10/10/2013

SOBRE PRÓDIGOS E PRODÍGIOS/ CAPÍTULO 10



Sobre a cama de Ana Maria, está Otaviano. Ele ajeita sua gravata e põe seus óculos escuros. Do banheiro, sai sua namorada, com o cabelo molhado e vestida de preto. Ele pega um pente e entrega à moça.
-Eu tenho que ir.
-Pra onde você vai?
-Vou voltar pra casa. Eu acho que você merece descansar.
-Tudo o que eu queria agora... Era uma resposta. Uma resposta sobre o que aconteceu. Um porquê.
-A gente não manda no destino, Ana Maria.
-Nós tivemos uma relação tão conturbada, sabe? Muita coisa entre nós ficou sem ser dita. Até agora, eu tenho a impressão de que ele queria me falar alguma coisa, além do socorro.
-Foi tudo muito depressa. Lógico que ele estava desesperado... Não sei... Tentando sobreviver...
-Quanto a ele, nós nunca vamos saber se ele tinha algo a me falar, ou se nós finalmente seríamos pai e filha... Mas eu tinha o que dizer.
-Ana Maria- toma as suas mãos- Vamos esquecer as mágoas que existiram entre você e ele. O que isso vai trazer de bom pra vida da gente?
-Hoje eu estava esperando ele chegar da empresa pra contar uma notícia que eu recebi do meu médico.
-Você está bem?
-Eu não poderia estar melhor. Eu queria que ele, como meu pai, fosse um dos primeiros a saber.
-O que é, Ana Maria?
-Hoje eu estava preparando um jantar pra te receber e te contar: um fruto... – chora, emocionada- Um filho de nós dois... Eu estou esperando um bebê. Nosso, Otaviano.
-Você... Gente, eu sempre sonhei com o dia em que a mulher que eu escolhi pra ser minha me desse essa bênção.
-E ele vai ser uma bênção pra gente também.
-Quem sabe ele vai continuar o que o seu pai fez até hoje? O que ele nos deixou?
-Talvez até melhor.
-Disso eu sei. O meu filho... Ou melhor, o nosso filho, ele vai ser tão feliz... Do mesmo jeito que eu quero te fazer feliz.
-Não. Ele vai ser feliz do mesmo jeito que você já me faz feliz.
O rapaz se abaixa, acaricia o ventre e Ana Maria e o beija. Os problemas financeiros se resolviam num único dia. Só era necessário o cinismo.

XXXXX

Rosane sai do banheiro com o teste de gravidez e vai para a sala. Sua mãe está sentada no sofá. Levanta os olhos e nota que a filha sofreu um baque.
-Mãe, eu sei que a senhora não vai poder me dar os parabéns, mas eu sei também que a senhora pode me escutar. Eu fiz um teste de gravidez... Eu vou te dar um neto. Um filho meu, minha mãe. Eu vou ter um bebê com ele. Com o...
-Bebê?- Jandir estava na porta e Rosane não percebeu- Você está esperando um filho, Rosane?
-Jandir, eu...
-É verdade essa estória? Você vai ter um filho?
-Vou, Jandir. Eu estou grávida. Acabei de fazer o teste.
O mecânico a abraça, emocionado.
-Rosane... Um filho nosso? Eu não acredito. A gente vai ter um filho.
-Deixa eu te dizer uma coisa.
-Fala, meu amor.
-Eu sei que... – desiste de contar a verdade, bastante relutante com a alegria de Jandir- Que você vai ser o melhor pai do mundo pra essa criança. Eu sei disso.
-Você não tem noção do quanto eu te amo, Rosane. Ainda mais depois de hoje.
Ele a beija, ficando de costas para a mãe de Rosane. Durante o beijo, ela abre os olhos e percebe o olhar de reprovação da mãe por não ter revelado sobre Otaviano.
-Meu filho vai ter um pai que mereça ser chamado de pai. E esse homem é o Jandir- pensa.

XXXXX

O motorista de Dalton, Geraldo, está forrando sua cama, já vestido com seu pijama. Ao chegar até o interruptor, a porta do seu quarto é aberta: trata-se de Otaviano, também vestindo a roupa de dormir.
-O senhor?
-Eu posso entrar?
-Vá, entre.
-Com licença- repara as condições precárias do quarto e não disfarça o descontentamento.
-O senhor não tinha que ir pra casa?
-Tinha, mas a Ana Maria pediu pra que eu ficasse. Ela não queria ficar sem a minha companhia, ainda mais num dia tão difícil como esse. Perder o pai... Eu sei como é esse trauma, já passei por isso. Entendo o quanto ela está fragilizada. Prometi que dormiria aqui pra acalmá-la, mas com o tempo, eu vou ocupando um lugar nessa casa. Isso, é claro, vai se concretizar no dia em que eu me casar com ela.
-Por que o senhor está me falando essas coisas?
-Você pode não ser o homem de confiança do Dr. Dalton como eu fui... Geraldo? É esse o seu nome, não é?
-Geraldo...
-Pois então eu sei que você levou o seu falecido patrão pra minha casa e ele escutou algumas coisas a meu respeito que eu faço questão de esquecer.
-O Dr. Dalton não me disse nada.
-Mas se exaltou. O suficiente para ter aquele infarto e morrer.
-Juro que eu não sei o que o senhor disse pra ele, não é problema meu.
-Vamos supor que seja verdade. Sabe onde arrumaria trabalho se fosse demitido daqui?
-Por favor, Otaviano, não me...
-Doutor Otaviano pra você. Eu posso não ser ainda o dono dessa casa, mas sou superior a você. E eu reparei que o velho Dalton não investia muito na infraestrutura do quarto dos empregados... Que pena. Mas não se preocupe, Geraldo. Eu pretendo implantar melhorias aqui e garantir o seu emprego. Basta ficar de boca fechada.
-Eu tenho filho pequeno... Dr. Otaviano... – diz, contrariado- Eu não posso perder esse emprego.
-Sabe por que eu simpatizei contigo logo de cara? Porque você demonstrou que é um homem inteligente. Pega as coisas no ar. Bom, eu tenho que descansar, e eu acho que você também. Foi um dia muito tenso pra todos nós. Boa noite, e não se esqueça do que eu falei.
-Boa noite, senhor.
Otaviano sai do quarto e Geraldo, contrariado, olha para a janela. Mesmo sem tê-lo como patrão, sabia desde então o quanto ele podia ser perigoso.

