Nem
mesmo Sal acredita no que acaba de fazer. O disparo acabou por acertar a
modelo, que já cai ao chão sem vida. Lipe levanta-se e puxa o irmão para que
ele corra até o corpo e tire a bolsa das mãos de Victória, na tentativa de
simular um assalto.
-“Vambora”
daqui, Lipe! Anda!- declara Sal, saindo com o irmão por um beco localizado nas
proximidades da rua do colégio. Alunos ouvem o disparo e correm para ver se há
alguma pessoa ferida. Ao constatarem que se trata de Victória, entram em
desespero e acionam uma ambulância, em um esforço inútil.
-Gabriela,
eu não acho que seja a hora da gente conversar sobre isso.
-Por
que não, Eduardo?
-O
que você viveu foi muito forte, violento e... Eu não quero que você sofra mais
uma decepção.
-Mais
cedo ou mais tarde, eu vou descobrir. Melhor que você me conte agora. O que é
que vocês dois foram fazer na casa do Fábio ontem à noite?
-Tudo
bem. Vai ser difícil pra mim ter que contar, mas não tem outro jeito... Assim
que você saiu de casa, o Seu Caio e a Dona Alice foram falar contigo.
-Eles
foram lá em casa? Depois de tudo o que houve com a Mãe? Então, deve ter sido
uma coisa bem séria mesmo...
-Gabriela,
talvez o que eu vá te contar agora ajude você a entender por que, de uns tempos
pra cá, o Fábio tá tão estranho com você. Aliás, com todo mundo.
-Tem
algum jeito de entender, Eduardo? Alguma justificativa, por acaso? Fábio foi
muito canalha comigo, o que ele tentou fazer não tem desculpa.
-Gabriela,
me ouve. A questão é mais grave do que a gente pensa.
-Eu
sei bem o que tá rolando com ele.
-Sabe?
-Ontem
à noite, ele veio com uma conversa estranha.
-Ele
te contou que teve uma discussão com os pais mais cedo?
-É,
tinha falado pra mim.
-Te
disse por quê?
-Deve
ter sido por causa da separação, mas isso não importa pra mim. O que não me sai
da cabeça é que...
-Fala,
Gabriela.
-Faz
um tempo que eu percebo que o Fábio tá estranho demais. Fica calado, prefere
não se abrir mais comigo...
-E
fora as amizades que ele inventou de arranjar.
-Pois
é, Eduardo.
-Eu
também reparei nisso. Muitas vezes, eu ligava pro celular dele e ele não atendia.
Perguntava pros pais dele onde é que ele tava e ninguém sabia. Eu não sabia o
que tava acontecendo com ele...
-Mas
eu sei. E descobri da pior forma possível.
-Quer
dizer que ele te contou?
-Contou.
E quanto mais eu penso, menos eu consigo entender como ele pode pensar tão mal
de mim.
-“Pensar
mal”? Gabriela, você tá falando do quê?
-Você
tinha sacado que o Fábio ficou diferente comigo depois do acidente no táxi?
-“Diferente”,
Gabi? “Diferente” como?
-“Diferente”
é até bondade minha. Ele ficou foi indiferente mesmo. Saiu do hospital e não veio
me ver. Demorei pra voltar pra casa e ele não foi me visitar, e parece que
procurava um jeito de falar cada vez menos comigo. Ficava me perguntando por
que, mas sabia de tinha que ajudar o Fábio.
-Gabriela,
o que foi exatamente que o Fábio te disse ontem à noite?
-Ele
me contou que, no dia do acidente, o médico disse que eu... Que eu tinha
perdido um bebê.
-Quê?
Que absurdo é esse agora, Gabriela?
-Foi
o que o Fábio disse, que o médico falou que eu tinha perdido um bebê por causa
do acidente do táxi. Daí, ele acreditou que eu tinha tido um caso com outro
cara, e tentou me levar pra cama mais de uma vez. Só que eu juro, Eduardo, por
tudo que é mais sagrado, que eu nunca fui pra cama com ninguém. E eu não sei
por que o médico inventou essa mentira! Quando eu neguei que tinha feito isso,
O Fábio ficou fora de si e tentou transar comigo à força. Só consegui escapar
porque vocês chegaram.
