-Eu
acho que eu não entendi direito.
-Ariela,
eu sei que... Que eu não devia ter dito isso, mas...
-Então,
me explica, Rique. Você quer que eu me afaste, é isso?
-Não.
Quem tem que sair de cena sou eu, pelo menos por um tempo.
-E
por que eu não posso ficar do seu lado? Me diz. Eu não consigo entender essa resistência.
Amor, é justamente agora que você precisa de alguém do lado, que saiba te
consolar, ser teu ombro amigo...
-Mas
o que eu vou dar em troca?
-Henrique,
eu continuo sem entender o rumo que essa conversa tomou.
-Eu
não me sinto cem por cento entregue a você. A verdade é essa.
-Foi
alguma coisa que eu fiz? Se for, pode falar. Eu não vou ficar magoada com você.
-O
que eu quero é não te magoar, Ariela. Eu sei o quanto você luta pela nossa
relação, mas eu não me sinto homem suficiente pra fazer a mesma coisa.
-Cada
vez eu te entendo menos...
-Quando
a gente se conheceu... Ou melhor, quando a gente se encontrou de novo, eu vi
que podia realizar os meus sonhos com você. Porque você é a pessoa mais
perfeita que eu conheço- o discurso arranca lágrimas de Ariela- Mas depois de
hoje...
-Rique,
me escuta... Juro pra você, eu não fiquei com raiva de você não ter se casado
comigo hoje. Por favor... Como é que eu não vou compreender tudo o que
aconteceu?
-O
que acontece. Eu sempre me vi como um cara fraco. Apesar desse meu discurso
provocador na ponta da língua, eu não tinha nada de bom pra oferecer a ninguém.
-Será
que não?
-Tenho
certeza. Assim que a gente falou de casamento, eu comecei a pensar: como não
errar com a pessoa que mais me amou nessa vida? Como eu ia fazer pra não
repetir um décimo dos erros que meu pai cometeu tentando formar a família dele?
-Mas
você não é o Norberto! Você não é o seu pai! Seu pai não te dava importância.
Só ao dinheiro, e um pouco à segunda esposa dele. Desculpa, Rique, mas eu não
vejo como você pode reproduzir os mesmos defeitos do Norberto.
-Acontece
que ele é parte de mim, Ariela. Pode ter ido parar dentro de um caixão, mas eu tenho
medo de ser como ele. Sempre quis ter tudo que ele tinha, sem merecer. Fui trabalhar,
estudei, assumi uma nova identidade pra me desvencilhar de tudo que remetia a
ele. Mas eu não sei se consigo.
-Tudo
bem. Você ainda está mexido com o que houve. Eu vou dar um tempo pra você.
-Pra
nós dois. Ariela, eu não quero que você derrame nenhuma lágrima. E vou sofrer
mais ainda se souber que a culpa é minha. Eu não vou fazer você feliz se eu não
estiver também.
A
moça o beija e acaba se afastando de Henrique no cemitério. De longe, grita:
-Tirei um mês de licença pra lua de mel. Mesmo que a
gente não case, eu vou te esperar. Lembra que te disse que a gente tem todo o
tempo do mundo?- com a pergunta, ela vai embora do local, deixando o jornalista
pensativo.
Voltamos
ao apartamento de Lavínia. Caíque fica pasmo com a pergunta da esposa, que tinha
questionado sobre a sua amante.
-Outra
mulher? Por que acha que estou saindo com outra mulher?
-Porque
homem nenhum faz o seu tipo!- continua ironizando.
-Lavínia,
você sabe muito bem que eu vivo pro meu trabalho. Porque é ele que me sustenta,
que bota comida na minha e na sua boca, que paga minhas contas, que me dá vida!
-E
quanto a mim, Caíque? O que eu tenho trazido pra você, além de uma fuga diária?
Daqui a pouco, eu vou me ver obrigada a pendurar uma melancia no pescoço. Só
assim você me nota.
-Não
viva tanto em função de mim.
-Vou
ter que fazer o contrário do que me pede. Só assim pra saber se esse casamento
vale a pena.
-Mas
o que você quer, afinal de contas?
-Saber
quando e por que o casamento da gente foi enfiado num freezer! Porque eu não entendo,
juro que não entendo. Se o trabalho toma tanto o seu tempo, e te sufoca tanto,
não seria a hora de se dar uma pausa?
-Como
a sua pausa? Porque pra estar uma hora dessas em casa, é porque as coisas na
escola não foram boas pra você. Péssimas, eu diria.
-Não
desvia do assunto.
-Não
estou desviando. Eu só estou constatando que você anda enfrentando...
-E
para de falar comigo no gerúndio! Coisa insuportável! Foge do assunto, sim, senhor.
Como todas as vezes em que as nossas raras conversas falam do nosso casamento.
Ou o que ele deveria ser.
-Você
não está num bom dia. Sou perfeitamente capaz de compreender.
-Está
enganado, Caíque. Eu não preciso de homem compreensivo. A compreensiva da casa
sou eu. O que eu quero, pelo menos aqui dentro, é um homem que sinta o meu
perfume e me leve pra ir a um determinado lugar.
-Lavínia,
sabe que eu não tenho tempo de passear.
-Que
me leve à loucura, Caíque. Porque eu não acredito que com esse corpo de vinte e
três anos que você tem, gaste toda a sua energia elaborando planilhas.
-Só
porque eu não te procuro como mulher não significa que eu tenha uma amante.
-Mas
tem que ter um significado você não me procurar como amiga. Porque quando seus
planos dão errado, eu não sei pela sua boca. Sei pelo jornal. Talvez esse tempo
em casa seja bom pra gente se redescobrir. Caso queira, não é?- vai dar
instruções para Zilda na cozinha, deixando o marido sozinho.