NOVE MESES DEPOIS

Rosane volta da ferira livre carregando duas sacolas de compras e passa por uma banca de revistas. Admira as fotos dos famosos que está tão acostumada a ver pela televisão. O jornal do dia anuncia:
-Controle da “TimBRe” está nas mãos de braço direito de Bittencourt.
-Essa foto é do Otaviano! Moço, quanto é?
-Um real- diz o jornaleiro, que recebe o pagamento.
-Obrigada- e continua a leitura.
-Novo acionista rouba a cena na “TimBRe”: a gravadora “TimBRe”, responsável pelas maiores vendagens de discos dos últimos dez anos, sofreu mudanças nos últimos meses, muitas atribuídas a Dalton Bittencourt (1918- 1994). Antes de morrer, Dalton deixou suas ações para Otaviano Melo Passos, seu braço direito na empresa e que sequer imaginava que seria detentor de 60% do controle. Sem saber o que lhe esperava, o rapaz firmou compromisso com Ana Maria Bittencourt, dona de 30% das ações (os outros 10% são distribuídos entre cinco sócios) e ela, em pouco tempo, decidiu se afastar da “TimBRe”, pedindo ao noivo que a representasse legalmente. Abalada desde o falecimento de seu pai, Ana protelou seu enlace matrimonial com Otaviano, mas o grande dia chegou: eles se casam nessa quinta (10) em uma cerimônia discreta na Basílica Central. Não faltarão repórteres querendo saber detalhes da vida a dois, mas uma pergunta tem feito a cabeça de todos que estarão na festa: como Otaviano conseguir ascender de maneira tão rápida? A resposta, segundo a noiva, só o amor que os une explica.
-Hoje... Ele vai casar com ela hoje... Mas eu não vou deixar, não esperando um filho dele... Moço, eu posso guardar minhas coisas aqui? Eu volto logo.
-Pode ir, eu guardo aqui.
-Obrigada- corre para pegar um ônibus com as poucas moedas que lhe restam...

XXXXX

Na basílica, Otaviano e o padre estão esperando pela chegada de Ana Maria, mas o rapaz não suporta mais tanta ansiedade.
-O que houve, hein? Por que ela não chega?
-É normal a noiva se atrasar no dia do casamento, meu filho. Fique calmo.
-Calmo... Calmo como? Tudo bem que as noivas se atrasam, mas no meu casamento? Tanto que estou esperando por isso! Vem cá, eu quero um copo d’água, onde tem, hein?
-Na sacristia, logo à esquerda. Eu pego pra você...
-Não. Deixa que eu pego.
-Você não pode sair daqui. Você é o noivo.
-Já esperei tempo demais, padre. A Ana Maria pode esperar também. Só tenho certeza de uma coisa: dessa basílica eu só saio casado. Com licença- passa, irritado.
Ao chegar à sacristia, encontra um bebedouro e toma um gole d’água. Dá de cara com Rosane.
-O que você está fazendo aqui? Vai embora, Rosane.
-O padre me deixou entrar. Eu disse que precisava de um momento pra me reconciliar com Deus. Mesmo tendo mentido, vai ver eu preciso disso mesmo, não é?
-Você está louca? Quer me prejudicar, quer? Só que você não vai conseguir! Nunca!

XXXXX


Geraldo traz Ana Maria e Sônia no carro. A empregada desce e elogia sua protegida.
-Você está linda, minha filha.
-Eu queria tanto que meu pai estivesse aqui, Sônia...
-Não vamos mais atrasar, já não chega esse trânsito que a gente enfrentou?- aconselha Geraldo.
-Certo, Geraldo. Eu vou lá para o altar e você vem comigo- avisa Sônia. Ana Maria fica na porta da igreja, vendo seus empregados correndo até o altar. Os convidados se levantam assim que percebem a presença da noiva. Ela estranha que a Marcha Nupcial não toca, mas dá alguns passos.
Sônia e Geraldo percebem que o noivo não está presente e Ana Maria grita:
-Onde é que está o Otaviano?- tendo como resposta a expressão de dúvida dos presentes.

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