03/10/2013

SOBRE PRÓDIGOS E PRODÍGIOS/ CAPÍTULO 3



Uma missionária está entregando recados pela rua, quando encontra Rosane, se dirigindo a um ponto de ônibus.
-Moça, leve um.
-Não, obrigada.
-Leve- insiste, até que Rosane segura. A moça vai embora, afastando-se alguns metros da mulher religiosa. Lê o papel.
-“Você tem tempo para Deus hoje?”.
Chegando à parada de ônibus, joga-o na lixeira. A missionária vê e decide continuar entregando os panfletos. Mas é subitamente tomada por uma dor no peito. Aproxima-se dela novamente e lhe entrega um novo.
-A senhora já me deu um desses.
-E você jogou fora, minha irmã.
-Vai ver porque eu não quis ler mesmo.
-Nem no título prestou atenção?
-Prestei. Era uma pergunta, não era? Pois eu vou te responder. Sabe que não tenho tempo, não? Pra ninguém, na verdade. O homem que eu amo não me quer, e me troca por uma vida que eu nunca vou poder dar a ele. Eu não tenho nada, e muito menos tempo. Vai ver nem tempo eu quero ter.
-Talvez se ele conhecesse melhor a palavra, mudaria de...
-Com certeza, não ia mudar uma vírgula. Sinceramente, e acho melhor que seja assim. É o que todo mundo chama de mal necessário.
-Ninguém precisa sofrer, se não quiser. Quem sabe você e seu marido não voltam e reatam o que construíram juntos, minha irmã?
-Não sou casada, e piorou de eu ser tua irmã. Eu não preciso acreditar num ser superior pra saber que a minha vida não é aquilo que eu quero que seja.
-Tome outro. Fique com ele.
-Por que a senhora insiste tanto com sua religião?
-Não faço isso pras pessoas seguirem minha religião. Faço porque todos, em algum momento da vida, já fizeram os seus semelhantes pensarem sobre o que estão fazendo. Religião é consequência de uma escolha sua.
-A falta dela também. Por isso, prefiro continuar sem.
-Se eu disser que meu coração foi tocado pra entregar isso de novo, a irmã vai acreditar em mim?
-Essa é a desculpa pra gente desocupada como “a irmã”?
-Vamos fazer o seguinte: eu não quero que você reflita nem leia isso agora. A verdade é que não trouxe outro pra que lesse agora.
-Por que está me dando, então?
-Porque vai chegar o momento mais difícil da sua vida, e você vai precisar dele.
-Não acho que ela possa ficar pior do que está.
-Se depender de você, pode ficar melhor do que está.
-Infelizmente, não é uma coisa que só eu resolva.
-Deixe nas mãos de quem entende de causas impossíveis.
-Já pedi demais. Sei o que a senhora vai dizer. Toda crente diz isso.
-Diz também que sua vontade pode não ser a vontade Dele?
-Diz. E isso me irrita. Por isso, tenho nojo de crente.
-Tudo bem. Não me interessa que a irmã lembre meu rosto todo dia, não. Só não jogue mais isso no lixo. Vai servir e muito- afasta-se de Rosane, que amassa o papel com raiva.

