Está boa parte dos presentes acompanhando Valente e seu
saxofone quase indefectível, mas Hélio é paciente e espera que o rapaz cesse a
canção atual e vai em sua direção, quase sem palavras diante de tanto talento.
Antes, tira do bolso duas cédulas, ao ver uma parcela do público extasiada com
o que acabou de presenciar.
-Qual é o teu nome, gajo?
-Valente. Valente Valença.
-Até nome de artista tu tens.
-Obrigado... – diz, sem jeito, para depois Hélio depositar as
cédulas que havia retirado de sua carteira.
-Há quanto tempo estás trabalhando por aqui?
-Já há alguns dias. Mas, que mal lhe pergunte, por que me
perguntas isto?
-A rua não é o teu lugar, não se quiseres que as pessoas
reconheçam teu dom.
-Imagina. Não há dom nenhum. O que eu faço é apenas para
sobreviver.
-Ou para alimentar sonhos. Não sentes vontade de sair da rua?
-Na verdade, eu não sou garoto de rua. Mas não tenho endereço
fixo.
-Queres que eu mude a tua realidade?
-Quero que Deus assim o faça, pois Ele é o único capaz. A não
ser que o senhor interceda por mim.
-Talvez eu possa. Deixes que eu me apresente: meu nome é
Hélio Goulart, e eu sou o dono do restaurante Recifeeling, não sei se tu sabes onde se localiza.
-Provavelmente já devo ter ouvido falar. Mas não sei como o
senhor pode ajudar a mim.
-Eu estou à procura de alguma atração que amplie o movimento
do Recifeeling, e creio que tu possas
ajudar-me.
-O senhor tem certeza do que está pedindo? Eu não sou
saxofonista profissional.
-Mas consegue envolver a todos com seu trabalho. Melhor do
que se expor ao perigo das ruas. Valente, não estou pedindo que tu venhas a me
dar uma resposta imediata. Quero que penses com carinho em minha proposta-
retira um cartão do bolso- Aqui está o endereço do meu restaurante. Passes lá
para conversarmos. Será bom para ti.
-Prometo que vou pensar. Mas agradeço o teu convite.
-Que nos vejamos, então. Até mais.
-Será que eu deveria aceitar? Vai ser bom pra mim? Que Deus possa
orientar-me- pensa consigo mesmo. De orientação, aliás, não é só o mocinho que
necessita. Beatriz vai às compras com a amiga Cissa e, novamente, a segunda
volta a tocar no assunto do músico que conheceu na Igreja Comportas do Céu.
-Conta-me uma coisa: ainda estás pensando em reencontrar o
gajo que conheceste noutro dia?
-O tempo todo, amiga.
-E como vais fazer para vê-lo?
-Voltando à igreja.
-Àquele lugar? Clarissa, definitivamente, estás prestes a
perder a compostura.
-E que outra saída tenho?
-Realmente estás apaixonada por ele?
-Não. Mas posso. Não há como negar que ele é um homem
interessante.
-Que tal este vestido para mim?
-Não. Lilás não fica bem em combinação com seu tom de pele.
-Tens razão. Que cor tu me recomendas?
-Vermelho, ora. Dizem que é a cor da paixão, do desejo. E é
bem isto que queremos ao sair de casa, algo do tipo: “pense que irás usar-me,
quando serás usado por mim”.
-Leste bem os meus pensamentos. Agora, diga-me: achas que ele
estará naquele lugar hoje?
-Se não estiver, eu sondo os que frequentam a igreja.
-Muito bem. Esta é a Cissa que eu conheço.
E realmente ela leva o plano a cabo. Naquela mesma noite, com
uma vestimenta tão comportada quanto da ocasião da visita das mulheres
lourenses, a bela irmã de Michel vai à instituição religiosa, sendo recebida
por Fabiano.
-Bem-vinda de volta, minha amada.
-“Amada”? Acaso estás me chamando, querido?- Nete aparece,
demonstrando insegurança diante de tanta beleza.
-Obrigada, Pastor. Devo ter chegado cedo demais, mas é que
ainda não sei dos horários daqui.
-O que importa é a sua presença, pois é dela que o nosso Pai
agrada-se. Fique à vontade.
-Com licença, então- Cissa toma um dos bancos.
-Queres que eu seja bastante sincera contigo? Meu sexto
sentido não me deixa ter confiança nessa mulher.
-Agora precisas de seis sentidos para fazer radiografias de
caráter? O que precisamos é de espírito de fraternidade para abraçar a todos
que entrarem por estas portas.
-Não sejas tão ingênuo, Fabiano. Ela foi a única das irmãs
lourenses que não quis se levantar para cantar. Obviamente, não passa esta moça
de uma desviada.
-Ela não é lourense, tampouco veio com as mulheres no ônibus.
Entrou aqui na igreja porque tu a confundiste com as outras. Além do mais,
mesmo não sendo evangélica, ela ficou até o fim do congresso e hoje quis vir
acompanhar um dos cultos. Sinal de que gostou daqui. Qual o problema?
-Soubeste de tudo isso em poucos segundos de conversa com a
dita cuja?
-Nete, teu ciúme está excedendo.
-Ah, meu querido. A Palavra fala que devemos orar e vigiar, e
isto se faz muito necessário quando estamos diante de certos tipos de gente.
-Orar e vigiar a nossa vida. Não a dos outros.
-A paz do Senhor, irmãos- Valente chega ao recinto.
-Mas olha quem está aqui: o varão valoroso.
-Foi difícil, mas cheguei.
-Onde está o seu inseparável saxofone, gajo?- Nete estranha a
ausência do instrumento- O comentário geral é que tu és muito talentoso.
Emocionaste a todos.
-Saí cedo da praça e fui tomar um banho. Daí, eu o deixei lá
no... Onde eu costumo deixar todas as noites.
-No Lisboa Noite?- Nete toma ao marido e ao músico de
surpresa.
-O que é que aquele motel tem a ver com a nossa conversa,
Ednete?
-Pergunte ao nosso irmão, Fabiano. Eu o vi pelo ônibus
saindo, em plena luz do dia, daquele local infecto. Não é verdade, irmão?
-Respondas, Valente! O que minha esposa diz a teu respeito
tem ou não fundamento?
O saxofonista não sabe como agir. Ainda assim, Cissa se
mostra apreensiva, esperando pelo que ele dirá.
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