Era
dezembro de 1997. Nós havíamos vivido aquela efervescência do Natal, onde tudo
parecia estar às mil maravilhas. A mesa farta, os presentes, a expectativa que
toda criança tem sobre o que vai ganhar... Minha mãe, de tanto que eu enchi o
saco, trouxe o que tanto pedia: um CD de uma novela infantil, que tinha um
monte de música tocando na rádio direto. Botei aquilo pra ouvir o dia todo,
devo ter torturado os vizinhos de tanto que repetia as músicas no volume mais
alto. Insistia, quando o disco acabava, pra que ela colocasse aquilo de novo.
Foi o vinte e cinco do último mês inteiro. O dia seguinte também, eu não queria
parar...
Tinha
três anos, era o primeiro ano que eu me habituava à escola. Meu pai que me
levava. Fui gostando de ir, mas não tinha nem comparação quando chegaram as
férias. Minha mãe reclamava de tanto que eu pedia pra pôr aquele disco- tinha
que amamentar o meu irmão, de seis meses. Tinha hora que ela colocava no som
pra tocar, mas bem baixo pra não acordar. Mexia no volume e aumentava. Ficava
louca, tomada de raiva. Já era a noite de sexta quando eu tentei ligar o som.
Já era a quarta vez, eu acho, que queria escutar naquele dia. Puxou a tomada do
som, com força. Desta vez, não reclamou, simplesmente me olhou com raiva. Não
falamos nada, já tinha entendido o recado.
Não
sabia que aquela seria a última vez que a veria. Ou a que, por muito tempo,
pensei ter sido a última vez. Ninguém tinha que acordar cedo, era sábado, e eu
acabei sendo a primeira, lá pelas nove da manhã... Liguei a televisão da sala,
botei no volume dezessete. Ignorei que todos estavam dormindo... Bem, quase
todos... Fui a primeira a notar que Vilma tinha sumido- e como não perceber, se
esperava que ela fosse gritar assim que ouvisse o som alto? Passou uma meia
hora, até que eu entrei no quarto do meu pai. Saiu sem deixar rastro, deixando-o
dormir bem tranquilo. Sacudi perguntando pela minha mãe. Inocente, acreditava que
ela tinha saído, ido à feira pra comprar alguma coisa. Tentou ao máximo não me
preocupar. Só que assim que ele levantou da cama, caiu um bilhete do seu lado.
Apanhou, leu e a única coisa que conseguiu me dizer, antes de se trancar no
quarto, foi:
-Vai
tomar café.
Demorou
muito pra chegar à cozinha, com a mesa que minha mãe já tinha deixado pronta.
De lá, eu escutava o choro dele. Fiquei dias sem me alimentar direito. Bento,
que só se acalmava com ela, chorava mais do que o normal... Cada vez que ele
gritava, parecia a confirmação da coragem que a Vilma teve pra nos deixar.
Aquele dia foi a primeira vez, em anos, que vi a mesa posta sem ninguém além de
mim. A única frase que ecoava na minha cabeca era a do meu pai mandando que eu
tomasse café. Nunca mais cheguei perto de uma xícara que fosse.
Por
mais que a gente fosse crescendo e insistindo pra saber o que houve naquele
sábado, meu pai pouco dava explicações. Talvez a primeira tentativa, quatro
anos depois, tenha sido quando ele apresentou a namorada nova, Celine. Sabia
que, em alguma hora, ele ia ter que tocar no assunto. Ficou limitado a dizer
que eles se separaram, ela disse que ia embora de casa pra fazer uma viagem,
sem dizer quando voltava.
O
tempo se encarregou de fazer com que Bento e eu, aos poucos, não tocássemos
nisso. Ajudou pra isso o fato de Celine tentar ser agradável o tempo todo.
Começamos a comemorar aniversários e datas importantes cientes da falta que ela
fazia, sem comentar. O meu pai até poderia não ter mais amor, mas guardou uma
mágoa imensa. Como é dona de uma rede de restaurantes, Celine sempre fazia
questão de deixar a mesa farta na ceia de natal. Comemorávamos pra não deixar
nosso pai desapontado, mas sabíamos que não tinha mais o mesmo sentido... Dia
das mães, então... Parecia Finados. Celine andava pelos cantos, ate pensei que era
por nunca ter tido filhos. Também por isso, mas era porque os filhos do marido
não a viam como referência feminina dentro de casa.
Celine
já imaginava que 2011 traria um natal igual aos outros, com uma mesa cheia e
nossas mentes esvaziadas, sem ânimo, procurando vida sem encontrar. Mesmo
assim, não esmoreceu. Preparou tudo com o mesmo apego de sempre. Chamou alguns
vizinhos, mandou trazer alguns parentes que moravam no interior... Fez o
impossível pra não deixar a ceia com a cara das outras. Independente de sua
vontade, se teve uma coisa que o 24 de dezembro de 2011 soube ser foi ser
diferente...
Minha
madrasta propôs um brinde.
-Ao
meu marido, que me deu de presente essa família maravilhosa... A Deus, que não
deixou nada faltar nesse ano. A todos que estão aqui, cheios de planos, vendo
suas conquistas acontecerem. Que esse natal e, especialmente, o ano que vai
começar, nos brindem com muita saúde... Saúde e felicidade. A nós!
-A
nós- responde o meu pai, junto a todos os convidados de Celine, admirado como ela
se esforçava pra agradar uma família que não queria ser sua.
Não
demorou nada pra que aquele natal fosse também impactante: Bento foi ficando
pálido e acabou desmaiando durante o tilintar dos copos... Só foi acordar no
hospital, quando estávamos esperando a bateria de exames terminar. O médico veio
até a gente.
