Rique
escutava tudo pela porta da frente, sem ter entrado.
-Fala
alguma coisa, Vilma. Detesto ter que jogar as coisas na cara dos outros. Só
quando seu filho morresse é que eu ia saber da verdade?
-Norberto,
você bebeu? Que loucura é essa que você tá falando?
-Deixou
a mala cair por quê? Medo de mim?
-Deixei
porque não tem sentido isso que você tá falando! Filhos? Eu não tenho filho
nenhum!
-Talvez
eu possa resolver toda essa situação dando um simples telefonema. Eu ligo em
seu nome para o hospital, digo a Bento ou pro pai dele que você não vai vê-lo e
pronto. Claro que... Ariela vai fazer um escândalo. Inclusive, ela disse que
vem aqui pra tentar negociar conosco. Caso contrário, ela vai procurar a Folha
pra contar tudo. A esposa de Norberto Nunes, em vez de acompanhar o marido em
festas e delegacias, agora é protagonista de outro problema. O que você acha
que podemos fazer nesse caso?
Ambos
ficaram calados por um tempo. Ela desceu às escadas, e ele a seguiu.
-Muito
bem. Ela não vai precisar vir. Ontem mesmo, quando eu a tirei daqui, pensei em
ir viajar, aproveitar essa nossa crise e fazer o que ela quer. Tudo pra não te
decepcionar. Só que... Agora eu vou ter que ir de todo jeito. Vou evitar expor
seu nome... – toma um susto quando Norberto a empurra no chão. Rique ouve a
queda e entra.
-Sua
filha não me disse nada! Eu nem cheguei a falar com ela...
-Quer
dizer que...
-Eu
joguei um verde, Vilma! Só tinha desconfiado, mas não tinha certeza. Ou melhor,
não queria ter certeza... Como é que você teve coragem de fazer isso com seu filho?
Você só ia viajar pra essa tal de Ariela não me contar nada?
-O
meu passado não te interessava! Você nunca quis saber o que eu tinha deixado
pra trás... Por que essa crise de consciência agora?
-Porque
uma pessoa tá morrendo! Um adolescente tá numa cama de hospital, querendo te
ver!
-Desde
quando você se importa com alguém? Quantas meninas, da idade dele, você tirou
de casa, e jogou na rua pra se venderem? Hein? Agora quer ser o padrasto
zeloso? Conta outra, Norberto!
-Pelo
menino, eu não me importo. Agora, eu penso em mim. No que isso poderia causar à
minha imagem. Você e a sua filha rejeitada me expuseram aqui em casa, na
boate... Depois, ainda inventou de querer sair daqui como se fosse uma
criminosa, uma bandida...
-É
isso que ela é, Painho. Mulher que deixa os filhos pequenos, pra mim, não
presta!
-Foi
você, não foi? Você que encheu a cabeça do seu pai com essa ideia de ir atrás
da minha vida antiga!
-Se
fosse comigo, você ia fazer a mesma coisa, né, Vivinha? Mas não foi por você,
não. Aliás, perder tempo contigo não dá! Fiz pela tua filha. A garota veio da
Bahia atrás de você, e foi ignorada. Até por prostituta se fez passar pra você
mudar de ideia. Quer saber? Foi bom mesmo ela não ter tido a mãe do lado esses
anos todos. Ela tem mais dignidade do que você, que tem o dobro da idade dela.
-Parece
que seu plano de me tirar dessa casa finalmente deu certo. Agora seu pai só vai
ter de dar conta de um vagabundo só pra sustentar.
-Até
que enfim, né? Não aguentava dividir espaço com você, outra vagabunda!
-Escuta
aqui, seu moleque...
-Ninguém
vai sair daqui! Tudo continua do jeito que está!
-Como
é que é?
-Rique,
pega o carro. Nós vamos sair. E você vem com a gente.
-Norberto,
o que você vai fazer?
-Eu
não vou fazer. Você vai! Dá a chave do seu carro pra ele.
-Pra
quê, Norberto?
