30/01/2016

MENTIRAS ESCANCARADAS/ CAPÍTULO V: 'CAUSE MY LOVE, MY LOVE, THERE'S SOMETHING I WANT YOU TO KNOW

-Caso, eles dois não estão tendo. Mas o Dr. Coelho está tentando comprá-la. Um milhão de cruzeiros por uma noite selvagem. E quando eu falo selvagem, não estou me referindo a um safári na África.
-Eu avisei! Eu disse pra aquele safado que se eu descobrisse mais uma escapada dele, eu ia me vingar!
-Dona Thaynara, por favor...
-Quando foi que você depositou o dinheiro na conta dela? Responde!
-Há três horas.
-E aquela miserável não se dignou nem a devolver o dinheiro? Na certa, vai ceder ao capricho dele.
-São sete horas da noite, ninguém vai a banco uma hora dessas!
-Não interessa! Eu quero que você me dê o endereço dessa biscate de toga agora mesmo.
-Vai cair uma chuva forte, deixe pra amanhã...
-Agora!
Acuado, o advogado anota o endereço de Dara.
-Pense bem no que vai fazer, Dona Thaynara!
-Barbarizar, meu bem! Eu vou barbarizar! Pensa que eu não sei que você tem até o endereço da pilantra porque Felipe pretende dar uma passada lá?
-Ouça o que eu estou lhe dizendo! A senhora vai enfrentar um temporal a troco de nada! E depois, o que garante que a juíza vai realmente aceitar a quantia de seu marido?
-Claro que não vai aceitar! E não vai porque se ela cogitar a possibilidade, eu dou na cara dela!
-Senhora!- mesmo com os apelos de Wilson e o céu nublado, Thaynara corre para o carro- A senhora não vai fazer nenhuma besteira, vai?
-Não!
-Se a senhora não vai fazer, por que está correndo?
-Sai, desgraça!
-Não quer conversar comigo?
Fora da casinha... Digo, fora de si, Thaynara fecha a porta do veículo e enfrenta o temporal que acaba de começar.

/////

Por uma dessas coincidências novelísticas, Dara chega a sua casa naquele momento, e enfrenta uma chuva torrencial. Ao tentar abrir a porta, o molho de chaves cai de sua mão e ela o procura. Subitamente, Antonio abre a porta com uma cópia e diz:
-Entra, Dara.
-Ai, obrigada... Mas como você sabia que eu tinha chegado?
-Pelo cheiro. Senti daqui de dentro.
-Cheiro de quê, homem?
-Não sei, mas mulheres normais não têm essa essência.
-Ainda bem que eu deixei a cópia contigo. Senão, eu ia ficar mais molhada do que... Atchim! Pronto, só faltava essa!
-Relaxa, eu vou fazer um chá pra você.
-Não, nem chegue perto dessa cozinha! Deixa que eu mesma faço.
-Nesse caso, eu vou forrar sua cama.
-Antonio, você precisa repousar. Não é pra ficar fazendo tanto esforço... Atchim!
-Por você, eu faço qualquer coisa.
-Mas eu quero que você fique à vontade, não é pra me servir.
-Dara, me deixa cuidar de você como você tem feito comigo esses dias. Isso não é nada.
-Tudo bem... Se você insiste... Só cuidado com a escada. Não tem quase cenário nenhum lá em cima, acho que ela só existe pra derrubar algum personagem... Atchim!
-Que não será o meu, porque eu sou muito perspicaz.
-Aham, Antonio, senta lá!

/////

O carro de Thaynara está a toda velocidade quando um urubu desgovernado bate no para-brisa e a coitada atola numa poça gigante ao lado do lixão da Muribeca. Muita viagem, não é? Tudo é pra não interromper o andamento da próxima cena, a mais esperada pelos espectadores dessa chanchada pueril (na verdade, só por Antonio).
Por diversas vezes, a jovem senhora tenta arrancar com o carro dali, mas tudo sai inútil. Nervosa, desce do automóvel e se atreve a ficar molhada apenas para dizer:
-Ai, que raiva! Ai, que ódio!
Calma, Thay. Prometemos que até o fim desse capítulo sua personagem terá alguma razão de existir.