-Com
licença... Quem é responsável pelo Bento?
-Eu
sou pai dele, Doutor. Bento acordou?
-Acordou
agora há pouco, quando já estava sendo examinado pelo cardiologista.
-Mas
por que tiveram que chamar um cardiologista?- Celine se mostrou preocupada.
-O
doutor Ronaldo foi quem conseguiu esclarecer o que o menino tinha. Bem, é que a
gente tinha algumas suspeitas, mas ele me confirmou.
-Pelo
amor de Deus, Doutor. Diga o que meu filho teve.
-Bom,
Seu Jayme, não foi um simples mal estar que trouxe seu filho até aqui.
-Eu
sabia. É anemia, não é? Bem que eu falei pra Bento: "se alimenta direito,
menino. Almoça antes de sair pra fazer a prova direito"... E ele teimando
que não sentia fome.
-A
falta de apetite é apenas um dos sintomas, Seu Jayme. Tem percebido o seu filho
pálido ultimamente?
-Claro.
Por causa disso que eu lhe falei, a anemia.
-Não
se trata de anemia.
-Leucemia?-
perguntou, depois de um tempo receoso sobre o que poderia ter tido o meu irmão.
-Não,
senhor. O que Bento tem é uma cardiomiopatia hipertrófica.
-Como
assim, Doutor? Quer ser mais claro? O que meu enteado tem, afinal de contas?
-Detectamos
uma disfunção no ventrículo esquerdo do coração. Isso o tem levado à falta de
apetite, e pode evoluir para uma parada respiratória... Na pior das hipóteses,
à morte súbita.
-Não
pode ser... Doutor, não tem nada que a gente possa fazer?
-Em
casos como o do seu filho, Seu Jayme, a única solução viável é um transplante.
-Só
que isso pode demorar anos! Bento não vai aguentar! Ninguém sabe quanto tempo
vamos ter que esperar por um coração!
-De
fato, não existem órgãos pra transplante aqui no hospital... Mas não vamos
perder a esperança.
-Quanto
tempo ele tem de vida ainda?
-Pai,
não fala isso!- interrompi.
-Isso
ninguém pode dizer com precisão. Nós já conversamos com Bento, ele estava
inquieto para saber a verdade.
-E
como ele reagiu?
-Da
pior maneira possível, Dona Celine. Agora está mais calmo, só que exige falar
com o pai o quanto antes.
-Doutor,
eu... - enxugou as lágrimas- Posso entrar no quarto com minha filha e minha
mulher?
-Pode,
sim. Mas não demorem. O hospital normalmente não permite mais de uma pessoa no
quarto.
-Com
licença, então.
-Jayme,
não se esqueça de falar com o Dr. Ronaldo Andrade. Ele é o cardiologista do seu
filho.
-"Cardiologista
do meu filho"... Obrigado, Doutor.
Quando
entramos, Celine e eu ficamos na porta, observando o meu pai conversar com o
Bento. Eu não tinha coragem de encará-lo, nem saberia ao certo o que poderia
dizer pra consolar o meu irmão. Qualquer coisa que eu falasse seria o mesmo que
nada.
-Como
é que você tá, meu filho?
-O
médico me falou que... Pai, me diz que isso é mentira- dizia Bento, segurando a
mão do nosso pai, chorando muito.
-Você
sabe que eu não posso mentir pra vocês, meus filhos. É verdade, sim, Bento-
deixou uma lágrima cair- Mas olha... Hoje em dia tem tratamento pra isso.
Aliás, sempre teve, meu querido. A gente vai falar com o médico, o
cardiologista, e ele vai marcar o seu transplante.
-O
pai do Marquinhos morreu assim- disse Bento, se referindo a um colega de
escola.
-Tem
nada que lembrar de pai de Marquinhos agora- Celine tentou acalmar a situação-
A gente vai fazer uma campanha pra divulgar sua situação, Bento. Não pode se
deixar abater, pensar que não tem mais jeito. O que é isso? Você sempre foi um
menino forte, saudável... Não vai perder pra doença nenhuma.
-Dá
pra parar com isso? Os dois? Eu sei que eu preciso de um transplante. O médico
já falou isso. E todo mundo sabe que é muito difícil conseguir um coração, tem
gente que morre na fila esperando. Eu já sei que eu vou morrer.
-Não
repete isso, meu filho.
-Pai,
deixa de me enrolar. Eu sei muito bem o que eu tenho.
-Se
eu pudesse, eu trocava de lugar com você. Você sabe disso.
-Mas
não pode. Ninguém pode. Só que tem uma coisa que o senhor pode fazer por mim,
antes que eu morra...
-Bento,
para de falar desse jeito!- ele começava a me deixar nervosa.
-É
como eu tô, Ariela! Morrendo! Só que eu não sei quando isso vai rolar, mas é
certo. Já que esse coração novo nunca vai chegar, eu tenho que pedir uma coisa.
-Não
vai ser seu último desejo, filho.
-Mas
vai ser a única coisa que eu vou pedir de hoje em diante. É do que eu preciso,
e eu sei que só o senhor pode me ajudar.
-Diz
o que você quer, Bento. Seu pai pode buscar pra você- Celine confirmava a
aflição que todos tínhamos naquele instante.
-Eu
quero que o senhor traga a minha mãe aqui.
-O
que foi que você me pediu?
-Eu
quero conhecer a minha mãe antes de morrer. Nem que o senhor tenha que procurar
no fim do mundo, mas o senhor tem que achar.
O
meu pai e Celine se olharam de um jeito estranho, que Bento não percebeu. Foi
aí que eu entendi que existiu alguma coisa além da ideia do abandono de lar que
eu tinha até aquela madrugada do Natal...
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