-Não
parece que você está em condições de me fazer pergunta agora. Dá a chave do teu
carro pra Rique, vai! Eu não tenho o dia todo- obedeceu ao marido- Ótimo, podemos
ir.
-Me
diz o que você vai fazer, Norberto...
-Fica
tranquila, eu não vou mandar te matar. Só se você não vier comigo.
-Então,
o que você quer? Me humilhar? Dizer que eu não presto? Me bater?
-Já
que eu não pretendo te constranger na frente dos outros... Toma- abriu a
carteira e deu algumas notas de cem reais- É pra você?
-Pra
quê esse dinheiro?
-Você
não precisa levar nada, Vilma. Tudo o que você pensou em levar vai ficar aqui.
-É
isso? Acabou nosso casamento? Tá me expulsando só com a roupa do corpo?
-Vilma,
menos. Nosso casamento, ou aquilo que a gente chama de casamento, continua. Só
que hoje você não dorme aqui.
-Peraí,
Pai... Dá pra explicar?
-Só
o que vocês têm que saber é que vão ter de fazer o que eu mandar. E você vai
fazer, Vilma, pra não perder o que tanto trabalho deu pra conquistar tudo o que
tem- continuou irônico- Ela não deu a chave pra você ficar segurando,
Henrique... Liga de uma vez o carro dela!- saiu logo na frente- E leva a gente
pra onde eu falei!
/////
-A
sua irmã volta pra cá hoje, pra te ver.
-Vai
trazer minha mãe?
-Isso
eu não sei, Bento. Falei com Celine e ela me disse que as duas vão chegar hoje.
Vão pegar o avião da tarde.
-Ela
te disse alguma coisa pro senhor ficar com essa cara?
-Não.
Quem disse foi você.
-Eu?
-Aquele
negócio de não ter mais segredo. Revelei um pra Celine. Ela não me disse nada,
mas eu sei que ela ficou magoada.
-Pelo
menos o senhor teve coragem. Só falta ter comigo.
-Como
assim, Bento?
-Me
conta por que Mainha saiu de casa.
-Filho,
você não tem condição de ouvir nada sobre isso.
-Das
duas uma: ou vocês brigaram ou ela quis deixar a gente.
-O
que você acha que aconteceu?
-Só
pode ter sido a primeira. Uma mãe não ia deixar os filhos. Eu nem um ano
tinha... Ou foi isso?- meu pai não queria ter que dar explicações, até que
Bento gritou- Para de me fazer de besta e fala!
-Não
faz isso comigo... Não faz isso com você, você tá doente, Bento.
-Tá
estranhando que até agora o médico não veio me ver? Ele foi atender um senhor
de cinquenta anos, que tem o mesmo problema que eu. Tava na minha frente pro
transplante; era o único, e esperou dois anos. O cara morreu, sabia? Agora, Dr.
Ronaldo tá no consultório, tentando dar a notícia pra família dele.
-Por
que você tá me contando isso?
-Pra
saber se o senhor vai esperar que eu piore pra contar o que houve com Mainha.
-Sua
mãe não tava feliz. Ela tinha um marido, dois filhos e uma casa. Mas parece que
ela cansou. Uns dois dias depois do Natal, ela foi embora quando a gente tinha
ido dormir.
-Fugiu
com outro homem?
-Não.
Foi viver com ele. Mas ele não sabe dessa família antiga.
-Quando
foi que o senhor ficou sabendo disso tudo?
-Muitos
anos depois, filho. Ariela soube no domingo passado, porque eu tive que contar,
pra ver se ela conseguia achar sua mãe.
-Achou?
-Achou.
Só não sei se ela vem. Bento, deixa a sua irmã chegar. Ela e Celine vão te explicar
tudo com calma.
-Tô
entendendo por que tanto segredo...
-Bento,
meu filho... Eu quero que você responda uma coisa pra mim, mas eu quero toda a
sua sinceridade.
-Fala.
-Quem
é que você ama, mais que tudo nesse mundo?
-O
senhor, a Ariela...