/////

Enrolada num cobertor e de pijama, Dara está em sua cama, quando Antonio chega com o chá.
-E não é que eu fiz e esqueci que era pra tomar? Atchim! Mas também, eu tava doida pra tirar a roupa!
-Eu imagino!- diz Antonio, com um sorriso discretamente maroto. Dara pega a xícara.
-Obrigada.
-Sabe que eu fiquei com saudade de você?
-De mim?
-É. Eu sei que você trabalha, mas esse lugar é muito estranho sem você- o engenheiro se aproxima da cama e senta ao lado da juíza.
-Bom, amanhã é final de semana, a gente podia aproveitar pra passear, não é?
-Quem sabe a gente pega um cinema? Vamos assistir ao "Total Recall"!- empolga-se.
-Antonio, não dá pra te levar ao cinema assim.
-Ah, é.
-Mas a gente pode ir pro parque dar uma volta.
-Duvido muito que essa chuva não se estenda até amanhã... Dara, eu posso confessar uma coisa?
-Claro, Antonio, fala- responde a juíza, concentrada no chá.
-Sabe, eu nunca senti isso por ninguém, mas com você, eu... Eu fico até suando frio!
-Antonio, demente! Tem uma goteira em cima da sua cabeça!- a loura levanta e tenta enxugá-lo com um lençol- Caramba, você tá todo molhado!
-Você também.
Um raio atinge os fios elétricos do poste que fica situado em frente à janela do quarto de Dara, acabando com a energia... Que as hidrelétricas enviam para a vizinhança, porque se depender de certas pessoas... Digo isso porque Dara grita com o estrondo e abraça Antonio, ofegante.
-O que foi isso?
-Eu não sei, mas acabou a luz!
-Dara...
-O que é, Antonio?
-Sua respiração...
-Que é que tem?
-Tá diferente, não sei.
-É que... Foi o susto.
-Só isso? Foi só o susto mesmo?
-Nunca tinha chegado tão perto de você como agora.
-Pode chegar mais vezes, se quiser. Aliás, é tudo que eu mais quero na vida.
-Lady, I'm your knight in shining armor and I love you.
-Quem está aí?
-Relaxa, Dara. É só Lionel Richie cantando pra dar o clima romântico da cena.
-You have made me what I am, and I am yours.
-Nunca ouvi essa música.
-Já esqueceu que estamos em 90? Ninguém nunca ouviu.
-My love, there's so many ways I want to say, I love you.
-O autor dessa novela poderia ter colocado uma música propícia pro momento.
-Só tinha "A Roda" da Sarajane no toca-fitas.
-Let me hold you in my arms forever more.
-A gente tá perdendo tempo, Antonio.
-Com você, não existe tempo perdido.
-Que diálogo clichê, menino!
-Você tem a chance de calar minha boca. Aproveita!
Enquanto Lionel Richie está se esgoelando ao fundo do quarto cantando uma música que nasceria em 1998 (na verdade, um cover que contratei e assistiu a tudo por causa do cachê), Dara e Antonio estão debaixo da goteira aos beijos. Em dada hora, a musa do judiciário asfixia o rapaz com sua juba maravilhosa e beija o pescoço do engenheiro.
-Lady, your love's the only love I need and beside me is where I want you to be. 'Cause my love, my love, there's something I want you to know! You're the love of my life, of my life; you're my lady. You're my lady...
E a única coisa que a gente enxerga naquele mar de cabelo são os olhos de Antonio se revirando.

/////

Lavada a alma dos espectadores, vamos para o drama do dia seguinte. Com os fios ainda armados como uma medusa, Dara volta ao quarto carregando uma bandeja de café da manhã. Coloca-a ao lado de Antonio, que ainda está dormindo.
-Ah, esqueci de pegar o jornal- calça um par de pantufas e, envolvida num belo pijama azul de seda azul, com detalhes que cobrem o tecido azul... Eu já disse "azul"? Desculpem, não raciocino com essa moça na minha frente. Enfim, ela vai apanhar o jornal. Abre a porta e encontra Thaynara suja de lama, com o carro quase desabando.
-Quero falar com Dara Lira. Cadê ela?
-Sou eu mesma. Quem é você?
-Você é a juíza? Definitivamente, não sou páreo!
-Pronto, agora até elogio de mulher... Você é a entregadora de jornal?
-Sabe o que eu vim te entregar? Isso, desgraçada!- Thaynara agride Dara com uma bofetada que, em câmera lenta, fez voar vinte e seis dos cento e quarenta mil duzentos e oitenta e nove fios da juba!

/////

Brigas aumentam a audiência, mas vamos para uma cena paralela. Antonio se espreguiça e derruba a bandeja no lençol. O susto foi tamanho que o jovem acordou.
-Caramba! Derrubei o leite... Leite?- esfrega os olhos e percebe a sujeira que causou- Eu tô vendo! Eu tô enxergando! Não acredito!
Antonio fica em pé (sobre a cama) e desce um globo do teto. Sem pensar duas vezes, ele tira óculos da cueca (VOCÊ ACHOU MESMO QUE NOVELAS DE CLASSIFICAÇÃO LIVRE VÃO COLOCAR GENTE PELADA SÓ PORQUE ESTAVAM FAZENDO INADEQUAÇÕES?), põe na cara e começa a dançar...
- Once I had a love and it was a gas; soon turned out, I had a heart of glass. Seemed like the real thing, only to find mucho mistrust, love's gone behind.
-Preciso contar pra Dara!
Sim, precisa contar que dançou uma música nada condizente com a época de ambientação da novela. Pelo menos a cena não foi em 2007, onde dançaria "Heart of glass" de sunga branca e brigaria bêbado em cadeia nacional!

/////

-Como é que você tem coragem de vir até a minha casa e bater na minha cara, sua desequilibrada?
-Coragem não me falta! Pelo visto pra você também não, já que soube se atirar pra cima do meu Felipe!
-Tem a nota fiscal? Pagou imposto por ele? E de que Felipe está falando?
-Felipe Almeida Coelho, o dono da revista Play Pause, e que por acaso é meu marido.
-Por acaso, e não por bom gosto! O que aquele calhorda falou de mim, posso saber?
-Não seja cínica! Eu já descobri que você já virou a cabeça dele, e agora ele não para de pensar em você!
-Escuta, o seu marido fez estágio com a menina do "Exorcista", vira a cabeça pra qualquer mulher! Porque é um safado!
-Mas nunca fez por outra o que fez por você!
-Vai me dizer que aquelas cantadas de botequim que ele me deu foram elaboradas por um congressista?
-Para de se fazer de sonsa!
-Meça suas palavras, parceira!
-Eu não sou nada sua!
-Do seu marido, eu sou menos ainda! E eu não sei do que estou sendo acusada, pra começar!
-Dara, não se faz de besta, que eu parto sua cara!
-Querida, quem tem medo de mulher é homem sem-vergonha! Se você me ameaçar de novo, eu não só vou desviar teu septo nasal, como também quebrar esses óculos de professora de primário!
-Deixa meus óculos e meu marido em paz!
-Querida, seu marido não me serve nem pra pano de chão, tá legal?
-Mas o dinheiro dele cala muito bem esse nojo que você diz sentir por ele, não é?
-Do que é que você está falando, sua débil mental?- enquanto grita pausadamente, Dara não vê Antonio descendo às escadas para ouvir parte da conversa.
-Da quantia de um milhão de cruzeiros que você aceitou pra dormir com o meu homem! Agora nega na minha cara, Dara! Nega que o Felipe te deu esse dinheiro, que ele está na sua conta! Nega agora!