-Gabriela,
o que você tá me contando não faz o menor sentido! Por que o médico ia te dar
um diagnóstico de gravidez se você é virgem?
-Entende
agora o que fez o Fábio agir dessa maneira durante todo esse tempo, Eduardo?
-Você
reparou se... Se o Fábio tava alterado?
-Como
assim?
-Se
ele parecia aéreo, se tava sob efeito de alguma coisa.
-Fábio
parecia irritado com a briga que teve com os pais dele.
-Tem
certeza de que era só raiva que ele tava sentindo?
-Eduardo,
o que é que vocês estão escondendo de mim?
-O
que você tá dizendo não tem lógica, Gabriela. O médico não ia dar um
diagnóstico falso só pra confundir a cabeça do Fábio. Por isso que eu tô
querendo saber se ele tinha usado alguma coisa.
-Droga?
É disso que você tá desconfiado? Eduardo, você conhece o Fábio o suficiente pra
saber que ele nunca ia se meter com uma coisa assim.
-Mas
se meteu.
-Como
é?
-Esse
foi o motivo da visita dos pais dele ontem à noite, lá em casa. Eles vieram te
contar que descobriram o envolvimento do Fábio com drogas.
-Eduardo,
para com isso! Não tem graça nenhuma!
-A
gente tá tapando o sol com a peneira, sem querer enxergar o motivo pro Fábio
começar a agir estranho. O Seu Caio e a Dona Ariane descobriram que ele tava
dando dinheiro pro Vinícius pra comprar drogas.
-Vinícius?
Eduardo, esse cara é drogado e todo mundo sabe, mas daí a dizer que o Fábio
tinha conversa com ele...
-Acorda,
Gabriela! O Fábio andava muito próximo do Vinícius nos últimos tempos! Isso
explica onde é que ele conseguia essas coisas!
-O
meu Fábio não! Ele não ia fazer isso comigo!
-O
Fábio não é mais seu, não é mais o mesmo Fábio que a gente conhece! O cara que
tentou abusar de você é outra pessoa! Ele mesmo admitiu pros pais o
envolvimento dele com as drogas que o Vinícius trazia.
-Não
pode ser! Eu não aceito isso, entendeu? O Fábio não pode ser dependente
químico! Eu não vou aceitar isso, entendeu?
-O
pai do Fábio até cancelou a conta bancária de onde tirava a mesada dele pra não
ver o Fábio gastar com droga. Eles já sabem de tudo, Gabriela, menos quem é a
pessoa que repassava a droga pro Vinícius. Foi por isso que a gente foi lá
ontem à noite, pra conversar com o Fábio e dar o nosso apoio. Mas eu perdi a
cabeça quando vi ele tentando te estuprar, falando aquele monte de absurdo! A
gente não pode fechar os olhos e dizer que o Fábio tá bem, Gabriela, porque não
tá.
-Quer
dizer que... Tudo que ele falou contra mim ontem foi efeito de droga? Você quer
mesmo que eu acredite nisso?
-Seu
Caio disse que ele tava limpo desde que eles colocaram o Fábio e o Vinícius
contra a parede. Eu não sei por que ele falou essa história absurda do médico.
-Presta
atenção: eu não aceito esse diagnóstico, entendeu? O que estão dizendo do Fábio
é a maior mentira que eu já ouvi na minha vida!
-O
Fábio tá metido com droga, sim! A gente tem que ajudar ele, mas eu não sei
como. Só que a gente não pode fechar os olhos e não ver que ele tá vulnerável a
qualquer coisa.
-Me
diz que isso é mentira! Fala que você tá mentindo, que não é verdade, Eduardo!-
Gabriela esmurra o peitoral do irmão, que a contém com um abraço. Desesperada,
a moça chora desolada com a notícia que acaba de receber.