-É
pela gente que você tem que lutar, Bento. Sabe por quê? Porque você não ama
sozinho. Ainda tem gente que ama você- deixou-se emocionar- E cada dia a menos
pra você é uma morte pra nós. Sobreviva por você, meu filho, pelo seu pai e
pela sua irmã. Nós não vamos conseguir continuar se você não quiser ir em
frente.
Eles
trocaram, naquele momento, o abraço emocionado que eu queria estar presente
para também receber. Oportunidades surgiriam.
/////
Enquanto
isso, eu estava no quarto de Celine, tentando descobrir o que meu pai tinha
dito pra deixá-la tão abalada.
-Você
não vai falar nada, não? Celine, se for com Bento, me fala de uma vez. Eu não
aguento mais esse nervoso.
-O
problema é comigo, Ariela. Foi uma coisa que seu pai me contou. Só tem a ver
com a gente.
-Não
fica assim. Daqui a pouco, a gente volta pra casa e você se acerta com ele.
-Minha
vontade é de te deixar em casa, e eu voltar pra cá. Ou ir pra qualquer lugar,
onde eu não tenha que cruzar com ele.
-Nossa,
foi tão grave assim?
-Se
eu não respeitasse você e Bento, eu já tinha voado pra cima dele. Mas não
adianta falar. O meu ódio não vai passar, nem apagar o que ele fez.
-Quer
dizer de uma vez?
Bateram
a porta.
-Você
chamou alguém do serviço de quarto?
-Eu
não.
-Atende
e diz que não quer mais nada, que nós vamos fechar a conta daqui a meia hora,
quando o táxi chegar- abri a porta e dei de cara com Norberto.
-O
que o senhor tá fazendo aqui?
-Acha
que eu não vim cobrar aquilo que você ficou me devendo de madrugada?- num
impulso, eu tentei fechar a porta, e Celine estranhou aquilo tudo. Norberto
acabou sendo mais forte e a empurrou contra mim.
-Sai
daqui! Eu vou chamar a segurança!
-Que
segurança? A que foi comprada por mim, pra me deixar entrar? Chega de jogo, de
ameaça, de entrelinha... Vamos ao que interessa: a verdade- voltou-se para a
porta- Entra, Henrique- e ele veio, acompanhado da minha mãe.
-O
que essa mulher tá fazendo aqui?- Celine bradava, com rispidez.
-Ué,
o que vocês queriam que ela fizesse: ir com vocês.
-Você
contou pro seu pai?
-Ele
tinha que saber, Ariela. Se eu não contasse, ela não ia nunca.
-Mas
são mesmo mãe e filha. Uma esconde, a outra mente.
-O
senhor quer o quê? Recriminar Ariela por ela ter procurado a mãe? E se ela
dissesse a verdade, ia fazer o quê?- Celine não colocava panos quentes na
situação.
-Parece
que eu vou ter que pôr as cartas na mesa, porque vocês duas são lentas de
raciocínio. Vilma não só vai com vocês, como tem que ir.
-Tem
que ir? Por quê? Começou a pensar em Bento?
-Só
estou fazendo isso pelo meu marido. Não quero comprometer a imagem dele.
-Mas
é mesmo uma cínica...
-Vê
lá como você fala comigo, sua...
-Para!
Para com isso!- fiquei entre Vilma e Celine, tentando evitar uma briga- Tem
certeza de que a senhora quer ir, já que disse tanto que não ia viajar com a
gente?
-Melhor
do que isso, Ariela. Vivinha vai levar você e sua madrasta.
-Levar
como, Norberto? Eu não sei pilotar seu jatinho.
-Estou
falando do seu carro. Foi por isso que disse pra você entregar a chave a
Henrique. Daqui, vocês seguem viagem.
-Norberto,
elas moram em Salvador!
-Disso
eu também já fui informado, Vivinha. Foi exatamente por isso que te dei aquelas
notas de cem. Se a gasolina acabar ou o pneu furar, vocês estarão precavidas. E
se algum guarda te parar na rodovia e atrasar a viagem, já é dinheiro suficiente
pra você molhar a mão dele. Se quiser, eu empresto meu talão de cheques.