23/01/2016

MENTIRAS ESCANCARADAS/ CAPÍTULO IV: IʼM NEVER GONNA DANCE AGAIN



-Eu me recuso a acreditar que você me propôs isso. Mas também, não é, o que esperar de um cafajeste como você?
-Meritíssima, me escute... Se a senhorita pensa que eu não cumpro com as minhas promessas, está enganada. Eu sou um canalha de palavra.
-Não quero ouvir mais nada- abre a porta do carro novamente, mas é impedida por Coelho.
-Espera! Eu ainda não acabei de falar.
-Mas eu já! Aliás, eu não falo com protozoários como você. Me deixa passar.
-Não! Você pode até não acreditar, mas eu vou provar que posso desembolsar esse valor e te dar.
-Eu não estou à venda!
-Ah, por favor! Todo mundo tem seu preço, Meritíssima...
-Aí é que você se engana. Você, por exemplo, não vale o chão que pisa.
-Dara, Dara, Dara... Se você soubesse o que você é capaz de despertar nos homens, não perderia tanto tempo sendo exemplo de dignidade. Se você for boazinha comigo, eu posso até aumentar o valor da recompensa...
-Mais uma palavra, Coelho, e você vai ter que subornar o diretor do presídio. Por enquanto, trate de contar os trocados pra pagar a gorda indenização que Michele vai cobrar.
-Isso é antiético, sabia? Você está praticamente me dizendo que vai dar ganho de causa àquela golpista.
-Como se fosse difícil algum ser humano normal perceber que você não presta. Se você vier atrás de mim, eu processo você por assédio também. E ainda posso jogar você na cadeia por peita!
-Peito? Mas eu quero o corpo todo!
-Peita, imbecil!- puxa a porta do carro e volta pra casa.
-Conseguiu sentir ódio por mim... Isso deixa a brincadeira ainda mais divertida!

/////

Numa bela noite, Dara volta pra casa e encontra uma mesa preparada pelo seu hóspede.
-Antonio? Quem te ajudou a fazer a mesa?
-Pra ser bem sincero, o Corpo de Bombeiros.
-Como assim, Antonio?
-Tentei assar um hambúrguer. Incendiei a cozinha.
-Não tem problema, meu querido. A gente pede uma pizza. O importante é que você fez esse jantar lindo pra gente- só tem o pão e a salada- E ainda mais à luz de velas.
-Dara, é sobre isso que eu queria falar.
-O que você tem pra me dizer?- fica com a voz trêmula pensando que virá uma declaração.
-Acendi essas velas... Quer dizer, pedi pros bombeiros acenderem porque você se esqueceu de pagar a conta.
-Ah, é verdade, eu tava tão mergulhada nesses casos que eu esqueci.
-Mas não se preocupe, eu dei meu jeito de salvar a noite- tira do bolso um chocolate.
-Sonho de Valsa! Eu quero! Ai!- exprimindo um grito desses, a gente até entende por que Coelho quer tanto essa mulher.
-É todo seu. Mas não só ele. O meu reconhecimento, por tudo que você tem feito por mim.
-Vamos dividir? É muito chato comer sozinha.
-Pode ser- diz Antonio, encabulado.
Lentamente, Dara vai desembrulhando o chocolate e fazendo o engenheiro mastigar lentamente. Depois, põe a outra metade em seus próprios lábios quando "Careless Whisper" começa a tocar na rua.
-É o rapaz que vende macaxeira numa carroça toda noite. O marketing dele é bom, não acha?
-Sublime!- responde Antonio, se referindo a outra coisa...
-A gente poderia aproveitar a oportunidade, Antonio.
-Pra quê?- o tarado cego está com rojões na mão.
Dara puxa-o para uma dança ao som da canção oitentista. Inicialmente, Antonio sequer põe a mão na juíza, mas logo ela o toma e faz com que ele coloque cuidadosa e respeitosamente as mãos em sua cintura, enquanto ela leva as suas ao pescoço do rapaz. Tudo se encaminha para um beijo quando Dara diz...
-Vou limpar a cozinha pra fazer um bolo.
É, Antonio, não foi dessa vez. Acho que ela quer fazer um jogo contigo, garoto!

/////

Dr. Wilson é convocado para uma reunião emergencial na sala de Coelho.
-Vim o mais rápido que pude. O que houve de tão grave?
-Sente-se, Dr. Wilson. Eu preciso de um favor.
-O senhor me pedindo um favor?
-Tem razão. Eu mando nessa bagaça! Quero que você descubra o número da conta que Dara Lira tem no banco.
-A juíza responsável pelo seu processo? Mas por quê?
-Pretendo comprá-la, é claro. Mas não por conta do processo. É que eu quero ver se ela vai se manter íntegra diante de tanto dinheiro que eu pretendo dar.
-Dr. Coelho, eu não posso concordar com isso. É um ultraje!
-Ultraje, pra mim, é aquele que canta "pelado, pelado, nu com a mão no bolso". Dr. Wilson, eu não estou pedindo sua opinião profissional.
-Mas eu vou dar mesmo assim! Se essa história vai parar nos jornais, a sua carreira estará destruída. Eu tenho o direito de abrir seus olhos, Coelho!
-Nessa vida, você só tem dois direitos: o direito de não ter direito e o direito de não reclamar do dinheiro que tem. Você, além da minha mulher, sabe as minhas senhas de banco. Quero que você se certifique de qual é a conta de Dara e transfira um milhão de cruzeiros do meu dinheiro.
-Bom, eu posso demorar um tempo pra fazer a operação.
-Quando fizer, não avise nada a ela. E nada de comentar isso com Thaynara.
-O que pretende com essa armação?
-Forrar a cama da Meritíssima com um milhão de cruzeiros. E como diria... Não faço a menor ideia de quem... "Quem boa cama faz, nela dorme"!

