15/10/2013

SOBRE PRÓDIGOS E PRODÍGIOS/ CAPÍTULO 15



-Como é possível? Eu assinei o contrato ontem. O Humberto foi à minha casa para selar o compromisso. Ela não pode ter dado um desfalque na gravadora. Não pode!
-Dr. Otaviano, nós queremos explicar...
-Isso o que quero: explicação. Talvez vocês não tenham a informação precisa, não checaram pra saber se isso é um boato...
-O próprio Humberto confirmou, senhor.
-Como ele confirmou? Vocês acham que ele diria se estivesse nos dando um golpe? Que provas vocês têm de que foi ele? Aliás... Que provas vocês têm de que sofremos um golpe?
-O nosso economista acaba de conferir as contas da empresa. Não há dinheiro disponível. Sumiu, como num passe de mágica. Até ontem, as contas estavam em ordem. Mas desde hoje cedo que a gravadora não dispõe de capital.
-Nós já chamamos a polícia, Dr. Otaviano. Humberto saiu do hotel onde estava hospedado sem levar seus pertences. Desapareceu, e não temos sequer uma única pista que possa nos levar a ele.
-Talvez se nós falássemos com alguém do escritório da “TimBRe” nos Estados Unidos...
-Sem registro de chegada ao território americano. Se ele desembarcou, foi com outra identidade. Quem sabe se até disfarçado?
-Mas... – começa a assimilar a questão- O que vocês queriam dizer com “o próprio Humberto confirmou”? Como assim?
-Foi encontrado, na entrada da gravadora, um DVD, endereçado ao senhor. A segurança decidiu assistir e... Nos trouxe- um dos acionistas levanta e põe o DVD para ser reproduzido. Todos o veem sem acreditar naquela situação.
-Primeiramente, eu gostaria de desejar um bom dia aos acionistas da “TimBre”. O que é óbvio, porque vocês realmente vão precisar de um bom dia pra encarar tudo o que está acontecendo. Quando estiverem vendo isso, já saberão que a empresa sofreu um desfalque. Esse desfalque foi dado por mim, Humberto Meirelles, que recolhi a assinatura de vocês. Acho muito curioso que, com tanta experiência, vocês assinem um contrato sem ler. Podem ligar para os artistas que estão na falsa lista de contratações. Eles dirão que jamais tiveram qualquer contato com a gravadora. E não adianta darem meu nome à polícia. Humberto Meirelles é só uma alcunha, como tantas outras que eu poderei usar gastando o dinheiro de vocês. Foi um prazer acabar com vocês. Um abraço de um homem que nunca vão descobrir a verdadeira identidade...
-O que vamos fazer agora, Dr. Otaviano?
-Saiam. Me deixem sozinho. Eu preciso ficar aqui.
-Nós temos que arrumar uma solução... – argumenta outro acionista, enquanto Otaviano se aproxima da televisão.
-O senhor tem que falar com a Ana Maria. Ela é dona de ações também...
-Saiam!- derruba o aparelho televisor- Vocês não ouviram? Eu quero ficar sozinho! Me deixem aqui- joga alguns dos papeis nos acionistas- Deem o fora daqui! Agora!
-Venha. Deixe o Dr. Otaviano- um aconselha aos outros.
-Não pode ser... – pega uma bebida e toma descontroladamente- Não pode ser. Ele não pode ter feito isso comigo. Não com a minha empresa... Não como o meu dinheiro!
-A justiça tarda, mas não falha, Otaviano.
-Dalton?
-Mesmo depois da minha morte, eu não poderia estar mais feliz. E mais uma vez, eu tenho a felicidade de repetir: foi um prazer ter destruído você.
-Desgraçado!- joga o copo de bebida contra a imagem, que logo desaparece- Velho desgraçado! Maldito! Eu fiz essa empresa crescer, eu fiz prosperar! Você não vai me vencer, infeliz! Ninguém vai! Ninguém!- joga as cadeiras no chão- Ninguém!- cai aos prantos no chão.

