
imagem.
-Quem é essa criança?
-São suas. A foto e o bebê.
-Por que você... Por que você trouxe isso pra mim?
-Eu não sei quanto tempo você vai ficar aqui, o julgamento
ainda tá longe, mas eu trouxe isso pra que todos os dias você olhe pra essa
foto e se lembre do rosto dele.
-Tá esperando o quê com isso? Que eu me comova?
-Não. Essa vai ser a minha primeira e última visita.
Danilo rasga a foto ao meio e joga no chão.
-Sinceramente, não devia nem ter vindo.
-Vim pra te dar isso. Vai ser a única coisa que vai ter de
mim.
-Como você se acha importante...
-Você deve ser bem mais. Ainda mais na cadeia, onde é igual
a todo mundo.
-Eu não vou ficar aqui pra sempre, se é o que te interessa
saber.
-Danilo, a única pessoa que realmente te ama pode não estar
mais viva no dia em que você sair daqui.
-Claro... Todos sentem pena do grande Dr. Rafael.
-Você não sente porque não ama seu pai. Não ama ninguém. Mas
pode aprender.
-Infelizmente, não tô disponível pra isso.
-Tudo bem. Eu sei que quando você sair da minha frente, o
rosto do meu filho vai ser a única coisa que aparece na tua cabeça.
-Quanta pretensão, Lívia...
-Tem uma coisa que eu vou priorizar daqui pra frente.
-Me trancar numa cela e jogar a chave fora?
-Cuidar do meu filho. Dar a ele o amor que o pai não vai
poder dar.
-Nem quero! Eu só quero ver como você vai esconder o jeito
que ele foi feito.
-Quem disse que eu vou esconder? Só que antes, eu vou
transformar o meu filho num ser humano. Nada que me lembre você. Quando você
encarar, de peito aberto, que errou e que quer continuar errando, vai doer mais
do que agora. Porque assim você vai descobrir que é capaz de amar. Ou de
aprender. Se você soubesse o quanto ter esse filho me fez a mulher mais feliz
no mundo, com a vida me dizendo que eu errei em querer me desfazer dele... Você
não quer meu perdão, não pede desculpas... Mas eu te perdoo. E torço, do fundo
do meu coração, que um dia você consiga fazer mais de uma pessoa feliz. Além de
você mesmo- levanta-se e vai embora da penitenciária. O carcereiro volta para
levá-lo à cela.
-Espera...
-O que é?
-Pega isso pra mim, por favor?
O carcereiro apanha e Danilo volta, cabisbaixo e calado,
para expiar todos os seus delitos.
/////
Patrícia volta do escritório do advogado e encontra Rafael sentado
no sofá, ao lado de três malas.
-Eu vim agora do advogado. Infelizmente, não há previsão
para o julgamento de Danilo... Que malas são essas?
-Patrícia, vamos falar francamente, como temos feito até
agora... Ao menos, eu tenho feito dessa forma. Há meses que eu estou com isso
engasgado dentro de mim, que eu deixei passar por causa dos problemas do Danilo,
mas hoje você vai me ouvir.
-O que você quer tanto dizer?
-Que esse é o seu último minuto aqui dentro dessa casa.
-Você está brincando comigo, não é?
-Não. Não estou. No dia em que o Danilo deu entrada no
hospital, quando houve aquele acidente horrível, eu descobri o que você
planejava... Você queria fazer do meu filho o meu principal herdeiro.
-E qual é o problema? É só a ordem natural das coisas. Ou
vai me dizer que não pretendia fazer isso quando morresse? Claro que não.
Afinal, seu único intento é prejudicar o Danilo, moral e financeiramente.
-Quer dizer que eu tinha que ser conivente com as barbaridades
que ele fez? Como é que você quer que eu seja exatamente como você, Patrícia?
-Ora, e vai me dizer que você pensava em contemplar o Danilo
com seu dinheiro?
-Não, porque ele já deu provas suficientes de que isso seria
um prêmio que ele não merece!
-Pois bem: foi isso que eu tentei fazer, sim. Você escondeu
de todos nós que está à beira da morte. Queria deixar seu filho com uma mão na
frente e outra atrás?
-Ele ou você? Porque ele é tão ligado a você que certamente
não te deixaria desamparada, não é?
-Exatamente!
-Pois tenho duas verdades pra te dizer, minha futura
ex-esposa: a primeira é que você conseguiu transformar Danilo em alguém tão
egoísta quanto você. Por isso, seria pouco provável que ele te fizesse
desfrutar dessa vida boa que você tem até hoje. Ou melhor, tinha.
-Danilo jamais me decepcionaria dessa forma.