/////

-Seu cartão foi recusado- a vendedora do Atacado Dos presentes avisa à Thaynara.
-Como assim?
-Parece que seu marido não pagou a fatura.
-Aposto que deve ter comprado algum presente caro pra uma das amantes. Mas não se preocupe, que vai ser hoje!
-É hoje o quê?
-Que eu vou rodar a baiana, a nordestina, a brasileira, o que for! Não aguento mais essas cenas em que estou fazendo compras e sinto o cheiro da gaia! Sem falar que "Careless Whisper" está tocando há dois capítulos seguidos. Vou reclamar com o autor da novela e exigir que ele aumente meu papel, porque senão eu vou revelar para todo o Brasil que ele já teve um caso tórrido com uma tal de Ariela!- sai da loja, enfurecida.
Não tive caso com Ariela nenhuma. Isso é fruto da imaginação dos espectadores de "Tempo Perdido", outra trama que escrevi. Não é porque "Mentiras Escancaradas" é baseada em pessoas reais que todas são. Vou chamar meu advogado, se bem que...

/////

 ...Eu poderia contatar Dr. Wilson, já que é o único advogado que conheço. Só não sei onde fica o escritório dele, mas vamos seguir Thaynara, que apareceu por lá com um vestido preto curto (até para os padrões dos anos 90) com umas ombreiras toscas e botas. Qualquer hora dessas, ela aparece cantando lambada no "Globo de Ouro"!
Mas vamos partir do pressuposto de que você não faz a menor ideia do que estou falando por não saber o que se passava na década de ambientação, atendo-se somente à estória. Muito bem: Thaynara vem com esse figurino provocante e entra na sala do Dr. Wilson.
-Será que o senhor tem um tempinho?
-Claro, senhora. Fique à vontade.
-Hum, tirou as palavras da minha boca- e desabotoa alguns botões. Começa a tocar qualquer coisa do Kenny G na hora porque não vamos repetir canções novamente.
-O que... – Dr. Wilson solta um pigarro- O que a senhora deseja de mim, Dona Thaynara?
-Coisa simples: seu corpo em pelo- abraça o advogado.
-Contenha-se, Dona Thaynara! Seu marido é meu cliente!
-Seu excesso de ética é bem instigante. Por isso que eu vim te procurar.
-O que a senhora quer de mim?
-Sabe que se essa ombreira bater no seu olho, eu te cego, não sabe? Então, desembucha! Fala de uma vez por que meu cartão de crédito foi recusado!
-As máquinas da Cielo ainda não existem, como quer que a tecnologia atue a seu favor?
-Dr. Wilson, Dr. Wilson... Você convive mais com o Felipe do que eu, que sou a esposa. Por que não pagou as contas? Meu marido estampou a capa da Forbes do mês passado, por causa dos lucros exorbitantes que a Play Pause vem tendo no primeiro semestre de 1990. O que aconteceu? O que Felipe está fazendo com o dinheiro? Se você me contar, vai ganhar uma bela recompensa: eu, embrulhada pra presente. Ou melhor: sem embrulho nenhum!
-Não vou compactuar com essa baixaria! Trate de se conter, porque eu ajo com precisa honestidade. Não preciso que a senhora tente me comprar com favores íntimos...
-Então, é melhor abrir a boca pelo bem da sua integridade moral! E física também!- segura o pescoço do advogado- Fala de uma vez o que é que Felipe anda aprontando!
-O Dr. Coelho quer comprar a juíza! Me pediu pra colocar um milhão de cruzeiros na conta dela!
-Felipe pediu isso pro senhor?- Thaynara se mostra incrédula.
-Na verdade,exigiu por ser meu cliente.
-Mas... – solta o pescoço do advogado- Felipe está pagando muito pela mudança de veredicto da juíza.
-Dara não é mais inimiga declarada do seu marido, e sim objeto de desejo dele.
-E de quem ela não é, não é mesmo? Mas espera aí... Você tá me dizendo que... A filha da mãe tá tendo um caso com Felipe?

16/01/2016

MENTIRAS ESCANCARADAS/ CAPÍTULO III: AGORA AGUENTA, CORAÇÃO, JÁ QUE INVENTOU ESSA PAIXÃO!

-Como assim? Acho que eu não ouvi direito.
-Aproveita, porque ouvir é só o que você vai fazer nos próximos capítulos. Você não pode ficar sozinho em casa. A solução vai ser morar com alguém que você conheça.
-Mas eu sou de outra cidade, minha família nem sabe que eu me acidentei.
-Percebi quando não vi ninguém chegando pra te ver.
-Onde você sugere que eu fique?
-Na minha casa, por que não?
-Não, eu não quero abusar. Você já salvou a minha vida, isso é muito. E eu não quero incomodar, não quero que você falte o trabalho, nem...
-Calma. Eu já disse que você não pode ficar sozinho. Pelo menos, não o tempo todo. Dá muito bem pra eu ir trabalhar e ficar o resto do tempo com você.
-Sinceramente, eu não entendo por que tanta atenção comigo.
-Olha, Antonio, não me pergunta porque eu não sei. Por algum motivo, eu simpatizei com você. Assim, do nada. De graça.
-Talvez porque esteja no roteiro.
-Hum, é bem provável. Mas por alguma razão bem estranha, eu não consigo me distanciar de você.
Dara passa a mão no rosto do engenheiro.
-Como é que eu faço pra te agradecer?
-Você pode nem ter notado, mas esse sorriso que você acabou de dar, sobre essa barba mal feita, já me fez ganhar o dia.