-Espera,
eu comprei as passagens. As malas já estão prontas, eu já chamei o táxi pra...
-Cancele,
minha senhora. Não vão ter mais que pagar nenhum centavo pra voltar à Bahia. Aliás,
podem fazer a conta de tudo o que vocês gastaram durante esses dias aqui em
Recife. Minha esposa irá reembolsá-las.
-Até
quando você pretende ficar me humilhando, e me expondo ao ridículo dessa forma?
-Até
me cansar! E elas não poderão dizer nada pra te defender. Talvez estejam com o
mesmo nojo que eu. Além disso, elas sabem que não é seu amor de mãe que tá te
levando pra Bahia de novo. Fique tranquila, Vilma. Nada do que você tem será
perdido.
-Está
bem, Norberto. Eu vou fazer como você quiser.
-A
senhora... Já trouxe sua bagagem? Tá no carro?
-A
bagagem da Vilma está no corpo dela. É só disso que ela precisa.
-Seu
Norberto, o senhor não acha que tá passando dos limites com ela?
-Eu
até entenderia o fato de você defender sua mãe, menina. O que eu não entendo é
você, depois de tudo o que tá acontecendo, tentar livrar a cara dessa mulher-
foi em direção à Celine- Vamos à recepção. Eu quero pagar a última diária.
-Olha,
Norberto, eu mesma pago. Passei por tudo isso pelo amor que tenho pela minha
enteada, não vou deixar que outra pessoa arque com as despesas. Não faça
questão disso também.
-Tudo
bem. Eu lhe acompanho até a recepção. Henrique e Vilma: aguardem até que alguém
venha buscar as malas. Nos encontramos lá embaixo- abriu a porta para Celine,
que desconfiava cada vez mais das intenções de Norberto. Cheguei perto de
Rique.
-Posso
falar com você rapidinho? Lá fora?
-Não
precisa fazer segredinho com ele, não. Foi ele que contou pro pai que eu tinha
uma família. E certamente foi você quem abriu o jogo.
-Quem
me contou foi a madrasta dela. E sabe que foi bom, Vivinha? A essa hora, você
já teria dado um cano em todo mundo, procurando um velho que tivesse mais grana
que meu pai.
-Eu
tava embarcando pra lá, seu imbecil! Ia ver Bento sem seu pai saber! Mas como
sempre, você estragando tudo. Matar a sua mãe não foi suficiente?- olhei para
ele assustada, pois pouco sabia sobre ele, e o pai já não me inspirava
confiança.
-Sempre
que você me colocava de castigo, dizia isso. Graças a você, Vilma, eu descobri
hoje que eu tenho caráter. Finalmente, eu consegui superar você- pôs a mão em
meu ombro e me levou pra fora do quarto. Conversamos no corredor.
-Eu
queria te agradecer por ter falado com seu pai.
-Era
o mínimo. Depois do que eu fiz hoje de manhã... Eu fui um idiota.
-Você
não tinha como saber que eu não era quem você tava pensando... Por que ela te
chamou de assassino?
-Eu
não conheci minha mãe. Ela morreu no meu parto.
-Caramba...
-Sabe
quando uma coisa foge do teu controle, e você se culpa por aquilo ter acontecido,
mesmo sabendo que a culpa não é sua?
-Sei
bem. Pensei que Vilma tinha se irritado comigo e fugido de casa por isso. Só
tinha três anos.
-Pois
é. Sempre me achei o pior cara do mundo, que não presta pra nada, que acaba com
tudo o que toca. Vilma contribuiu bastante pra eu pensar isso, pra que eu me
sentisse essa bosta de homem!
-Então,
por que tá me ajudando?
-Porque
talvez seu irmão, que tá doente, mude Vilma. Ele pode não conseguir, mas não
custa nada tentar. E também porque eu gosto de você. Gosto desde o primeiro
dia, quando seu táxi acabou com minha moto.
-Uma
pena que a gente tenha se conhecido assim.