Luciano
está em casa quando Vinícius volta da escola. O policial está assistindo à
televisão.
-Filho?
-Fala.
-Você
está bem?
-A
mulher da minha vida deve estar embarcando pra Alemanha a essa hora. Não tem
como eu ficar bem, não é?
-Eu
sinto muito pela partida da Victória. Mas você sabe que pras coisas tomarem um
rumo diferente, só dependia de você.
-Eu
já perdi a Victória, Pai. Não tenho mais o que refletir sobre isso. Se você
quer usar essa situação pra jogar na minha cara que acha que eu tô errado,
sinto te informar que esse não é o melhor momento.
-Pensa
quando ela voltar, se ela vai querer te encontrar do mesmo jeito que te deixou.
-Quando
ela voltar, já vai ter preenchido o vazio que eu deixei com outro cara.
-Sabe
que nem eu mesmo percebi quando foi que você deixou de lutar pelo que queria,
de ser determinado?
-Tá
falando isso por quê?
-Porque
você ama a Victória. E desistiu dela rápido demais. Deixou ela sair da sua vida
achando que não tinha tanta importância pra você. É isso que você quer? Se
condenar a sofrer? Pega um táxi e vai até o aeroporto, Vinícius! Se você
quiser, eu mesmo te levo.
-Pra
quê? Ela já tá decidida.
-Você
decidiu por ela, Vinícius!
-Não
tenho direito de empatar a vida dela, Pai?
-E
a sua? Vai empatar até quando? Olha a chance de ser feliz que você está jogando
fora!
-Vai
ser melhor pra nós dois, um longe do outro. Eu não mudo de opinião, ela menos
ainda. Não é porque eu tô sofrendo que eu vá ficar assim a vida toda.
O
plantão jornalístico da emissora na qual Luciano estava sintonizado desde antes
da chegada de Vinícius anuncia:
-Interrompemos
nossa programação para trazer uma notícia lamentável: a modelo Victória Carvalho
Zimmerman faleceu no fim da tarde de hoje, aos dezessete anos.
-Victória?-
Vinícius aproxima-se do aparelho televisor.
-A
moça estava deixando o colégio onde estudava, no bairro da Estância, quando
foi, segundo testemunhas, abordada por dois assaltantes. Victória reagiu ao
assalto, tentando impedir que os meliantes levassem a sua bolsa, quando um dos
bandidos atirou à queima-roupa, ocasionando o óbito. Ainda não há informações
sobre os suspeitos. Zimmerman estava se preparando para deixar o Brasil nesta
noite, por ter recebido uma proposta de trabalho no exterior. Outras
informações a qualquer momento, e a cobertura completa sobre essa tragédia você
terá logo mais, às sete e quinze da noite, no “Pernambuco Noturno”. Até já.
-Vinícius,
calma!- Luciano percebe o choque que o filho acaba de levar- Por favor, filho,
vem!
-Mataram
a Victória! Você viu o que ele disse? Mataram a minha Victória, Pai... – as lágrimas
rolam o rosto do problemático modelo.
-Eu
sinto muito, filho- Luciano tenta conter o rapaz abraçando-lhe, mas o rapaz
desvencilha-se do pai.
-Tiraram
a Victória de mim! Agora eu perdi ela pra sempre!
-Por
que ela tinha que reagir a esse assalto? Por quê?
-Eu
quero ver a Victória! Me leva até a Victória, Pai, que eu quero ver ela!
-Vinícius,
senta aqui no sofá; eu vou trazer um copo d’água pra você...
-Eu
não quero me acalmar! Eu quero a Victória perto de mim! A culpa é minha... Ela
foi embora com raiva de mim, com ódio! Eu fiz de tudo, tudo pra afastar ela de
mim!
-Eu
vou ligar pra delegacia e saber o que houve, está bem? Por favor, meu filho,
não fica assim!- Luciano segura o rosto de Vinícius- Não fica assim, eu estou
aqui com você!
-Quem
foi que tirou ela de mim, Pai? Quem foi que... – Vinícius chora ainda mais
alto, levando Luciano ao desespero.