DIAS DEPOIS...

O advogado de Coelho o acompanha à audiência que será comandada por Dara. Ambos chegam ao fórum, onde já estão presentes Michele e o defensor público. Todos aguardam a permissão do guarda para entrarem no recinto.
-A juíza Dara Lira está à espera de vocês. Por favor, me acompanhem.
Dara está de costas para todos, amarrando a cobiçadíssima juba. Eis que a Gata do Campeonato Brasileiro de 1990 (conhecida entre os mais chegados como "A Felina da OAB") coloca os óculos e exibe o rosto quase sem maquiagem alguma...
-Claro! É uma audiência, não uma gravação de "Rainha da Sucata"! Bom dia a todos.
-Bom dia- respondem os quatro.
-Hum, vejamos os autos do processo. Felipe Almeida Coelho: diretor presidente da revista Play Pause, voltada para o público masculino e adjacências, é acusado formalmente de assédio contra a modelo sem passagem em agência Michele Bezerra. A reclamante alega que, em troca da assinatura de um contrato que visava à realização de um ensaio, Coelho tentou agarrá-la, vou rebolar só porque você não gosta; se não quiser me olhar, fica de costas e todo aquele blá blá blá! Pois muito bem. O que o réu tem a dizer em sua defesa?
-Meritíssima, o meu cliente foi vítima de uma armação planejada por essa emergente, que só pensa em extorquir...
-Fui pouco clara, Dr. Wilson? Eu fiz uma pergunta ao réu, não ao senhor. Limite-se a falar quando por mim for questionado.
-Desculpe, Meritíssima.
-Me desculpe o tom adotado também, mas é que eu adoro ser mandona. Dr. Coelho, espero sua resposta.
-Que calor é esse, Doutora? Tem como abrir a janela?
-Não. Todas do Fórum estão emperradas. Aconselho a se abanar com um leque ou abrir a camisa. Mas não se empolgue pra ficar nu. Isso não é um capítulo de "Pantanal"! Mas concordo. Essa quintura é horrível! Meus fios loiros pedem pra respirar...
Ao som de "Careless Whisper", a juíza solta o cabelo e hipnotiza os homens presentes.
-Confio mais no meu silicone no que no cabelo dela- pensa Michele, em voz alta. A gente ouviu.
-Falou alguma coisa, recalcada?
-A senhora me chamou de recalcada? Por favor, Dona Juíza, eu não tenho inveja da senhora, nem um pouco.
-Recalque nada mais é do que a frustração em não ter seus anseios realizados. Difere da inveja, que é o desejo de obter para si o que pertence ao outro. Da próxima vez que quiser ser mais esperta do que eu, vou atirar o dicionário na sua cara!
-Meritíssima, infelizmente a defesa da reclamante impediu que eu trouxesse a testemunha do fato.
-Thaynara, a esposa dele? Querido, ela seria barrada. Está na cara que defenderia o marido. Bem, eu já tenho um veredicto: darei ganho de causa à modelo Michele Bezerra, marcando para qualquer dia desses uma audiência para discutir o preço da indenização que o Sr. Coelho pagará, porque é claro que essa mocinha pretende cobrar, não é?
-Certamente, Meritíssima!- o defensor público finalmente abre a boca!
-A senhora não pode fazer isso com meu cliente!
-Claro que posso, ele tem cara de safado! Seu cliente é 99% cafajeste, mas com aquele 1% de vergonha alheia! Caso encerrado!- bate o martelo.
-Isso é um absurdo! Saiba que eu vou recorrer da sentença!
-Recorra mesmo, Dr. Wilson. Afinal, vou ter mais chances de rever essa belezinha... – Coelho observa Dara indo embora.
-Belezinha? Você deveria pegar pena máxima por esse adjetivo idiota! Essa mulher é apoteoticamente fantástica!

/////

Passeando por uma unidade das lojas Mesbla, Thaynara anda com um carrinho repleto de fitas VHS, com clássicos como "O beijo da mulher-aranha" e "O exterminador do futuro"- ninguém se importa com os títulos, a preocupação mesmo é a atividade que hoje nem existe mais.
Sem titubear, a coitada (que não deu as caras no capítulo anterior) começa a sentir uma coceira na testa.
-Felipe vai aprontar alguma. Se não tiver aprontado já...

