15/11/2019

CONFISSÕES PROLIXAS DE UM EXÍGUO MESOCLÍTICO/ BLOCO DE CENAS 5


LAÍS: O relatório da perícia constata que havia, sim, um líquido vermelho, em grande quantidade, e que o réu não conseguiu tirar todos os vestígios. Era sangue, senhores jurados. Sangue derramado do corpo de Igor e que, por isso, a vítima precisou desaparecer. E, de alguma forma, Alan Godoy conseguiu atraí-lo para a sua residência. Caso a senhora tenha dúvida, Meritíssima, aqui está o documento.
ROBERTA: “Concluímos que o réu, Alan Godoy, fez a assepsia do local analisado utilizando água e detergente Ypê sabor de limão”.
ALAN: (olha para a câmera) Repararam no merchandising (ouve-se uma caixa registradora)?
ROBERTA: “Ainda assim, foi perceptível que o vestígio encontrado pertencia a um... Suco de acerola”?
LAÍS: O quê?
ALAN: Tudo bem, eu confesso. Eu não sou a pessoa mais inteligente do planeta. Às vezes, eu até faço trabalhos com o Flávio por considerá-lo mais inteligente do que eu.
FLÁVIO: Obrigado.
ROBERTA: O que o senhor disse?
FLÁVIO: Nada, eu pensei alto.
ALAN: No dia da viagem, eu tinha feito um suco de acerola, mas me esqueci de colocar a tampa no liquidificador. Talvez por isso que eu abri a porta para o Flávio e ele pensou que era sangue no meu corpo.
ROBERTA: Que meleca...
LAÍS: Ainda assim, eu tomei a liberdade de investigar a fundo a sua vida antes da fama. E descobri que o senhor estudou num colégio cujos adolescentes, colegas que compartilhavam a mesma série, tinham codinomes suspeitos.
ALAN: Agora a senhorita interrogar-me-á sobre a vida alheia?
LAÍS: Claro. Porque talvez a personalidade perigosa administrada por eles tenha influenciado a sua mente a intimidar Igor Zimmermann.
FLÁVIO: Você é completamente perturbada!
LAÍS: Não mais do que você, Belchior de Vila Tamandaré! E então, Sr. Godoy? Poderia listar os codinomes dos seus colegas colegiais?
ALAN: Se isso puder me livrar da cadeia, então...
LAÍS: Mas fale devagar, para apreciarmos os elementos sob suspeita.
ALAN: Alemão, Anzol, Bagunça, Barney, Bodão, Calango, Chupeta...
IGOR: Você queria me matar?
ERASMO: Lamentavelmente, eu não posso. Mas eu desconfiei desde o princípio. Um traste feito você não ficaria muito tempo fora de combate.
IGOR: Mas eu fui afogado pelo Alan, eu estive à beira da morte mesmo; você precisa acreditar em...
ERASMO: Isso não importa mais, Igor. Acabei de voltar do julgamento. Godoy foi condenado pela sua tentativa de assassinato.
IGOR: Sério?
ERASMO: Você conseguiu. Tanto fez pra destruir o cara que conseguiu. Até mesmo em cima de uma cama.
IGOR: Agora aquele idiota teve o que mereceu, finalmente.
ERASMO: Quanto mais você fala, menos eu entendo.
IGOR: Talvez porque eu não tenha a obrigação de ser claro pra você.
ERASMO: Como também não tem a obrigação de ser evasivo. Você sabe do meu segredo, eu tô nas suas mãos, à condenação do Godoy não cabem mais recursos... Fala pra mim. Por que você fingiu ter se afogado depois de sumir?
ALAN: Eltinho do Carinho, Fariseu, Fumagalli, Galego, Jim, Johnson, Juninho Play, Manteiga...
IGOR: E quem disse que eu fingi? A única coisa que fugiu do meu controle foi a transferência pra esse novo hospital. Me doparam e, quando eu dei por mim, já tava aqui. Aliás, que lugar é esse?
ERASMO: Não interessa, patife. O que você pretendeu acusando o Godoy dos crimes cometidos contra você?
ALAN: Menos Um, Moisés, Muçulmano, Nômade, Saci, Topete, Vício Louco...
IGOR: Quer a verdade mesmo? Pois, então, eu vou te dar.
ERASMO: Você não vai me dar nada, só falar o que eu não sei ainda. Desembucha!
IGOR: Eu queria ferrar com a vida do Alan, sim. Metido à besta. Mas ele é tão idiota que não entendeu que, pior que ele, só o Flávio. O alvo era o empresário.
