Os jovens que estão na praça aparentam certo entrosamento. Júlia fica ao lado das duas irmãs, que estão à sua direita, enquanto Nuno está junto de Luiza. No banco que está diante destes que foram mencionados, permanecem sentados Beto e Hugo.
-Quer dizer que vocês vieram morar aqui de vez com o Dr. César?- Júlia começa a disfarçar que está bem informada- Ele sempre falou bem de vocês.
-Pois é- responde Talita, um pouco tímida- E vocês moram aqui no prédio também?
-Eu não- Beto esclarece- Mas vez ou outra eu dou uma passadinha aqui. Júlia e eu fazemos o mesmo curso na faculdade: Jornalismo.
-Que massa. Também tô pensando em fazer pra essa área. Mas é só no ano que vem ainda.
-E os outros dois?- questiona Luiza, voltando-se para a direção de onde Nuno e Hugo estão.
-Sou irmão da Júlia. A gente divide o apartamento juntos. E ele é Hugo. Mora aqui no prédio também.
-Prazer- Hugo cumprimenta através da Língua Brasileira de Sinais.
-O que é que ele disse?-Talita desconhece o significado do gesto.
-Hugo é surdo desde criança. Quis dizer “prazer”.
-Ah, minha filha, só com Nuno do lado, porque ninguém entende nada do que esse daí diz- Júlia esclarece a proximidade entre os amigos.
-Júlia, ele sabe leitura labial. Cuidado com o que fala... –Nuno lembra a irmã.
-Mas não é?
-É que tanto eu quanto o Hugo somos videomakers. Ele ainda tem um canal em que ele traduz músicas gospel pra Libras; daí, eu dirijo e edito.
-Bacana- afirma Luiza, com certa timidez diante de Nuno.
-Sabe no que eu tava reparando? Que desde que vocês chegaram não colocaram o pé pra fora do prédio, só hoje- Júlia resolve tocar no assunto.
-Mas é que a gente ainda “tá” de luto- diz Talita.
-Se quiser companhia pra conhecer a cidade... – Beto fala olhando para Talita, até perceber que Luiza percebe uma intenção oculta e tenta reformular o convite- Quer dizer, se vocês tiverem afim...
-Aproveita que é aniversário da Júlia no sábado e chama elas, Nuno- Hugo gesticula.
-O que é que ele tá dizendo, Nuno?- Júlia pergunta, sem muita paciência com o amigo do irmão.
-Só tá me dando uma ideia. Ótima ideia- comemora Nuno, visando uma oportunidade de se aproximar de Luiza. Esta repara na troca de olhares existentes entre Beto e Talita. Fátima os vigia da varanda de seu apartamento.
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Passados alguns dias, Fátima arruma o seu próprio quarto, e conta com a ajuda de Luiza para a tarefa doméstica. A tia limpa um abajur enquanto a sobrinha guarda na gaveta papeis que estão sobre a cama.
-Não precisa me ajudar, não, meu amor. Você chegou cansada da escola, junto com sua irmã.
-Imagina. A senhora tá sempre fazendo tudo sozinha, não conta com a ajuda de ninguém. Bem que podia pedir pro meu pai pagar uma empregada, não é?
-De jeito nenhum. Adoro cuidar da casa, dos afazeres domésticos. Não consigo me ver fazendo outra coisa.
-Já tentou fazer outra coisa?
-Quando eu tinha sua idade, até pensava em ser médica, acredita? Mas eu não consegui passar, mesmo tentando duas vezes. Depois disso, eu desencanei, como vocês costumam dizer. E também, alguém precisa organizar a vida do César.
-Tá bom, então- fala pesarosamente- Olha, Tia, onde é que eu guardo essas contas de água e de luz?
-Pode botar na terceira gaveta mesmo. Depois eu organizo melhor.
Luiza abre a gaveta indicada e encontra uma caixa marrom. Curiosa, retira o objeto e o abre, enquanto a tia está de costas, prestes a pegar uma vassoura encostada à parede.
-Tia, o que é isso?- procura saber o motivo da tia ter um objeto do tipo em seu quarto.
Fátima se assusta ao ver a sobrinha com um revólver na mão.
-Larga isso!- toma a arma de Luiza- Deixa eu colocar aqui na caixa...
-É seu?
-É, é meu- fecha a caixa e guarda na gaveta.
-Por que você guarda um troço desses?
-Pro caso de um ladrão invadir a casa. César e eu temos porte de arma.
-Verdade- Luiza continua desconfiada.
Talita entra no quarto.
-Lu, você viu onde eu deixei meu celular?
-No lugar onde você deixa sempre que a gente vai pra aula: a bolsa.
-Ah, é! Eu cheguei “em” casa e não me toquei de tirar ele de lá. Brigada, Lu- beija a irmã na testa.