/////

Fechando apressadamente a maleta e se dirigindo ao seu automóvel, Dara é parada no estacionamento por Felipe.
-Meritíssima!
-Pois não?
-Acho que preciso me retratar pela péssima impressão que teve de mim no fórum.
-Dr. Coelho, como juíza, eu preciso lidar com obviedades. Não tente me engabelar porque está na cara que não cometi equívocos a seu respeito. O senhor é um cabra safado mesmo!
-Realmente, eu não queria que pensasse mal de mim.
-Se sua intenção é fazer com que eu mude de ideia, desista. Já bati o martelo. Aliás, bati o martelo que uso pra amaciar a carne, porque o verdadeiro eu não encontrei.
-Vejo que você consegue me ler melhor do que ninguém. Mas não se engane. Pago o que for preciso pra me ver livre daquela golpista. Dessa vez, a justiça não funcionou.
-Quanto a isso, não se preocupe. Acredito que não devam cobrar ao senhor mais do que trezentos mil... Uma bagatela se comparada ao lucro exorbitante de sua revista.
-Que tal um milhão de cruzeiros?
-Nossa! Mas o senhor está disposto a limpar a barra com essa tal de Michele, hein?
-Com ela, não. Com você.
-Se pensa que me comprando, eu vou mudar o veredicto do caso, está muito enganado.
-Vem cá, você é burra ou se faz?
-Tem noção de que está desrespeitando uma autoridade?
-Claro que tenho, eu não conheço limites. Eu não me importo de calar a boca daquela mulher... Desde que a sua esteja colada na minha. Ou você pensa que esses lábios vermelhos não chamaram a minha atenção naquela audiência?
-É o Batom Boka Loka, está fora de moda desde 1986! Agora, eu sou obrigada a ver um tarado prestando atenção nos meus lábios? Dá licença que eu tenho mais o que fazer!- Dara tenta abrir a porta do carro, mas o empresário bate com força, colocando-se na frente da juíza.
-Um milhão por algo que não vai te custar tanto. Afinal, ninguém exala tanta feminilidade quanto a senhorita, Meritíssima. Um milhão por uma única noite.

09/01/2016

MENTIRAS ESCANCARADAS/ CAPÍTULO II: EU NÃO TE ESPERO, COMO EU TE QUERO

Dara não tem dúvidas: trata de agarrar Antonio.
Calma, não é isso que você está pensando. Ela carrega o rapaz no colo e o põe em seu automóvel. Logo em seguida, liga para o Corpo de Bombeiros.
-Por favor, teve uma explosão aqui no viaduto do Cabanga.
-A que horas foi a ocorrência?
-Agora há pouco, eu estava passando de carro e escutei o barulho.
-Está conseguindo ver alguma vítima?
-Não, está um nevoeiro muito forte. Mas venham rápido, pode ser que tenham mais explosões.
-Já estamos indo pra aí. Se encontrar alguém aí, não o remova do local. Pode ser prejudicial.
-OK- desliga o celular-tijolo da Motorola- Tá louco que eu vou ficar esperando? Esse rapaz tá sangrando muito, eu não vou esperar... Vou levar ele pro Hospital Português agora!
Dara dirige o carro. Mas, se nos ativermos ao texto, perceberemos que a fala da protagonista é tão explicadinha que chegamos a pensar que o médico é o Roberto Leal!

/////

Já na Defensoria Pública do Estado, o clima também é um tanto tenso. Michele aparece e consegue falar com o advogado.
-Por favor, sente-se.
-Doutor, tem como me ajudar?
-Primeiro, me diga o que a trouxe até aqui.
-É o seguinte: eu quero entrar com um processo contra o Felipe Almeida Coelho, o dono da revista Play Pause.
-Por qual motivo?
-Estive na sala dele, negociando o contrato para o meu ensaio sensual, e ele me agarrou.
-Pode isso, Arnaldo?
-Mas o pior eu ainda não lhe contei: a esposa dele entrou e acreditou que eu estivesse dando em cima dele. Claro, ele deu uma desculpa qualquer e a besta acreditou.
-Pois bem. Eu farei com que o Dr. Coelho seja chamado para depor na delegacia sobre a sua acusação. E creio que, em breve, ele estará diante de um juiz. A julgar pelo caso, tudo indica que a juíza Dara Lira será a responsável pelo acompanhamento do processo.
-Tem mais uma coisa que eu exijo, Doutor.
-Peça.
-Deixe de começar todas as frases com a letra P. Se isso é alguma estratégia para chamar a atenção dos interlocutores e se tornar um personagem indispensável na história, desista.
-Foi mal...

/////

No Hospital Português, Dara está apreensiva à espera de notícias sobre o estado de saúde de Antonio. Logo, se aproxima o médico.
-Por favor, Doutor... É... - põe os óculos- Fabiano Santarém.
-Nossa, a senhorita se aproximou tanto do meu jaleco. Sua miopia é tão grave assim?
-Não, eu só pus os óculos porque homens acham mulheres de óculos bem atraentes, e eu alcançarei o público masculino que está nesse momento vendo "Supercine".
-É... Acredito que você seja a acompanhante de Antonio.
-Esse é o nome dele? Eu não sei, eu o encontrei desacordado na estrada.
-A senhorita tem ideia do risco que fez esse rapaz correr? Não poderia tê-lo removido do local do acidente.
-O que o senhor queria que eu fizesse? Deixasse ele lá, até que outra pedra atingisse a cabeça dele?
-Pois é sobre isso que eu preciso conversar com você.
-Qual é o problema? Esse tal de Antonio não vai sobreviver?
--Sim, vai. Mas é preciso mais alguns exames para conformar a minha suspeita.
-Do que está desconfiando?
-O rapaz que a senhorita trouxe sofreu uma lesão um pouco grave na região occipital do crânio. Quando atingida fortemente, por meio de algum trauma físico ou de natureza psíquica, essa região pode desenvolver uma ligeira afetação.
-Ele vai desmunhecar?
-Não é nesse sentido. Quis dizer que um dos cinco sentidos será temporariamente desligado. Sendo assim, é necessário conversar com o paciente para que ele se adeque à situação, mesmo que por alguns dias.
-E qual sentido normalmente é o mais afetado, Doutor?
-ALGUÉM ABRE A JANELA!!!!!!!!- grita Antonio.
-Visão.
-Ah, coitado. Ele precisa de assistência.
-Se quiser, eu posso recomendar uma enfermeira particular.
-Não. Deixa que eu cuido dele.
-Mas a senhorita nem o conhece direito.
-Disso eu sei, mas... Sei lá. Alguma coisa nele me encantou. Talvez a beleza.
-Queira me desculpar, mas em matéria de beleza, a senhorita dá de dez a zero em qualquer ser vivente desse planeta. Homem, então, nem se fala.
-Humpf! Mas será possível que só eu não percebo essa beleza que os homens tanto veem em mim?
-Sim, só você, a modesta, a Luiza Brunet do judiciário, a Xuxa Meneghel do Direito, a Luma de Oliveira da OAB, a Vera Fischer da Vara de Família, a Caroline do Raça Negra!