XXXXX

A diretora da escola em que Betina e Igor estudam olha para o relógio, que marca quatorze horas e vinte minutos. Decide ligar para a casa da família Antunes, e ninguém atende.
-Meninos, liguei pra casa de vocês. Nem seu pai nem sua mãe atendem.
-Liga pro celular dela- pede Betina.
-Daqui a gente vai pra casa. Acho que dá pra ir- garante Igor.
-De jeito nenhum. A mãe de vocês fica nervosa quando vocês vão pra casa sem ela. E ela me passou ordem: ou vocês vão com ela ou com seu Jandir. Eu vou ligar pro celular dela.
Rosane está na rua e atende o aparelho.
-É da escola... Alô?
-Dona Rosane, aqui é da diretoria do colégio.
-O que foi que houve?
-É que o Igor e a Betina ainda estão aqui.
-Por quê?  Passaram mal?
-Nenhum dos dois veio buscar eles, nem a senhora e nem o seu marido.
-Mas eu pedi pro Jandir... Deixa, eu estou saindo da casa de uma patroa e vou pegar os dois. Obrigada por ter ligado.
-Tudo bem. Até mais- desliga o telefone- pronto, a mãe de vocês já, já vem pra cá.
-Deve estar enchendo a cara de cana de novo. Mas hoje ele vai me ouvir. Ele faz o que quiser da vida dele, mas com os meus filhos ele vai ser responsável- toma um ônibus lotado.

XXXXX

Frederico está assistindo à televisão da ONG que preside com sua esposa e atenta para o noticiário.
-E uma última notícia: os usuários de drogas da região próxima ao Terminal Integrado de Passageiros estão se afastando do local. Depois da denúncia feita ontem em um de nossos telejornais, os dependentes químicos não continuam utilizando a praça como ponto de consumo de substâncias ilícitas. Segundo pessoas que moram nas proximidades da região, os traficantes aconselharam esses meninos de rua a circularem por outros pontos da cidade para que a polícia não efetue prisões relacionadas ao porte e à venda de entorpecentes. O “Jornal da Metrópole” fica por aqui. Assista agora ao programa “Campo Livre”. Uma boa tarde pra você.
Lana chega ao local e acompanha parte da reportagem.
-Você viu? Só foi o tempo de você ir lá que eles fugiram. Muitos, assim como eles, não querem ajuda.
-Mas a gente tem que ajudar. Não posso simplesmente desistir desses meninos. Eles precisam de um lugar como esses, de pessoas dispostas a fazê-los mudar de vida.
-Sabe que eu tenho uma curiosidade, Lana? De saber o que seria da minha vida se eu não tivesse te conhecido, apesar daquelas circunstâncias?
-Por favor, Frederico, eu não quero lembrar disso.
-Bom, vou insistir com o Otaviano.
-Onde você vai?
-Ao escritório da “TimBRe”. Eu tenho que ver esse homem, de qualquer maneira.

XXXXX

Rosane deixa os filhos em casa.
-Cadê meu pai?- pergunta Betina.
-Deve estar trabalhando, minha filha. Eu vou buscar ele na oficina. Igor, vem cá- o garoto se aproxima- Olha, meu filho, quero pedir pra você cuidar da sua irmã quando eu não estiver...
-Ele foi beber. Você sabe que ele está bebendo e que é por causa dos seus pesadelos. Não vai atrás dele, mãe- abraça-lhe, chorando.
-Igor, eu tenho que resolver a minha vida. E o seu pai tem que entender isso.
-Não vai embora, mãe.
-Daqui a pouco eu volto pra cuidar de você. E você já tem doze anos, já vem crescendo, pode ficar sozinho com a sua irmã.
-Você não vai voltar. Eu sei. Vai acontecer alguma coisa. Não entra no carro pra procurar o meu pai. Fica com a gente em casa.
-Para de chorar como se fosse pequeno! Eu já venho, eu prometo. Não deixa a sua irmã nervosa.
-Mãe...
-Me deixa sair, Igor. Eu tenho que ir atrás do seu pai. Tchau, minha filha- beija a cabeça de Betina.
-Beijo, mãe.
-Não abre a porta pra ninguém.
-Te amo, mãe- declara Igor.
-Eu também. Cuidado, hein?- fecha a porta e entra num carro antigo que está na porta da casa.
-Por que você está chorando?
-Nada, não- Igor abraça a irmã- daqui a pouco eu melhoro. Eu vou cuidar de você, Betina. Eu vou cuidar de você- esta é a promessa de quem sabe quem vai perder em breve.