-Quem
sabe um dia, a gente se encontra e... Começa uma coisa mais bacana, feliz...
Sem forçar nada, sem atropelamentos, sem madrasta pra atrapalhar?
-Parece
que a nossa amizade começou muito troncha...
-A
amizade, sim. O que vem depois é que eu não sei...
Um
camareiro chegou ao quarto para pegar as malas, e nós só sabíamos nos olhar.
-Vai
que você não demora pra me procurar na Bahia...
-Não
vai dar, pelo menos por enquanto. Tenho que ficar do lado do meu pai. Parece
que agora a coisa descambou de vez- explicou, se referindo ao escândalo de
exploração sexual.
Vilma
saiu do quarto com o camareiro.
-Já
podemos ir pro carro. Sua madrasta acertou a conta com o hotel. Vamos logo com
isso.
/////
O
camareiro colocou todas as malas no carro de Vilma. Dei um abraço apertado em
Rique, agradecida por ele ter me entendido. Não falamos mais nada, apenas
alimentamos o desejo de nos reencontrarmos numa situação melhor. Tentei
cumprimentar Norberto, mas ele me ignorou; direcionava muitos olhares de reprovação
à esposa, que colocava o cinto, louca para terminar o pesadelo que, para ela,
acabava de começar. Entrei no carro ao lado de Celine. Assim que fomos embora,
naquela despedida silenciosa, pai e filho pegaram um táxi e foram pra casa.
Dentro
do táxi, ambos conversavam sobre o futuro daquele casamento.
-Vai
aceitar a Vilma depois que ela voltar de Salvador?
-É
minha mulher, Henrique. Querendo ou não, eu já me habituei a ela.
-Sei,
não, hein? Se ela resolve abandonar o senhor também...
-Não
fala besteira. Ela não vai fazer isso. Não enquanto eu tiver dinheiro, e der
uma vida boa pra ela.
-E
o senhor vai se prestar a isso por quê? Gosta dela?
-Olha
pra mim, Henrique. Se alguém se interessa por mim, é pelo que eu tenho.
-Fica
orgulhoso disso?
-Henrique,
eu sei muito bem o que eu construí.
-Eu
perguntei se o senhor gosta dela.
-Olha,
eu vou dizer pra você uma coisa: não pense que um homem fica preso a uma única
mulher toda a vida. Existem necessidades que nem sempre são supridas pela
mulher que é sua companheira.
-Já
deu pra perceber pela quantidade de prostituta que você levou pra fazer
programa em casa. Eu só quero saber se você vai dar um pé na bunda da Vilma ou
não- o táxi chegou à mansão.
-Bom,
se eu estou te enrolando o caminho todo com essa resposta, é porque eu não
quero falar sobre esse assunto, deu pra entender?- pagou o motorista e desceu
do táxi. Quando Rique abriu a porta, viu seu pai ser surpreendido por policiais.
-Sr.
Norberto Figueira Nunes?
-O
que foi agora? Outro mandado de busca e apreensão? Ou será uma daquelas
intimações para depor durante horas? Isso já está ficando monótono...
-O
senhor está detido por exploração sexual de menores.
-Eu?
Preso? Sem falar com meu advogado, eu não vou pra lugar nenhum.
-Não
seja por isso. Nós já localizamos seu advogado. Está na delegacia, que é pra
onde o senhor vai- enquanto um dos policiais algema Norberto, o filho assiste à
cena que sempre temeu que fosse acontecer.
/////
Já
eram três horas da manhã da quinta-feira, 29 de dezembro de 2011. Nós só
havíamos parado por vinte minutos durante a noite anterior, para comer. Celine
já se sentia estafada da viagem quando, numa tentativa de construir diálogo com
Vilma, perguntou se ela também sentia fome. Sinalizou com a cabeça que nada
queria, para depois soltar:
-Não
vejo a hora de chegar nesse hospital de uma vez.
Por
muitas horas, essa foi a única frase que ela pronunciou. Celine acabou
adormecendo. Quando chegamos à avenida na qual ficava o hospital particular no
qual Bento havia se internado, até cheguei a propor:
-Você
não quer ir pra casa?