/////

Coelho fica inconformado ao receber a intimação de um oficial de justiça no seu ambiente de trabalho (harém):
-Depoimento?Escuta aqui: o senhor tem ideia de quantas tiragens eu ainda tenho que imprimir nesse mês? Eu sou um homem de princípios familiares, éticos e editoriais. O que essa mulher está alegando é uma calúnia.
-Sendo mentira ou não, é diante da justiça que o senhor tem que explicar a acusação dessa moça...
-Que é absurdamente leviana!
-O senhor disse "leviana"?
-Sim, e sabe por quê? Porque ela queria fazer mil loucuras comigo na cama...
-Prefiro acreditar que você ainda me ama- o oficial canta.
-Pois, apesar de tudo, eu sinto a sua falta...
-LEVIANA!- ambos cantam... Ou melhor, gritam.
Essa música é da década seguinte. Podem parar!
-Está bem, então... Comparecerei ao local indicado, e me prostrarei diante do juiz. Mas já vou logo avisando: eu sou ótimo para convencer as pessoas, do que quer que seja.
-Se eu fosse o senhor, não contaria com isso. Não sabe quem vai julgar a causa dessa moça.
-Seja quem for, eu compro... Com a minha honestidade, é claro. Eu sou um homem de bem, que lê mangás proibidos em secreto, nada além disso. Michele que se prepare, pois pretendo acioná-la na justiça por calúnia e difamação.

/////

Estonteante até para a ocasião que nem pede tanto, Dara entra no quarto onde está Antonio.
-Dara?- a palavra proferida assusta a juíza- É você que tá chegando perto de mim?
-Como sabe meu nome?
-O médico me contou.
-Não se preocupe. Ele contou que essa cegueira é temporária.
-Ele também me disse que... Que foi você que me salvou.
-Foi. Eu não podia deixar você naquele estado, sozinho, esperando uma ajuda. Pensei que seu caso fosse mais grave, mas...
-O pior é que eu estou sem notícias de como estão os operários da obra.
-O doutor me contou que todos tiveram ferimentos leves. Só você que teve de ficar internado.
-Será que ele tem ideia de quando eu vou voltar a ver?
-Deve demorar alguns dias. Mas o importante é você ficar de repouso absoluto.
-Uma pena que eu não possa te ver. Ainda mais porque o médico falou que você é muito bonita.
-Começo a achar que esse médico é meio tarado.
-Só espero que não fique muito tempo sem trabalhar.
-Vai ficar o tempo necessário em casa. Só precisa de uma pessoa pra te ajudar.
-Por que você não fica comigo?


02/01/2016

MENTIRAS ESCANCARADAS/ CAPÍTULO I: ALL DAY, ALL DAY


"All day, all day"!
É ao som desse refrão que Dara coloca o LP internacional de "O Salvador da Pátria" pra tocar na vitrola, selecionando justamente "Domino Dancing", a primeira canção do lado B. Animada com a execução da faixa, toma banho animadamente. Debaixo da água, a juba que ostenta é momentaneamente acalmada. Antes de sair do banheiro, ainda ao som da canção do Pet Shop Boys que dura sete minutos, passa o rodo no local e continua pulando animadamente.
LP? Vitrola? "O Salvador da Pátria"? "Domino Dancing"? Lado B? Se estranhar tudo isso, saiba: estamos em 1990! Se estiver esperando encontros amorosos marcados pelo celular, esqueça. Primeiro porque WhatsApp está aí pra sair do ar a qualquer momento e segundo porque Dara pode ter uma condição financeira maravilhosa devido ao trabalho de juíza, mas carregaria um tijolo de grandes proporções caso quisesse falar com alguém.
A ideia da nossa musa vintage é pôr um vestido amarelo longo, de largas mangas e sem decote, porém feito sob medida para um corpo escultural, realçado pelo ar rústico da bela juíza. O intuito não é ser sexy sem ser vulgar, mesmo porque essa gíria nem existia em 1990. Dara pegou a primeira coisa que viu no guarda-roupa. E sejamos sinceros, as demais roupas amontoadas seguem o mesmo estilo.
O toque final para mais um dia na Vara Criminal da Comunidade do Pantanal (ela já existia? Não sei!) virá quando se olha no espelho e resolve passar o pente. No entanto, comenta consigo própria:
-Pra quê isso?- atira o pente longe e pega a maleta preta, para em seguida trancar sua casa e desfilar com sua maleta preta, entrando num Gol lançado quatro anos antes.