ERASMO: O Flávio? Por causa do quê?
IGOR: Ele vai fazer o TCC em dupla com Alan.
ERASMO: E daí? Você queria ser a dupla de um dos dois?
IGOR: A ideia do tema do trabalho dos dois foi minha.
(fundo musical: “Hitman”)
ERASMO: Que história é essa?
IGOR: O Alan pensa que foi o Flávio que deu a ideia do TCC, mas não foi. Eu quem tive e vendi pra ele.
ERASMO: Como assim “vendeu”?
IGOR: Alan não é nenhum Einstein; tá bem longe disso, inclusive. Por isso que ele sempre se junta a Flávio pra fazer os trabalhos da faculdade. Só que o imbecil não sacou que Flávio é outra toupeira acadêmica. E foi por isso que o Flávio me pagava pra ter ideias, principalmente a do TCC. Eu bolava os trabalhos, dava a bibliografia que eles tinham que ter pra redigir e ele me pagava por isso. Daí, ele aparecia em sala pra conversar com o Alan e sugeria pra ele a ideia que eu tive.
ERASMO: Com que dinheiro?
IGOR: Ele é o cabeça da empresa que gerencia a carreira do Alan, a Dodói Produções Artísticas.
ERASMO: Você quis dizer “Godoy Produções Artísticas”.
IGOR: Não quis, não. Mas, sem o Alan saber, ele embolsa uma parte dos lucros da empresa maior do que a que ele tem direito.
ERASMO: Se você ganha uma bolada pra elaborar os trabalhos do Flávio e do Godoy, por que fez questão de entrar em atrito com o segundo?
IGOR: Porque eu fiquei fulo da cara quando soube que o TCC deles foi aprovado e o meu não. A ideia era minha, era eu que tinha que ser orientado pelo professor. Vou ficar mais seis meses naquele fim de mundo por isso. Quando eu vi o Alan e o Flávio naquela calourada, quase joguei a verdade na cara dos dois. Assim que eu saquei o fuzuê que deu minha briga com o Alan na Concha Acústica, eu resolvi me vingar dos dois. Porque se eu sumisse antes da viagem do Alan, todo mundo ia pensar que ele deu um fim em mim. A imprensa marrom ia especular que o Alan teve alguma coisa a ver com o meu desaparecimento e os contratantes iam cancelar os shows.
ERASMO: Dá pra entender até essa parte. Mas só bastava o seu desaparecimento pra manchar a carreira do Godoy. Todo mundo acreditou que você tivesse sumido por obra dele, até eu antes de saber a verdade. Pra quê você entrou na casa do cara e simulou um afogamento?
IGOR: Infelizmente, essa parte da história não é invenção minha.
ERASMO: O Godoy não sabia nem que você tava vivo. Como ele deixou você entrar?
IGOR: O Flávio tem livre-acesso à casa do Alan. Daí, ele ligou pro Alan perguntando se ele podia ir à mansão pra rever a papelada dos contratos que foram cancelados após o buchicho do meu sumiço.
ERASMO: Você tá fugindo da minha pergunta...
IGOR: Eu ainda nem cheguei à resposta, Erasmo. Fica na tua, tá bom?
ERASMO: Hum, confiante. O que a prisão do inimigo não faz?
IGOR: Ah, mas eu bem que queria estar no tribunal pra ver a cara do Flávio se ferrando!
ERASMO: Você é um doente.
IGOR: É porque você não sabe da história toda.
ERASMO: Mesmo porque quando eu souber vou ter mais nojo ainda.
IGOR: Como eu te falei, o Alan não é nenhum exemplo de inteligência. Ele saiu de casa e deixou o portão da casa aberto. Como eu sabia que o Flávio ia pra lá, invadi a casa, peguei uma taça, uma garrafa de vinho Carreteiro e bebi. Quando o Flávio ouviu o barulho que eu fiz caindo na piscina, veio ver o que era, pensando ser um ladrão.
ERASMO: Outro merchandising barato (ouve-se, novamente, a caixa registradora).
(fundo musical: “Garçon”- “saiba que o meu amor hoje vai se casar”)
Flávio encontra Igor à beira da piscina, bebendo o vinho mencionado.
IGOR: Não me esperava aqui, não é?
FLÁVIO: Como foi que você entrou aqui?
IGOR: A pergunta é: “quanto você tá disposto a pagar pra que eu saia?”.
FLÁVIO: Onde é que você tava?
IGOR: Isso não te diz respeito.
FLÁVIO: Diz respeito ao Alan. A polícia tá no encalço dele por sua causa. O que é que você quer, Igor? Ferrar com a vida de todo mundo?