XXXXX

Rosane dirige o carro, agora acompanhada de Jandir.
-Por que você pegou o meu carro?
-Queria o quê? Dirigir bêbado? Fui e voltei de ônibus do trabalho porque ia fazer um serviço. Receber o pagamento de uma mulher, a que eu te falei ontem. Não usei o carro porque você ia precisar.
-E eu fui.
-A pé. A pé porque você podia bater. Você pegou o dinheiro e fez o quê? Gastou em cerveja. Gastou sabendo que se não fosse eu, Betina e Igor ia chegar em casa e ver a geladeira vazia. Nem chegar em casa, porque se dependesse de você, eles iam ficar trancados na escola até a hora que eu chegasse.
-Minha nossa, esqueci dos meninos...
-A diretora ligou pedindo pra eu ir buscar. Sai desesperada, feito uma louca, mas deixei os dois em casa e vim te buscar. Se desmaiasse de fome todo mundo, você não estaria nem aí. Não é você que se ferra pra sustentar uma casa.
-Como é que não? Todo dia eu vou pra oficina fazer o quê? Turismo?
-Deve ser. Você entra lá e não passa nem quinze minutos.
-Já acabou o sermão?
-Não. Não acabei, não. Quando é que você tomar jeito e parar de prejudicar minha família?
-Claro, sua família. Porque eu não sou nada pra você. nunca fui. Depois vem me perguntar por que eu bebo tanto.
-Você bebe porque é fraco. Outro no seu lugar já tinha parado de dar tanto desgosto pros outros. Eu não casei com esse traste que você é. Casei com outro homem. Mais amoroso, mais romântico, que me ajudou a seguir em frente. Com você, que é um vagabundo imprestável, não!
-Adiantou de quê? Você não me procura na cama, não me procura nem pra conversar. Agora pra me cobrar é num instante. O tempo todo. Mas se não fosse o meu amor por você, essa droga de família nem ia existir. Se fosse hoje em dia, você ia morar com o Otaviano...
-Não fala no nome dele!
-Falo, sim! Você ia lutar pra sustentar não só sua mãe, mas esse vagabundo, que ia arranjar qualquer piranha que tivesse mais dinheiro do que você e encher sua cabeça de chifre! Quando ele chegasse do trabalho, sabe o que é que ele ia fazer? Comer você de porrada, enquanto você lavasse a roupa dele. Dele, da sua mãe e dos filhos dele. Não é tão bom que você sonha com ele toda noite? Procura o Otaviano e leva pra casa.
-Não dá ideia, não, Jandir. Do jeito que eu estou, é capaz disso mesmo.
-Mas é lógico. Mais ou menos como se eu fosse um cafetão, e tendo que passar a piranha que mora na minha casa pra outro. A sorte que você tem é que eu não mandei pro inferno porque os meus filhos precisam de uma mãe.
-Eles precisam é de um pai mesmo, Jandir. Um pai que não seja você. Só tenho pena da Betina, porque você é o homem que ela conhece de pai. Mas o Igor...
-O que é que tem o Igor? É meu filho como ela!
-Não é. O Igor é especial. Mais do que a Betina. Eu amo minha filha, dou minha vida pela felicidade dos dois, mas Igor é mais especial. É filho do único homem que eu amei.
-Você está mentindo. Você quer me irritar contando essa mentira. O Igor é meu filho. Eu sei que é meu filho.
-Eu errei de dar pra Betina um pai como você. Mas com o Igor não. Eu sempre amei ele mais do que a minha filha, porque nela eu via você. Nela eu sentia seu cheiro de bebida, seu pouco caso com a gente. O Otaviano não era boa coisa também, não, mas ele soube me satisfazer na cama. A mulher dele deve ser feliz até hoje com um homem daquele todo dia na cama dela.
-Por que você está fazendo isso comigo, Rosane? Eu amo o Igor... Eu amo o meu filho! Como é que você tem capacidade de inventar essa estória?
-Você ama um enteado, um enjeitado. O Igor não é nada seu, e nunca vai ser. Eu devia ser amante do Otaviano porque, pelo menos, eu ia dar uma vida boa pros meus filhos e não ter que dormir com um desgraçado feito você. Quer que eu conte como foi que o Otaviano fez o Igor comigo?
-Para!- grita, aos prantos, tampando os ouvidos.
-Foi uma briga de ciúmes.  Ele me espancou e me fez dele, no chão do meu quarto. O mesmo quarto que eu durmo com você tem doze anos! E no dia do parto, eu fui até a igreja pedir pra ele não casar por causa do Igor. Ele me trocou pela nojenta da patroa dele. Mas vai ver se ele vai resistir se eu procurar ele agora.
O carro de Otaviano vem na contramão. Rosane não segura o volante e ao ver o rosto do homem que tanto ama, não controla a direção do veículo.
-Cuidado!- o empresário grita e Rosane desvia seu carro, jogando-o na beira de uma ribanceira.

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