19/05/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 3


-Pai, esse é o Michel. Eu o conheci...
-Em Lisboa. Como vai o senhor, Doutor Kleber?
-Muito prazer, Michel.
-Aposto que essa bela senhora, com todo o respeito, é tua mãe. Acertei?
-Isadora Goulart, muito prazer.
-O prazer é todo meu, Dona Isadora.
-Fiques à vontade, pode chamar-me de Dora. Se és amigo de meu filho, não são necessárias tantas formalidades.
-Uma pena que nós já pedimos a conta, senão te convidaríamos para se juntar a nós nesse jantar, que foi magnífico.
-Que lástima, não é mesmo?- Tato busca interromper a conversa, mas é contido por uma declaração dada por Dora.
-Mas se quiserem conversar, o Tato pode subir ao quarto depois.
-Ai, que bom. Queria mesmo trocar umas palavrinhas com teu filho.
-Tu não nos disseste que um amigo teu vinha às Bahamas, Tato...
-Michel é bem imprevisível, Pai. Por isso eu nem cogitei a possibilidade de ele aparecer por aqui.
-Confesso que sou meio andarilho, Doutor Kleber. Trata-se da minha natureza.
-Bom, a noite foi longa para nós todos. Minha esposa e eu vamos nos recolher. Boa noite, Otávio.
-A bênção, Pai- Tato estende a mão.
-Deus te abençoe, filho- após o gesto, Dora se aproxima do jovem.
-Durmas com os anjos, querido- beija a testa do filho- Boa noite, Michel.
-Boa noite.
Esperando que Kleber e Dora possam tomar o elevador, Tato volta-se contra Michel.
-Queres me explicar o que foi isto? Como sabia o nome do meu pai? Aliás, como tu sabias que eu me chamava Otávio?
-E acabei de saber também que teu apelido é Tato, segundo palavras de tua mãe. Procurei saber informações sobre tu na recepção do hotel. E acredite que não foi nada fácil dialogar em inglês pois, como vistes, praticamente engatinho.
-A troco de quê?
-Gostaria de me desculpar pela forma que me portei quando cheguei, as coisas que eu lhe disse... Certamente, não foi boa a primeira impressão que tu tiveste de mim.
-Não se trata de primeira impressão. É a transparência.
-Na maior parte das vezes, somos elogiados por isso.
-E ganhsa desafetos exatamente por isso. Olha, eu não sou de julgar a vida de ninguém, e nem tenho este direito.
-Mas eu não queria que tu ficasses com raiva de mim por conta do que eu penso. É como eu disse ao teu pai: é a minha natureza, eu não sei como mudar isto. Tudo indica que tu foste educado de uma maneira diferente, mas não funciona com todo mundo.
-Desculpa-me, eu me sinto feliz assim. E acredito piamente que quem desejar ficar do meu lado pense exatamente desta forma. Sinceramente, não consigo entender tanto empenho em mudar a minha opinião sobre ti.
-Não costumo colecionar inimigos por onde eu passo.
-Eu não sou teu inimigo.
-Claro que o meu modo de ser não é unanimidade, mas eu nasci exatamente pra isto: ser livre de qualquer amarra, de qualquer rótulo que queiram impor a mim. Se eu sei que sou capaz de sentir amor, posso muito bem dividir com quem realmente merece- cumprimenta o filho de Dora e Kleber- Será que agora podemos nos apresentar, formalmente, sem ouvir rumores sobre um ou outro?
-Meu nome é Otávio e... Continuo sem entender o que queres saber sobre mim.
-Como bons amigos que seremos, apenas aquilo que tu me quiseres confidenciar.
A tática funciona, e naquela mesma mesa Michel e Tato conversam tanto que parecem se conhecer há bastante tempo. Valente, por sua vez, não se sente tão à vontade para dialogar num refeitório composto por casais que utilizaram o Lisboa Noite na noite anterior. Seja pela expressão tímida, por aparentar ter menos de dezoito anos ou pelo simples fato de estar sozinho, consegue os olhares para si.
-Posso?- Paula pede um lugar na mesa ocupada pelo saxofonista.
-Claro, fique à vontade.
-Como foi a noite?
-Não consegui fechar os olhos. Tenho medo de sair daqui e descobrir que ainda é noite.
-Entendo- declara, depois de uma rápida risada- Deve ser bem difícil pra ti.
-O que sabes?
-Ao que parece, tu não tens muito conhecimento de mundo, não apresentas malícia... Estás aqui por mera obra do acaso.
-Não consegui me instalar em nenhuma pousada por conta do que arrecadei ontem. Isto vai mudar. A fé que eu tenho não consegue me demover da ideia.
-Pelo menos tu tiveste um lugar para dormir... Quer dizer, um teto sobre a própria cabeça. Estás aqui, tomando um café da manhã. Não podes reclamar. Já diz o conhecido ditado: “Deus escreve certo por linhas tortas”.
-Pior que terei de discordar de ti. Deus escreve certo por linhas tão certas quanto. Nós é que não sabemos interpretar o texto.
-Que bonito. Quem escreveu isto?
-Não sei, fluiu de mim. Mas deveriam grafitar isso por Lisboa inteira.
Depois da refeição, Valente volta ao quarto, pega as suas coisas e sai novamente à praça, onde interpreta novas canções para o público. Longe dali, Fabiano volta ao centro lisboeta acompanhado de Ednete, a sua esposa, comprando alguns ingredientes num supermercado para fazer uma sopa e, à noite, distribuir entre os moradores de rua.