XXXXX

Otaviano volta pra casa e joga a maleta sobre o sofá, demonstrando extrema satisfação. Pega uma bebida no armário da cozinha e um copo. Quando toma o primeiro gole, seu telefone fixo toca. Trata-se de Dalton.
-Alô?
-Seja lá o que tenha dado em você, trate de voltar pra cá agora.
-Eu não vou voltar, doutor. A não ser que eu tenha uma razão muito forte pra tanto.
-Pois eu vou te dar uma única, seu imbecil: somos a maior empresa musical do país. E do jeito que você é ambicioso, não acredito que vá se contentar com qualquer merreca que te pagarem.
-Não é mais uma questão de quanto eu possa ganhar saindo da gravadora. Tem a minha satisfação pessoal em jogo.
-A quem você quer enganar, Otaviano? Qualquer pessoa que tenha o mínimo de inteligência sabe que dinheiro é o que te move.
-Bom, e se eu disser pra senhor que não é a única coisa que me interessa?
-O dinheiro como mero funcionário pode não interessar agora, mas sempre te sustentou. E tirou a você da miséria absoluta. Hoje, você mora numa casa de condições precárias, mas antes, sua situação era muito pior.
-O senhor pode ficar certo de que eu agradeço muito o que...
-Não me agradeça! Tire a minha filha daqui, e eu prometo que dobro o seu salário!
-Pela primeira vez, eu vou ter que não acatar às suas ordens. Aliás, já deixei bem claro que havia me afastado.
-Pois então, não ouse pensar em pisar na minha empresa. Eu vou acionar os meus seguranças pra que você não ponha os pés aqui. E pode ter certeza de que eu vou usar toda a minha influência pra que você não arranje emprego em lugar algum. Você vai me pagar caro por não se aliar a mim, maldito!- desliga o telefone.
-Vai esperando, Dalton. Eu vou voltar, só que vai ser como acionista. Tira a sua filha e me coloca pra ser um inimigo à sua altura. Velho desgraçado...

XXXXX

Alguns minutos depois, Dalton sai do prédio da empresa e fala com o rapaz que trabalha na recepção.
-Onde está a Ana Maria?
-Saiu daqui agora há pouco.
-Disso eu sei, passei na sala dela e não a vi. Sabe onde ela foi?
-Não disse nada, Dr. Dalton.
-Pior pra ela se ela inventar de fazer uma besteira. Eu vou para casa, e não passe o telefone. Não estou pra ninguém.
-Sim, senhor.
O motorista está esperando na entrada do prédio quando Rosane aparece de surpresa.
-Bom dia. É aqui que trabalha Otaviano Melo Passos?
-Não trabalho aqui, não, moça. Sou motorista do dono da empresa. Pergunta ali, na recepção.
-Certo. Obrigada.
Rosane e Dalton se cruzam e trocam olhares. Ele estranha uma mulher tão simples quanto ela ir à sua empresa, mas irritado, não a abordou ou tentou impedir sua entrada.
-Já avisou os seguranças da minha casa?- pergunta ao motorista.
-Sim, eles estão proibidos de deixar Otaviano entrar lá.
-Vamos embora- entra no carro.
Já Rosane fala com o recepcionista.
-É aqui que trabalha o Otaviano Melo Passos?
-Era até essa manhã. Ele pediu demissão.
-Como assim se demitiu? Por quê?
-Parece que ele teve uma briga com o Dr. Dalton, esse senhor que saiu agora daqui.
-Eu tenho que ir atrás dele. Eu tenho que falar com ele- corre.
-Moça... Moça!– tenta acalmá-la.

XXXXX

Otaviano está com sua TV ligada. Um telejornal anuncia.
-Ainda não se sabe qual é a posição oficial que a gravadora “TimBRe” vai tomar a partir do próximo ano. Estima-se que 60% dos discos produzidos sejam vendidos em formato compact disc. Mas uma briga interna de acionistas põe risco à saúde da empresa presidida por Dalton Bittencourt. Acompanhe a reportagem a seguir.
Ana Maria bate a porta da casa de Otaviano, que não escuta num primeiro momento. Ele continua bebendo sua cerveja, até que ela o chama.
-Otaviano?
-É a voz da Ana Maria...
-Otaviano, você está aí? Tem alguém em casa?
O rapaz corre para a cozinha, onde coloca o copo de cerveja sobre a mesa. Correr para atender a porta.
-Ana Maria? O que você veio fazer aqui?- finge surpresa.
-Se você estiver disposto, eu estou aqui pra resolver a situação de uma vez por todas.
-Tem razão. Precisamos resolver... A nossa situação.
A moça fica nervosa com as palavras do rapaz, mas não tira os olhos dele.

Nenhum comentário:

Postar um comentário