-Ah, claro. Ele só precisa estuprar, ameaçar e matar as
outras pessoas. Mas se ele não fizer nada contra você, é a melhor pessoa do
mundo. Coloca na sua cabeça que seu filho precisa de limite, e não do meu
testamento que, aliás, vai demorar muito tempo pra sofrer qualquer tipo de
alteração.
-O que quer dizer com “muito tempo”?
-Quando você me perguntou há quanto tempo eu não fazia um check-up
e eu falei que não fazia ideia, era verdade.
-Isso é mentira! Mentira porque eu vi o exame na sua mesa! E
nele, você estava em estágio terminal.
-Porque encontrou o nome de “Rafael Duarte” no envelope?
Aquele exame eu pedi ao laboratório pessoalmente. Era de um paciente meu, que
faleceu há algumas semanas. Só que o laboratório viu que tínhamos o mesmo nome
e, pensando que eu tinha feito o exame, mandou pro meu endereço pessoal. Ou
acha que não veio meu último sobrenome escrito, “Tosak”, para não preocupar
minha família? Não, Patrícia. Ao contrário de você e do meu filho, eu sou um
homem transparente, e não esconderia algo tão grave assim.
-Você não pode estar falando a verdade...
-Fique tranquila. Você será apenas uma mulher divorciada
daqui pra frente, e não viúva- Patrícia olha para o médico com ódio- O que foi?
Pensei que estava esperando uma reação diferente da minha eterna passividade.
Quando você jogou na minha cara que eu era um péssimo pai, eu acreditei, dei
razão a você. Mas depois... O Danilo é o resultado da sua influência, do seu
veneno, da sua ambição desmedida. Mas eu vou lutar, até o último dia da minha
vida, pra colocar o meu filho no melhor caminho. E você pode espernear, gritar,
ameaçar, dizer que vai me tirar a metade dos meus bens, exigir a casa, o carro,
o dinheiro, arrancar tudo o que eu tenho, mas nada vai me tirar a satisfação de
me ver livre da cobra com a qual tenho dormido durante vinte e cinco anos.
-Você ainda vai se arrepender do que está fazendo comigo,
Rafael. Eu juro.
-Eu já me arrependi. Há tempos- Rafael coloca as malas nas
mãos de Patrícia e, em seguida, abre a porta para que ela saia de sua casa.
/////
Em um quarto apertado, instala-se a pequena banheira que
recebe o bebê de Lívia. Mãe e avó se emocionam ao passar as mãos molhadas no
rosto daquela criança que, com pouquíssimo tempo de vida, esboça um sorriso.
-A gente vai ter que ir ao cartório amanhã, não é?
-É. Eu vou arranjar umas testemunhas, e a senhora fica com
ele aqui.
-Vai querer mesmo colocar “pai desconhecido” na certidão
dele, Lívia?
-Quero, sim. Tudo bem que um dia eu vou ter que contar a
verdade pra ele, mas é melhor ele não ter ligação nenhuma com Danilo.
-Sabe que o Dr. Rafael está todo orgulhoso desse neto? Pode
ser que ele reclame, minha filha.
-Já falei com ele sobre isso. Ele não se opôs, disse que era
um direito meu. Mas pediu pra sempre acompanhar a educação do bebê, e quer que
ele o chame de “avô”. Achei justo, sabe?
-Claro. É um dos homens mais bacanas que eu já vi na vida.
Pena ter errado tanto quando construiu aquela família.
-Nunca é tarde, Mãe. Nem pra ele corrigir o filho, nem pra
construir outra família. Já andei reparando que ele te olha de um jeito...
-Que é isso, menina? Vê coisa onde não tem.
-Mas se ele te desse mole, Dona Helô...
-Tudo bem, o doutor é, sim, um coroa bonito- ambas riem- Mas
vamos parar com essa liberdade. Me diz uma coisa: qual o nome que você vai
botar no menino?
-Posso fazer uma surpresa, um suspense?
-Ué, mas por quê?
-Queria fazer uma homenagem a alguém especial. Alguém que me
ajudou muito quando aconteceu aquilo tudo...
-Então, está certo. Olha, Lívia, ainda tem um pouquinho de
dinheiro no pote em cima da geladeira. Pega pra ir até a farmácia e compra um
pacote novo de fralda pra ele.
-Vou assim que terminar de dar o banho nele... Não é, meu
amor?- Lívia beija a cabeça do garoto- Eu vou te fazer muito feliz, assim como
você tá me fazendo, viu?
/////
Retornando da farmácia com o referido pacote de fraldas,
Lívia reencontra um amigo que fez nos últimos tempos. Ele caminha pisando em
cada quadrado da calçada, reformada há menos de um ano. Toma cuidado para não
pisar nas linhas pretas que contornam os desenhos. A mãe de primeira viagem faz
o mesmo, caminhando na mesma direção que o rapaz, de cabeça baixa para não
perder o ritmo.