O casal retorna à noite para a praça, com duas panelas e duas mesas armadas, para colocar alguns pratos descartáveis e entregar aos desabrigados. O saxofonista também está na praça, mas longe dali, ainda que possa ver a movimentação. E logo Valente, que estava cansado e sem tocar nenhuma canção há um tempo, percebe a aflição no rosto de Ednete, em meio à quantidade de pessoas sem-teto que não para de crescer.
-O que houve, Nete?
-Será que não vês, Fabiano? Não tem como alimentar este povo todo. As pessoas não param de chegar.
-Não tinhas feito as contas para saber o quanto iríamos gastar?
-Sim, mas eu não imaginava que esse povo todo apareceria aqui.
Uma ideia permeou a cabeça de Valente: dirige-se ao centro da praça e voltar a interpretar as canções que conhecia, colocando novamente o boné de volta ao chão. A iniciativa traz os transeuntes para perto do saxofonista, e muitos depositam dinheiro dentro do acessório. Fabiano estava tão nervoso que não se deu conta de que era o mesmo rapaz a quem havia cumprimentado no dia anterior, e Nete pensou se tratar de mais um ambulante à procura de dinheiro.
Passadas cinco músicas e recebendo calorosos aplausos dos que passavam pela praça lisboeta, carregou o saxofone, a mala e o boné, indo em direção ao casal evangélico, tirando vinte euros para si. Nete o olhou com extrema desconfiança, acreditando se tratar de outra pessoa faminta.
-Sinto muito, a sopa acabou.
-Tu, gajo?- admira-se Fabiano.
-Tomes, senhora- entrega a maior parte do dinheiro arrecadado.
-Nós não estamos vendendo nada, garoto. E não há mais comida.
-Eu sei. Compres alguma coisa pra esse pessoal que está aqui.
-Desculpa-me, o que disseste?
-Já é tarde, daqui a pouco fecham as portas de tudo por aqui. Não vai dar tempo de fazer outra sopa, mas... Dá pra matar um pouco a fome do pessoal.
-Mas... Esta é a tua féria.
-Não tem problema, amanhã eu trabalho de novo e consigo mais.
-Se é assim, obrigada, então. Fabiano, eu vou ver o que dá para ser comprado no mercado, não demoro.
-Tudo bem- Fabiano nem chega a ver a esposa se afastando, de tão atônito com a atitude- Tu arrecadaste isto tudo e não quiseste ficar com nada?
-Tirei um poucochinho. Um dia sem comer não é nada perto do que eles vivem diariamente. Com certeza, vocês saberão usar este dinheiro melhor que eu. Terei que ir.
-Esperes. Eu estou de carro. Se quiseres, eu posso levar-te até a tua casa, logo depois que minha esposa voltar.
-Acredites, não é lugar para o senhor. Fiques na paz de Deus.
-Que ela te acompanhe, e que não te falte fé.
-Só por essas palavras eu já sei que ganhei o meu dia.
Irremediavelmente, Valente se vê de volta ao Lisboa Noite, mais feliz do que no dia anterior por ter conseguido extrair sorrisos dos outros, a despeito de si mesmo.
E a despeito da felicidade alheia, Tato permanece com um sorriso de orelha a orelha, desde que teve uma conversa mais amena com Michel, logo depois que os seus pais saíram do restaurante do hotel. Passados alguns dias, Dora vem observando o humor de seu filho único, ainda mais alegre do que antes da viagem.  Eis que, num momento em que Kleber sai cedo do quarto para dar um passeio sozinho, sua esposa toma café da manhã enquanto o jovem levanta-se da cama.
-A bênção, Mãe.
-Deus te abençoe, filho. Queres tomar café?
-Claro- senta-se à mesa, enquanto Dora prepara uma xícara de café.
-Como foi que passaste a noite?
-Dormi como um anjo. Há tempos que eu não dormia tão bem. Não é de se estranhar, haja vista o lugar onde estamos. E o meu pai?
-Saiu cedo para espairecer. A viagem realmente fez bem a ele. Isto seria impensável na cidade tumultuada em que moramos. Mas, ao que me parece, mudar de ares momentaneamente não é um benefício exclusivo para o Kleber.
-Poderia perfeitamente passar o resto da vida aqui, desfrutando da beleza deste lugar.
-Uma coisa que eu reparei: não vi mais o Michel.
-Michel?
-Aquele teu amigo, que nos foi apresentado em nossa primeira noite nas Bahamas.
-Ah, Michel é meio andarilho. Se duvidar, nem aqui ele está mais. É o tipo de pessoa que não para em lugar nenhum.
-Nem tu.
-O que quis dizer com isto?
-Não vivo no campo da suposição, das palavras que eu gostaria de falar e não posso dizê-las. Eu não quis dizer, Tato; eu disse.
-Ainda não entendi.
-Tu tens saído sucessivas vezes desde que nos hospedamos, muitas delas sem nós.
-Qual é o problema? É natural querer um pouco de privacidade, o Papai não está fora do hotel agora?
-Otávio, não te dês ao trabalho de fingir que não compreendeu aquilo que eu disse. Consigo ver o quanto tu estás mudado, mais feliz, com um sorriso permanente no rosto.
-Por acaso isto não é bom?
-Dize-me tu. Porque estás a comportar-te como se estivesses apaixonado por alguém.
-Mera impressão tua, Mamãe- Tato toma um gole do seu café, procurando levar o diálogo da forma mais natural e menos reveladora possível. Dora o observa de maneira perturbadora, ao menos para ele- O que queres tu que eu te fale?
-Se a sua súbita mudança de humor é decorrente dessas saídas frequentes que tu tens feito, Otávio.
-Por favor, queres ser mais clara?
-Perfeitamente, meu filho. O tal de Michel não é teu amigo como vocês dois alegam ser, não é?

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