-Ei, menina!- Fátima chama a sobrinha- Não vai almoçar, não? Chegou e não comeu nada.
-Daqui a pouco. Eu vou dar uma olhadinha no Whats e coloco o almoço já, já- Talita sai apressadamente.
-O que deu nessa menina?
-Trocou o telefone com Beto, aquele rapaz que estuda com Júlia.
-Quanta empolgação, hein? Mas isso é bom. Desde que ela chegou, eu ainda não tinha visto Talita sorrindo. Tomara que esse rapaz faça bem a ela.
-Também tô nessa torcida, Tia.
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Luiza está fazendo uma pesquisa no computador enquanto Talita está ouvindo música através do seu celular, sentada no sofá da sala.
-Talita, vem me ajudar, por favor. O trabalho é pra amanhã.
-Tá vendo você? Eu disse que a gente podia ter terminado na sexta-feira mesmo. Já adiantei a minha parte faz é tempo.
-Sim, mas a sua parte foi a mais fácil de fazer. Você bem que podia me dar uma forcinha, esse negócio dos prefeitos que governaram a capital na década de 60 é insuportável.
-Poxa, Lu, já é domingo de noite, né?
-Já sei por que você não quer vir pra cá. Tá esperando Beto ligar ou mandar uma mensagem, não tá, não?
-Ele falou que por enquanto vai resolver o problema do projeto dele com Julinha, depois vai marcar de passar aqui.
-“Julinha”, é? A vizinha virou sua BFF agora?
-Para de implicar com a menina, Lu. Achei ela bem simpática. Ela e o irmão.
-Credo, você vai com a cara de todo mundo.
-Aliás, o Nuno... Nuno é o nome dele, né? Bem que eu reparei o jeito que ele te olhou naquele dia...
- Pronto!- Luiza se mostra decepcionada com o comentário da irmã.
-Nem venha, viu, Dona Luiza? Nem venha que você também reparou.-Prestes a ser reprovada em História e você falando de “omi”? Querida, melhore!
Toca a campainha.
-Pode deixar que eu atendo- Talita corre pra abrir a porta- Oi, Nuno.
-Tudo bom, Talita? Tua irmã tá aí?
-Lu, vem cá!- pede Talita, virando-se para a irmã.
-O que foi?- sai da frente do computador, dirige-se até a porta e olha para Nuno- Oi.
-Oi.- responde timidamente.
-Você queria falar com ela, Nuno?
Fátima sai da cozinha e presencia a conversa.
-Sim... Quer dizer... Olha, a Júlia vai fazer uma reuniãozinha lá em casa no sábado, pra comemorar o aniversário dela. Vocês duas tão convidadas.
-Sério? Que massa, Nuno. Depois eu passo lá pra agradecer pessoalmente. A gente vai, sim.
-Sei, não, Talita. Tenho que estudar pras provas, é a semana inteira... – Luiza foge do convite
-Um dia só não vai te trazer problema na escola, Luiza.
-E depois, a gente tem que pedir permissão à...
-Não tem problema, minha filha- intercede Fátima, simpatizando com Nuno- É aqui mesmo no prédio. Não vejo motivo pra não ir.
-Aceita, Lu, a gente sai tão pouco de casa desde que veio pra cá...
-E então. Luiza?- Nuno demonstra curiosidade- Você vai com a sua irmã ou não?
DEPOIMENTO
"Se tem uma coisa que eu sempre fui, à minha vida inteira, foi desleixada. Me arrumar, até que eu me arrumava, mas com outro objetivo, sabe? Me sentir bem sozinha, comigo mesma. Quando eu era adolescente, minhas amigas sempre davam um jeito de usar a roupa da moda, imitar o cabelo que a artista da novela tinha, ou a cantora que emplacava qualquer música na rádio. Meu plano era simples, e ao mesmo tempo ambicioso: só queria ser eu mesma. Mas para todos, eu tinha que ter um público interessado em mim, pra tudo o que eu fizesse. Uma vez, eu fui ao shopping com uma amiga e estava usando uma blusa de botão atacada até o pescoço. Quando eu cheguei, toda composta, até que ela disfarçou, sabe? Mas depois de percorrer umas lojas, ela desatacou dois botões e disse: ʻos homens estão passando e te achando bonitaʼ. Uma coisa que eu sempre gostei de fazer foi ajudar no serviço da casa. Até minha mãe um dia disse que se eu não me entrosasse e não cuidasse de mim, nenhum homem ia me reparar. E eu podia ser a mulher mais bonita de todas. Daí, eu pergunto: por que eu tenho que me mostrar pros outros que eu sou bonita, e não pra mim? Eu sou menos mulher por isso? Meu nome é Roberta e viver à sombra do que os outros vão achar da minha aparência é a minha luta diária."
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