IGOR: Só com a sua.
FLÁVIO: Quer mesmo que eu acredite que as brigas que você e o Alan tiveram foram por causa daquela palhaçada do professor que não quis te orientar?
IGOR: Você faz bem em não acreditar. Também foram por causa do dinheiro que você não me pagou pelo TCC que eu bolei pra vocês.
FLÁVIO: E só por isso você sumiu? Cara, você prejudicou a carreira do Alan por causa dessa droga, colocou ele no centro de uma investigação policial... Eu já tinha falado contigo antes da viagem, pedi pra você ter um pouco de paciência até eu conseguir a grana...
IGOR: Para, Flávio. Chega. Eu não caio mais na sua conversa. Que, aliás, vai ser a última comigo. Eu sei que você desvia dinheiro da empresa que administra a carreira do Alan.
(fundo musical: “Tema de Débora (Maldades)”)
FLÁVIO: Você não tem ideia de com quem você tá se metendo.
IGOR: Você, menos ainda! Aproveita que o Alan não tá na casa e movimenta o dobro do que eu te pedi pra minha conta.
FLÁVIO: Pirou, meu velho? Eu não vou fazer isso, não vou ceder à sua chantagem! E o Alan não vai acreditar em você, ainda mais sem prova do que tá falando.
IGOR: Mas a maldita ética vai deixar o cara com a pulga atrás da orelha e ele vai pedir pra polícia investigar, ainda que não te fale nada. E, se interessa saber, meu cunhado é um dos maiores delegados da história de Pernambuco. Pra ele saber dos seus esquemas criminosos, tanto quanto eu, é um pulo. Ou você paga pra ver ou paga pra não me ver abrindo a boca. O que é que você escolhe?
FLÁVIO: Você venceu, Igor. Me espera aqui, eu vou buscar o laptop pra fazer a transferência.
IGOR: Pensou bem, hein, garoto? Pode deixar, que eu vou aproveitar um pouco mais desse vinho maravilhoso (bebe o vinho novamente). De que safra é?
FLÁVIO: Sabe que eu não sei? Só sei mesmo qual foi a região de onde vieram as uvas. Muito conhecida, aliás.
IGOR: Sério? E de onde são?
(fundo musical: “Revelações”)
Flávio submerge Igor na piscina, e o chantagista tenta voltar à superfície, mas acaba desfalecendo.
FLÁVIO: Do inferno, que é pra onde eu acabei de te mandar.
ERASMO: Impressionante! Quer dizer que o outro criminoso da história, além de você, é o empresário do Godoy?
IGOR: Deixa eu te contar o melhor de tudo, Erasmo: você tá tão encalacrado comigo que nunca vai poder contar nada do que ouviu aqui.
ERASMO: E você prefere perder o dinheiro que o Flávio te prometeu só pra deixar o Godoy apodrecendo na cadeia?
IGOR: Acho que você ainda não sacou o meu plano. Com o Alan preso, o prejuízo do Flávio é certo.
ERASMO: E se a justiça te interrogar quando você “acordar”?
IGOR: Basta mentir, jogar a culpa no Alan e pronto. Se condenaram ele sem provas, imagina o que não vão fazer comigo falando “a verdade” (tosse)? Credo, por que me puseram num hospital que tá em reparos?
ERASMO: É porque a reforma do tribunal não terminou a tempo, desculpe.
(fundo musical: “Pasión y poder”)
Erasmo abre a cortina e Igor se depara com Flávio, Alan, Laís e Roberta, que escutaram a sua confissão.
ROBERTA: As suas palavras conseguiram me deixar de cabelo em pé.
LAÍS: Protesto, Meritíssima! O laquê impede seu cabelo de se mexer!
ROBERTA: Protesto aceito. Diante do testemunho de Igor Zimmermann, eu declaro Alan Godoy inocente.
ERASMO: E diante desse blá blá blá sem fim, eu tenho o prazer de dizer: Flávio, advogado de porta de cadeia, você tá preso por tentativa de homicídio e desvio de dinheiro. Tem o direito de falar em juízo. Quanto a você, cunhadinho, tá preso por estelionato e por usar patrimônio público de maneira indevida. Quem mandou ser internado em hospital do estado e iniciar um inquérito policial? Tem o direito de ficar calado mediante eu virar tua cara do avesso, vagabundo!
IGOR: Pior pra você. Porque agora o nosso trato tá desfeito, e eu não quero estar no seu lugar.
ERASMO: Muito menos eu no seu lugar: no diabo que te carregue!

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