Uma missionária
está entregando recados pela rua, quando encontra Rosane, se dirigindo a um
ponto de ônibus.
-Moça,
leve um.
-Não,
obrigada.
-Leve-
insiste, até que Rosane segura. A moça vai embora, afastando-se alguns metros
da mulher religiosa. Lê o papel.
-“Você
tem tempo para Deus hoje?”.
Chegando
à parada de ônibus, joga-o na lixeira. A missionária vê e decide continuar
entregando os panfletos. Mas é subitamente tomada por uma dor no peito.
Aproxima-se dela novamente e lhe entrega um novo.
-A
senhora já me deu um desses.
-E você
jogou fora, minha irmã.
-Vai ver
porque eu não quis ler mesmo.
-Nem no
título prestou atenção?
-Prestei.
Era uma pergunta, não era? Pois eu vou te responder. Sabe que não tenho tempo,
não? Pra ninguém, na verdade. O homem que eu amo não me quer, e me troca por
uma vida que eu nunca vou poder dar a ele. Eu não tenho nada, e muito menos
tempo. Vai ver nem tempo eu quero ter.
-Talvez
se ele conhecesse melhor a palavra, mudaria de...
-Com
certeza, não ia mudar uma vírgula. Sinceramente, e acho melhor que seja assim.
É o que todo mundo chama de mal necessário.
-Ninguém
precisa sofrer, se não quiser. Quem sabe você e seu marido não voltam e reatam
o que construíram juntos, minha irmã?
-Não sou
casada, e piorou de eu ser tua irmã. Eu não preciso acreditar num ser superior
pra saber que a minha vida não é aquilo que eu quero que seja.
-Tome
outro. Fique com ele.
-Por que
a senhora insiste tanto com sua religião?
-Não faço
isso pras pessoas seguirem minha religião. Faço porque todos, em algum momento
da vida, já fizeram os seus semelhantes pensarem sobre o que estão fazendo.
Religião é consequência de uma escolha sua.
-A falta
dela também. Por isso, prefiro continuar sem.
-Se eu
disser que meu coração foi tocado pra entregar isso de novo, a irmã vai
acreditar em mim?
-Essa é a
desculpa pra gente desocupada como “a irmã”?
-Vamos
fazer o seguinte: eu não quero que você reflita nem leia isso agora. A verdade
é que não trouxe outro pra que lesse agora.
-Por que
está me dando, então?
-Porque
vai chegar o momento mais difícil da sua vida, e você vai precisar dele.
-Não acho
que ela possa ficar pior do que está.
-Se
depender de você, pode ficar melhor do que está.
-Infelizmente,
não é uma coisa que só eu resolva.
-Deixe
nas mãos de quem entende de causas impossíveis.
-Já pedi
demais. Sei o que a senhora vai dizer. Toda crente diz isso.
-Diz
também que sua vontade pode não ser a vontade Dele?
-Diz. E
isso me irrita. Por isso, tenho nojo de crente.
-Tudo
bem. Não me interessa que a irmã lembre meu rosto todo dia, não. Só não jogue
mais isso no lixo. Vai servir e muito- afasta-se de Rosane, que amassa o papel
com raiva.
XXXXX
Otaviano
volta pra casa e joga a maleta sobre o sofá, demonstrando extrema satisfação.
Pega uma bebida no armário da cozinha e um copo. Quando toma o primeiro gole,
seu telefone fixo toca. Trata-se de Dalton.
-Alô?
-Seja lá
o que tenha dado em você, trate de voltar pra cá agora.
-Eu não
vou voltar, doutor. A não ser que eu tenha uma razão muito forte pra tanto.
-Pois eu
vou te dar uma única, seu imbecil: somos a maior empresa musical do país. E do
jeito que você é ambicioso, não acredito que vá se contentar com qualquer
merreca que te pagarem.
-Não é
mais uma questão de quanto eu possa ganhar saindo da gravadora. Tem a minha
satisfação pessoal em jogo.