Sábado, três de outubro de 2015
Na
redação do jornal, Otávio sai rapidamente de sua sala e encontra Henrique à
porta, surpreendendo-lhe.
-Gabriel?
O que está fazendo aqui?
-Bom,
Otávio, você é testemunha ocular de que os últimos dois dias não foram fáceis
pra mim. Será que rola alguma matéria pra eu fazer hoje?
-Pensei
que você e Ariela fossem aproveitar o mês de folga que ganharam.
-Não.
A minha questão com Ariela ficou em aberto. Pedi um tempo.
-Por
que fez isso?
-Otávio,
eu não tinha como ir adiante com essa estória de casamento. A morte do meu pai
me deu um nó.
-Olha,
eu não tinha intenção de te dar uma notícia tão grave e acabar destruindo seu
casamento.
-Eu
ia acabar com meu casamento se tivesse seguido com tudo. Sempre fui privado de
uma família de verdade, não podia deixar que Ariela cometesse o erro de casar
com alguém que não ia fazê-la feliz.
-Mas
você ama a Ariela.
-Mais
do que tudo. É por isso mesmo que eu não quero que ela sofra.
-Gabriel,
pensa: essa moça te ama de verdade, com certeza deve estar tão abalada quanto
você. A morte do sogro, sua desistência do casamento...
-Penso,
às vezes, que não devia ter tanta confiança. Mas ela vai me entender.
-E
pra esconder tudo o que sente agora, vai mergulhar de cabeça no trabalho?
-Se
você permitir, é claro.
-Tudo
bem. Se isso te ajuda...
-Preciso
trabalhar, extravasar, conhecer gente, circular... Fugir do meu mundo, que
nunca foi agradável. Enfim, colocar a minha outra personalidade em ação, o
Gabriel Arenas.
-Sabe
que eu acho que você deveria usar o nome verdadeiro, Henrique Nunes? Pra quê"
se esconder? Você não tem culpa dos erros e dos crimes do seu pai. Além do
mais... Agora ele nem está mais entre nós.
-As
pessoas sabem disso. Mas pensam diferente. Enfim, eu me protejo.
-Por
quê? Teu pai deixou inimigos?
-Deixou
uma péssima educação pra mim, a falta de amor, de interesse... Não sou
hipócrita de dizer que não o amo mesmo assim, mas quero escapar ao máximo do
que ele foi em vida.
-E
agora te atrapalha, como um fantasma que se mete entre você e a sua noiva.
-Otávio,
por favor...
-Tudo
bem. Já vi que você está irredutível. Então, eu vou te dar uma pauta pra você
quebrar a cabeça.
-Fala.
-No
dia do casamento... – pensa em se corrigir- Bom, houve um escândalo na Escola
de Referência Antonio Nipo.
-No
bairro de Alagados?
-Exatamente.
-Por
que chamam aquilo de escola de referência?
-E
quem sabe? Coisas da administração pública... O fato é que uma professora está
com um vídeo circulando na internet, batendo num dos alunos. Já tentamos entrar
em contato com a diretora, como tantos outros jornais, mas nada. Tenta ir lá na
segunda-feira.
-Vou
agora.
-Mas
hoje é sábado.
-Esqueceu
que teve greve e os professores repuseram as aulas? Os meninos estão indo a
pulso, mas vão.
-Por
isso é melhor que você vá. Você é ardiloso, insistente, sempre confronta as
pessoas quando quer arrancar a verdade delas.
-Alguma
coisa de Henrique o Gabriel tinha que ter.
-Boa
sorte. Eu soube que a diretora da escola é uma fera.
-Não
está mais atacada do que eu, isso eu garanto. Deixa eu pegar o meu bonde-
Henrique aperta a mão do editor-chefe e se retira da redação.
Ao
chegar à Escola de Referência em Ensino Médio Antonio Nipo (sério que vou falar
esse nome todo até o fim disso?), Henrique... Gabriel... Bom, os números de audiência
disseram que é melhor chamar pelo pseudônimo mexicano mesmo. Gabriel Arenas
encontrou com o desesperado Fred conversando com Amparo à porta do recinto.
Ele, coitado, do lado de fora.
-Me
diga que alguém topou me usar como estagiário. Dona Amparo, por favor, o
semestre já está indo pra segunda metade.
-E
por que só veio agora?
-Eu
lhe disse que professor é organizado alguma vez?
-Fred,
eu sinto muito. Mas os outros professores de português não querem um estagiário
acompanhando as aulas deles.
-Mas
o meu é estágio-docência. Depois de um mês, eu vou ter de substituir qualquer
professor.
-Você
disse "substituir"?
-Por
que levantou as sobrancelhas?
-E
por que não disse logo que ia substituir a Lavínia? Claro, você é a solução dos
problemas da Escola de Referência em Ensino Médio Antonio Nipo!- Amparo afirma
num tom tão heroico que até pensei que Antonio tinha proclamado a república...
Será que ele é o dentista do Tiradentes? Quem é este homem?
-A
senhora falou nada com coisa nenhuma. Seja mais clara.
-Você
precisa fazer um relatório, não é? Pra contar da sua experiência com a escola e
os alunos?
-É...
-Pois
pronto. Fred, eu assino seu relatório, carimbo tudo, faço uma avaliação
maravilhosa de você enquanto professor se você fizer uma coisinha pra mim.
-O
quê?
-Ficar
no lugar da Lavínia. Em vez de acompanhar as aulas dela, você é quem vai dar
assistência pras turmas.
-Tá
de sacanagem?
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