-Pra
sua casa? Fazer o quê lá?
-Já
é de madrugada, Vilma. Dá pra gente dormir, tomar um banho, descansar... Sei
lá. Não é melhor, não?
-Prefiro
chegar lá o quanto antes.
-Que
pressa é essa? Só você vai visitar Bento numa hora dessa.
-Por
isso mesmo. Ninguém pra atrapalhar, nem interromper a farsa que vamos
protagonizar. Não precisamos de plateia pra isso.
-Você
fala como se Bento não gostasse de você, como se ele tivesse me mandado pra
Recife só pra acabar com sua vida.
-Olha,
eu não duvido do amor que ele possa sentir por mim. A farsa da qual estou
falando é esse amor que eu vou simular por ele quando der de cara com ele.
-Meu
Deus do céu, é tão difícil assim sentir alguma coisa? É seu filho!
-Disso
você me lembra a cada quinze minutos. Mas eu não consigo. Simplesmente não
consigo. Talvez essa falta de amor pela minha família seja a minha única falha.
Mas quer saber? Eu não me sinto culpada por isso, nem um pouco. Por mais que apontem
o dedo na minha cara, me condenem, eu não me arrependo do que sou, do que me
tornei com o passar do tempo. E já que eu vou ter que fingir que tipo de mãe eu
sou pros meus filhos, ou pelo menos pra um deles, paciência...
-Por
que é que você tá vindo com a gente, então?
-Pra
não perder Norberto. A resposta soa meio óbvia, nem precisava ter me perguntado
isso, Ariela.
-E
acha que ele vai querer você de volta? Ele não deixou nem que você trouxesse
roupa pra vir até aqui, te deixou sem dinheiro. Só com esse carro, e ainda por
cima pra trazer a gente.
-Não
dizem que a gente pode vencer alguém pelo cansaço? Pois é. Vou usar sua
estratégia, Ariela. Não funcionou comigo porque a fofoqueira da sua madrasta
desembuchou tudo pra Henrique. Mas deixe estar. Vou voltar ainda mais
revigorada, sabendo como seduzir aquele homem. E vou continuar levando a vida
que sempre tive, e fiz questão de levar durante esses anos todos.
-Impressionante...
Sabendo que tipo de homem é ele... Vem cá, a senhora não sente medo do que ele
pode fazer?- ela riu, pela primeira vez desde que nos revimos.
-Norberto
pode ter rabo preso, sim, mas pior do que isso é não saber a hora de ficar
calado. Escutei muita coisa da boca dele, Ariela. Duvido muito que ele me
expulse de casa. Também não acho que chantageando meu marido ele se atreva a me
atirar morta numa vala.
-Quanto
mais você fala, mais eu me arrependo de te lutado tanto pra você ver Bento.
-Ah,
não me diga...
-Pelo
que eu tô vendo, foi perda de tempo.
-É
mesmo? Por que, filha amada?
-Porque
ele não merece ser seu filho. Como eu também não mereço.
-Claro,
agora vai apelar pra chantagem sentimental! Eu sou a mãe desnaturada, a triste,
a infeliz que não merece um pingo de consideração- começou a levantar o tom de
voz, acordando Celine, que estava dormindo no banco de trás- Só que ninguém
pensa que essas “pobres crianças desprotegidas” destruíram a minha vida!
Ninguém olha pro meu lado, e vê que eu não abandonei os meus filhos, e sim
deixei pra trás uma família que nunca existiu! Se depender de vocês, eu que me dane!
O importante é a felicidade de todo mundo, até do meu ex-marido carente! Menos
a minha! Eu posso mentir, eu posso manipular, eu posso distorcer a verdade e
ser conveniente pra vocês, mas uma coisa vocês vão ter que engolir: eu não me
arrependo de nada! E vou ser assim até o dia da minha...
-Cuidado!-
apavorada, Celine viu um caminhão desgovernado que acertou o carro em que
estávamos, e que deslizou onze metros na pista.
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