-A quem você
quer enganar, Otaviano? Qualquer pessoa que tenha o mínimo de inteligência sabe
que dinheiro é o que te move.
-Bom, e
se eu disser pra senhor que não é a única coisa que me interessa?
-O
dinheiro como mero funcionário pode não interessar agora, mas sempre te
sustentou. E tirou a você da miséria absoluta. Hoje, você mora numa casa de
condições precárias, mas antes, sua situação era muito pior.
-O senhor
pode ficar certo de que eu agradeço muito o que...
-Não me
agradeça! Tire a minha filha daqui, e eu prometo que dobro o seu salário!
-Pela
primeira vez, eu vou ter que não acatar às suas ordens. Aliás, já deixei bem
claro que havia me afastado.
-Pois
então, não ouse pensar em pisar na minha empresa. Eu vou acionar os meus
seguranças pra que você não ponha os pés aqui. E pode ter certeza de que eu vou
usar toda a minha influência pra que você não arranje emprego em lugar algum.
Você vai me pagar caro por não se aliar a mim, maldito!- desliga o telefone.
-Vai
esperando, Dalton. Eu vou voltar, só que vai ser como acionista. Tira a sua
filha e me coloca pra ser um inimigo à sua altura. Velho desgraçado...
XXXXX
Alguns
minutos depois, Dalton sai do prédio da empresa e fala com o rapaz que trabalha
na recepção.
-Onde
está a Ana Maria?
-Saiu daqui
agora há pouco.
-Disso eu
sei, passei na sala dela e não a vi. Sabe onde ela foi?
-Não
disse nada, Dr. Dalton.
-Pior pra
ela se ela inventar de fazer uma besteira. Eu vou para casa, e não passe o
telefone. Não estou pra ninguém.
-Sim,
senhor.
O motorista
está esperando na entrada do prédio quando Rosane aparece de surpresa.
-Bom dia.
É aqui que trabalha Otaviano Melo Passos?
-Não
trabalho aqui, não, moça. Sou motorista do dono da empresa. Pergunta ali, na
recepção.
-Certo.
Obrigada.
Rosane e
Dalton se cruzam e trocam olhares. Ele estranha uma mulher tão simples quanto
ela ir à sua empresa, mas irritado, não a abordou ou tentou impedir sua
entrada.
-Já
avisou os seguranças da minha casa?- pergunta ao motorista.
-Sim,
eles estão proibidos de deixar Otaviano entrar lá.
-Vamos
embora- entra no carro.
Já Rosane
fala com o recepcionista.
-É aqui
que trabalha o Otaviano Melo Passos?
-Era até
essa manhã. Ele pediu demissão.
-Como
assim se demitiu? Por quê?
-Parece
que ele teve uma briga com o Dr. Dalton, esse senhor que saiu agora daqui.
-Eu tenho
que ir atrás dele. Eu tenho que falar com ele- corre.
-Moça...
Moça!– tenta acalmá-la.
XXXXX
Otaviano
está com sua TV ligada. Um telejornal anuncia.
-Ainda
não se sabe qual é a posição oficial que a gravadora “TimBRe” vai tomar a
partir do próximo ano. Estima-se que 60% dos discos produzidos sejam vendidos
em formato compact disc. Mas uma briga interna de acionistas põe risco à saúde
da empresa presidida por Dalton Bittencourt. Acompanhe a reportagem a seguir.
Ana Maria
bate a porta da casa de Otaviano, que não escuta num primeiro momento. Ele
continua bebendo sua cerveja, até que ela o chama.
-Otaviano?
-É a voz
da Ana Maria...
-Otaviano,
você está aí? Tem alguém em casa?
O rapaz
corre para a cozinha, onde coloca o copo de cerveja sobre a mesa. Correr para
atender a porta.
-Ana
Maria? O que você veio fazer aqui?- finge surpresa.
-Se você
estiver disposto, eu estou aqui pra resolver a situação de uma vez por todas.
-Tem razão.
Precisamos resolver... A nossa situação.
A moça fica
nervosa com as palavras do rapaz, mas não tira os olhos dele.
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