Bete
também acompanha a interrupção da programação, deitada em sua cama e com os
braços para cima.
-Nem
esperaram o jornal começar. Que bom! Pois é, Vinícius... A Victória pagou por
você me enfrentar. Quem diria, né? Ela, que fez questão de ficar longe das
drogas, acabou morrendo porque uma traficante mandou matar!- a meliante começa
a rir, descontrolada- O dia hoje não podia ser melhor. Agora ele vai pensar
muito bem antes de me denunciar. Já risquei um da minha lista de inimigos. Daqui
a pouco, Fabinho, você vai virar adubo também...
Ariane
estranha a ausência dos filhos e liga para o celular de Eduardo, que não demora
para atender.
-Oi,
Mãe?
-Filho,
você encontrou a Gabriela?
-Ela
só foi dar uma volta. Mas ela tá bem, sim. A gente conversou e... Vamos pra
casa agora.
-Pelo
menos, eu fico mais tranquila agora. Não demora muito, viu, filho?
-Tá
bom, Mãe. Um beijo- desliga o celular- Tá mais calma?
-Como
se fosse fácil depois do que você me contou...
-Mas
tem que ser assim. Uma hora ou outra, você ia saber da verdade. O ruim é que
teve que acontecer aquilo ontem.
-Continuo
sem acreditar.
-Gabriela,
o Fábio admitiu...
-Eu
conheço o Fábio, Eduardo!
-Eu
também conheço. O bastante pra saber que ele não é mais a mesma pessoa. A gente
tem que ajudar ele, sim, mas não dá pra fingir que não tá rolando nada. Vamos
pra casa, que a Mãe já ligou preocupada e tá ficando tarde. Vamos?
Gabriela
acompanha o irmão, e ambos caminham a passos lentos. Ao fim daquela ponte, vem
Fábio, com um olhar assustado, com a roupa machucada. O adolescente recorda o
primeiro beijo que trocou com a namorada. Os dois foram fazer um trabalho de
escola sobre músicas antigas, e ele a levou até uma vitrola, cuja parte
inferior tinha sessenta long plays.
-Que
disco é esse? “Heróis da resistência”?
-Meu
pai adora esse LP. Disse que comprou na adolescência dele.
-Peraí,
deixa eu ver aqui- retira o disco da capa- Mil novecentos e oitenta e seis- Bem
a época que a professora pediu pra gente buscar músicas antigas. Ela disse que
foi a época que explodiu o pop e o rock no Brasil.
-Quer
ouvir? Eu já escutei, e ele é muito bom. Super recomendo.
-Quero,
sim. Ué, mas você vai botar pra tocar já do lado B?
-É
que tem uma música que eu gosto muito, acho até que é a melhor do LP. Acho que
você vai gostar também, já que é a sua cara.
-Por
quê?
-Sempre
me lembro de você quando escuto- Fábio seleciona “Só pro meu prazer”- Dança
comigo?
-Tá
falando sério?
-Como
nunca. Aceita- estende a mão, que é segurada pela jovem, e os dois dançam devagar
ao som dos versos.
-Não
fala nada, deixa tudo assim por mim. Eu não me importo se nós não somos bem
assim. É tudo real nas minhas mentiras e assim não faz mal; e assim não me faz
mal, não... Noite e dia se completam, o nosso amor e ódio eternos. Eu te
imagino, eu te conserto, eu faço a cena que eu quiser; eu tiro a roupa pra
você, minha maior ficção de amor, e eu te recriei só pro meu prazer. Não venha
agora com essas insinuações dos seus defeitos ou de algum medo normal. Será que
você não é nada que eu penso? Também, se não for, não me faz mal. Não me faz
mal, não... – a canção é executada, mas antes que seja encerrada, um primeiro e
longo beijo acontece.
Certo
da traição que acredita ter Gabriela cometido, Fábio olha para o rio em
desespero. Logo, põe a perna direita para fora da ponte, segurando-se nela. A
namorada grita por seu nome ao ver que ele tenta o suicídio.
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