Ao levantar o rosto, Juliano se emociona.
-Pode ficar tranquilo. Não é nenhuma voz saindo da sua cabeça,
não. Sou eu mesma. De carne e osso.
-Que bom que você tá bem.
-Eu quero te levar lá em casa, porque eu preciso te
apresentar uma pessoa- Lívia segura na mão de Juliano e o conduz até a sua
residência.
Entrando lá, ele encontra Heloísa paparicando o neto, que
está cochilando.
-Posso pegar ele?
-Claro. Segura- ao dizer isso, Lívia vê o rapaz olhando
fixamente para a criança, com alegria- Sabe qual o nome que eu quero dar pra
ele?
-Meu nome.
-Como é que você sabe?
-Eu ainda escuto seu coração, Lívia. Escuto o coração de
todo mundo que fica perto de mim. Por isso, eu contei tudo o que eu ouvia.
Porque sabia que você merecia ser feliz.
-Obrigada. Obrigada por tudo. Posso te dar um abraço,
Juliano?
-Sempre.
ALGUNS DIAS DEPOIS...
Chegou a hora do
retorno de Homero e Toni à capital pernambucana. São treze horas, e o jovem vem
ouvindo uma das músicas que tocou para os cristãos que estavam no Japão.
-“Se o sol se pôr e a noite chegar, Tu és
quem me guia. Se a tempestade me alcançar, Tu és meu abrigo. Se o mar me
submergir, a Tua mão me traz à tona pra respirar, me faz andar sobre as águas.
Tu és o Deus da minha salvação, És o meu dono, minha paixão, minha canção e o
meu louvor”...
-Você não tira esse hino da cabeça, rapaz.
-Foi o que mais tocou os irmãos lá, Pastor. Foi aí que eu vi
tanta gente à procura de Deus, esperando um sinal Dele que dissesse: “Eu tô te
vendo, Eu tô escutando tuas orações”... Lindo demais. Uma bênção.
-E hoje, você vai receber outra: reencontrar a sua família. Olha
eles lá.
Juliano, ao avistar o irmão desembarcando no aeroporto, corre
para abraçá-lo, como uma criança.
-E aí, meu garoto?
-Tem duas pessoas que vieram te conhecer.
-Quem, Juliano?
-Dessa vez, vai ser um encontro sem risco nenhum- Lívia, com
o bebê no braço, deixa Toni sem palavras.
-Meu Deus do céu...
-Não disse que Ele
ia te recompensar com bênçãos sem medida, rapaz?- relembra Homero.
-Espera, que eu
quero falar com meu filho também- Iolanda “interrompe” o encontro e abraça o
filho- Meu amor, que saudade! Não via a hora de você chegar.
-Graças a Deus você
está de volta, Toni. Como é que foi lá?
-Calma, Painho.
Deixa eu chegar em casa, que eu te conto tudo. Mas eu... – volta a olhar para
Lívia... Você não sabe o quanto eu tô feliz vendo você assim, de pé, com saúde.
-Eu devo muito a
você e ao teu irmão por isso.
-Agradeça a Deus.
Tenho certeza de que Ele ama muito você.
NO SÁBADO SEGUINTE...
É dia de folga para Rafael.
Apesar de todos os contratempos, o médico decide fazer um programa de família.
Leva o neto para a praia. Protegendo-o do sol, ele brinca ao lado de Juliano,
que também não deixa o recém-nascido sozinho. De longe, Lívia e Toni os
observam e conversam.
-Quem diria que meu
filho ia ter esse avô tão babão, hein?
-E o tio postiço, então?
Nem se fala.
-Mas, se depender de
mim, Juliano não vai só ocupar o posto de tio postiço. Quem sabe ele não vira o
tio de verdade?
-Como assim?
-Tem razão, acho que
não fui muito clara. Deixa eu te mostrar o que eu quero dizer.
O DJ é tomado por um
beijo apaixonado da estudante.
-Se isso não foi ser
clara...
-Gostou?
-Amei. Mas eu acho
melhor a gente pensar antes de partir pra um lance mais sério.
-Por quê? Não vai me
dizer que na sua igreja as pessoas seguem o “Eu escolhi esperar”?
-Você já esperou
tanto tempo pra ser feliz. O que custa esperar mais um pouco? E depois, quanto
mais tempo, mais gostoso vai ser o sabor da felicidade.
-Tudo bem. Mas eu
sou insistente.
-Juliano que o diga-
ambos riem, mas param ao ver o autista escrevendo a palavra “fim” na areia da
praia.
-Por que ele
escreveu isso?
-Não sei. Mas eu tô
adorando esse capítulo. E vou torcer pra que quando ele acabar, comece outro
melhor ainda.
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