/////

Na sala do empresário Felipe Almeida Coelho, há a visita da bela Michele. Claro, não mais bela que a nossa protagonista cabeluda.
-Por favor, sente-se.
-Obrigada.
-Você quer uma água, um café?
-Não, obrigada. Ai, eu não consigo disfarçar, né? Vou ser capa da mais conceituada revista masculina desse país.
-Pois é. E é melhor você aproveitar essa chance, antes que as siliconadas e as marombadas tomem essa revista para si.
-Esse é o contrato?
-Exatamente, Michele.
-Onde é que eu assino?
-Calma. Não vá com tanta sede ao pote. Antes, você precisa fazer uma coisa pra mim. Ou melhor, por nós- o empresário levanta e fecha as cortinas da sua sala. Em seguida, vai para o LP e coloca "Só Louco" pra tocar na vitrola. A sala fica à meia-luz- Já reparou que essa trama tem uma vibe tão nostálgica que volta e meia alguém está acionando uma vitrola?
-Dr. Felipe, o que é que o senhor está fazendo?
-Como você é ingênua... Acha mesmo que pra posar na revista basta ter um corpo bonito? Não, minha querida. Aqui, é necessário fazer um teste de fábrica!
-O senhor não pode fazer isso comigo. A classificação indicativa dessa história é livre, eu não vou fazer nada que eu não queira!
-Vamos ver se não!- agarra a modelo.
-Me solta! Eu sou a próxima Garota do Fantástico! Me larga!
-O que está acontecendo aqui?- Thaynara, a esposa de Felipe, chega para acabar com a algazarra.
-Meu amor, que bom que você chegou!
-A senhora é esposa desse canalha? Pois saiba que ele tentou me agarrar! Aliás, conseguiu!
-De novo, Felipe? Assim não dá! Já não consigo passar pela porta de tanto chifre!
-Thaynara, você não pode acreditar mais numa aspirante a modelo do que na palavra do seu marido!
-No quesito "palavra", Felipe, até um dicionário tem mais do que você! E quanto a você, saia agora mesmo da sala do meu marido.
-Saio, sim! Saio com gosto! Mas isso não vai ficar assim. Eu vou processar esse pilantra por assédio! Seu nome não vai mais sair da pauta do "Jornal Nacional"!
-Acho difícil. O Collor anda mais perseguido do que eu ultimamente.
-Olha aqui, sua...  Nem ouse manchar a reputação da revista do meu marido com sua acusação leviana!
-Leviana? A senhora me viu sendo agarrada por esse cafajeste e quem está entendendo tudo errado sou eu?
-Ah, vá! Quem é que me garante que não foi você quem o incitou a esse comportamento libidinoso?
-Quer saber? Um canalha e uma corna são difíceis de aturar, mas uma porta que nem essa mulher não dá! Pode aguardar a notificação judicial no seu escritório, Dr. Felipe! Juro que o senhor vai me pagar, e com juros, por essa humilhação. Cafajeste!- Michele os deixa a sós.
-Por que você está me olhando assim? Eu não fiz nada com essa moça.
-Felipe, não é a primeira vez que eu te pego nessa situação, e eu só não corto o mal pela raiz porque tem criança acordada a essa hora vendo suas presepadas! Como é que você tem coragem de manchar a reputação da revista dessa forma? O que vão pensar?
-Thaynara, essa moça está mentindo. Eu juro que sou inocente...
-Tá botando os dedos pra trás por quê? Não jure em falso, seu canalha! Foi exatamente assim que você me conheceu.
-Não, senhora.  Você era modelo, eu já era um fotografo conceituado, mas você não se atirou pra cima de mim, como essa aproveitadora fez!
-Chega de testar a minha paciência, Felipe! Pensa que eu não sei das vezes que você chega tarde em casa por estar com outras?
-Você só pode ter ficado maluca... E ainda quer que eu seja conivente com essa loucura...
-Presta atenção, Felipe... Olha pra mim, filho da mãe! Eu posso te apoiar publicamente se essa moça cumprir com a promessa de te processar... Posso ignorar também todas as vezes que você me fez de palhaça... Mas se eu descobrir mais uma escapada sua, por menor que seja, eu acabo com você. Com você e essa revista!
-Quem você pensa que é pra me ameaçar? Hein? Se eu fosse você, não subestimaria o poder de um homem como eu!
-Não me julgue por não ser tão baixa quanto você, Felipe! Não ouse!- Thaynara pega um vaso e atira contra a vitrola- E tira essa música, é dos anos setenta e não condiz com a ambientação da novela!- volta a pôr a bolsa no ombro e se retira da redação da revista.
-Coitada... Ela pensa que me mete medo.
-Eu estou ouvindo, pilantra!

/////

O jovem engenheiro Antonio supervisiona a reforma no Viaduto do Cabanga naquele 1990 (existia já? Não  me aterei à lógica, nem sei o que faz um engenheiro...).
-Vê só, se não quer ser prejudicado pela falta de verossimilhança, pelo menos não deixe eu ser engolido por nenhum coadjuvante. Eu sou o protagonista...
Não, você é o mocinho chorão. Quem reina nessa baderna é Dara. Agora se concentre na sua fala!
-Bom dia, Seu Silviano.
-Opa, Doutor. Bom, dia.
-Já colocou os explosivos pra liberar o espaço da rua?
-Ah, sim. Eles serão acionados em dez segundos. Só estava esperando sua confirmação- Silviano aperta o botão.
-Silviano, você tem certeza que os concretos não vão voar tão longe assim?
-Com certeza, Doutor. Eles alcançam, no máximo, trinta metros de distância.
-E a quantos estamos do viaduto?
-Vinte e nove centímetros.
-Ainda bem que todas essas falas couberam em dez segundos.
-É o pacto ficcional.
Obviamente, a explosão ocorre e acaba vitimando alguém. No caso, Antonio, que leva uma pancada na cabeça, e desfalece em meio ao nevoeiro...
Dara tenta chegar ao fórum e vê aquele pedregulho todo. Assustada, desce do carro e a única pessoa que consegue ver é Antonio. Corre para socorrê-lo. Toca levemente o seu rosto algumas vezes, sem êxito.