31/05/2014

OS INATACÁVEIS/ CAPÍTULO 8: EM DESEJO

-Que estória é essa de óvulo, sua cretina? Que sandice é essa que você veio contar? Não basta ter um caso com o meu marido? Ainda tem que inventar mentiras a respeito do meu filho?
-Eu não acredito que seja mentira, Verônica. Eu não sei por quê, mas eu tenho quase certeza de que, por mais perturbador que tudo isso seja, ela está falando a verdade...
-Você cala a boca, Murilo! Cala essa boca, que eu não quero mais escutar você! Eu não aguento mais você protegendo essa mulher...
-Essa mulher não! A mãe do seu filho! Aliás, seu não é. O “Gigante” nunca foi nada seu. É meu e do seu marido!
-Vagabunda!- desfere uma bofetada no rosto de Natália.
-É essa sua arma? Me bater? Então, eu dou a outra face também! Mas não vai mudar o fato de que você foi enganada todo esse tempo.
-Bem que eu desconfiava... Onde é que vocês se refestelavam, hein? Na minha cama, quando eu saía pra trabalhar? Quer dizer que o grande pastor trazia a fiel pro quarto e eu não sabia?
-Eu não tive nada com essa mulher!- grita- Nada!
-Levantando o tom de voz, Murilo? Definitivamente, você não se cansa de me surpreender. O que mais? O que mais eu vou descobrir com relação a você e a essa rameira?
-Agora chega!- Natália devolve a bofetada, derrubando a esposa de Murilo no sofá- Eu não tive, não tenho, nem quero ter caso com o seu marido. Ele não me interessa como homem, e também não me interessa o que você pensa de mim. Só que da próxima vez que você me ofender, eu acabo com a sua raça.
-Quem você pensa que é pra encostar sua mão em mim, sua...
-A mãe do “Gigante”! A mãe do garoto que você criou durante dezoito anos, sem saber que ele não era seu filho! Não é nada seu! Pensa que só porque ele saiu da sua barriga é o seu filhinho querido? Ledo engano, Verônica! Quando eu disse que você foi enganada, foi pelo meu pai! Ele sabia, sempre soube que você não conseguia engravidar, e se aproveitou disso pra pôr o neto dele no mundo, já que eu e o meu marido não quisemos ter filhos naquela época. Mas eu tinha congelado os meus óvulos. E sem que eu soubesse, ele implantou um deles em você. Esse rapaz, que tanto você enche a boca pra dizer que é seu, é meu filho! Esse delinquente, esse ladrão, esse marginal não passa de alguém criado por você! Eu é que estou há mais tempo longe dele. Dezoito anos, sua imbecil! Ele é meu filho! Meu filho, e do seu marido!
-Como é que você... –a voz de Verônica fica embargada- Como é que você deixa essa mulher falar essas barbaridades, Murilo? Isso que ela diz não tem cabimento...
-Eu quero um exame de DNA! Se existe prova pra mostrar a todos que eu sou a verdadeira mãe do “Gigante”, essa prova é o DNA!
-Eu não acredito em você... Em nenhuma palavra do que você “tá” me dizendo... Você é uma mentirosa!
-Durante anos, o meu pai investigou a vida de vocês. Seguiu bem de perto os passos do meu filho. Isso porque ele pretendia deixar metade da sua herança pro “Gigante”. E não é só pelo dinheiro que eu quero encontrar o meu filho. Eu quero conhecê-lo, abraçá-lo, dizer que eu sou a mãe biológica dele!
-Você é uma louca!
-Você não tem como me negar esse direito! Eu vou até o fim, vou contratar os melhores advogados, os melhores investigadores do país pra encontrá-lo, e fazer com que ela assuma o meu sobrenome! O sobrenome que é dele!
-O sobrenome do meu filho é Nobre! Se você quer dar uma família pra alguém, procure outra pessoa! Eu tenho fé que ele vai voltar pro seio da família dele. Da única e verdadeira família! Mas a única mãe que ele vai abraçar é a Verônica.
-Já vi quer eu não posso contar com você... Apesar de ver que você vê verdade nos meus olhos...
-Pois o que eu vejo nos seus é engano, mentira, trapaça... –interrompe Verônica- Uma obra contrária, preparada pelo inimigo! Mas que não tem força nem poder!
-Guarde o seu vocabulário! Ele não me intimida. Eu vou encontrar o meu filho, mesmo sem a ajuda de vocês.
Passos apressados são ouvidos por Murilo.
-Meu filho... Ele está aqui... “Gigante”!- sobe as escadas- “Gigante”- Natália vai atrás, mas é impedida por Verônica.
-Acabou o seu show. Vai embora daqui. Nunca mais pise nessa casa.
-Se for pra cá que o meu filho vai voltar, aqui vai ser o meu lugar, Verônica. Pode escrever- toma a bolsa de volta e sai da residência.
Murilo abre a porta do quarto do filho e percebe a janela aberta, com uma forte ventania que balança uma cortina branca.
-Alguém esteve aqui. Será que era ele?



Alexandre, após fugir pela janela do quarto, corre por duas ruas próximas à casa de Murilo. Pálido, ele permanece sem acreditar naquilo que acabou de escutar.
-Não pode ser... É mentira daquela mulher. Ela não pode ser a... Não, não pode ser... – pensa, enquanto continua correndo. Algumas pessoas olham para ele sem entender o motivo de seu desespero. Ele percebe que está chamando a atenção e começa a andar mais devagar. Pega a última rua à direita e, ao entrar nela, dá de cara com Célio.
-Alexandre? Eu não posso acreditar! É você mesmo?
O rapaz tenta correr, mas o pastor que trabalha com Murilo o segura pelo braço.
-Onde é que você estava? Onde está agora?
-Não é da sua conta!
-Será que você não vê o que está acontecendo? Sua família está desesperada, sem saber notícias suas, sem saber se você está vivo ou não... Como você consegue causar todo esse mal sem sentir culpa nenhuma?
-Minha família, pastor Célio? Eu não tenho família, não tenho ninguém pra chamar de família, não. Só tenho um pai, e ele não está preocupado comigo.
-Você não pode ser tão injusto assim. Não sabe o que se passa no coração de um homem.
-Ah, esse papo de igreja de que todos são pecadores, que todos erram, que todos fazem besteira. Não adianta falar disso se continuar errando. Apontar os erros dos outros é fácil, eu quero ver olhar pro seus. E meu pai errou muito, sem se arrepender de nada do que fez pros outros.
-Meu filho... Pense bem no que você está fazendo da sua vida. O seu caminho pode não ter volta.
-Assim é melhor. Não quero voltar pra vida que eu levava.
-Não é pior do que esse vazio que você deve estar sentindo agora...
-Para, Célio! Vazio eu senti antes, quando eu descobri o que meu pai fazia por debaixo dos panos. Um ladrão. Um cara que roubava dos outros. Marginal, era isso que ele era. E não duvido nada que ele continue roubando os outros. Não digo que sou um santo pra enganar ninguém. Tiro mesmo porque acho que aquela vida que os outros levam era pra ser minha.
-Coloque a mão na consciência, Alexandre. Reflita sobre o amor que seu pai tem por você. Lembre todas as vezes que ele se ajoelhou pedindo pra você voltar pra casa.
-Por culpa. Se orou pra eu voltar, por que não fez pra que eu não me transformasse num bandido igual a ele? A polícia não “tá” me procurando, e sabe por quê? Porque ele não chamou.
-Claro. Nenhum pai quer ver seu filho preso.
-Ou não quer ser preso junto. Até nunca mais, pastor Célio!- volta a correr. Célio começa a chorar, olhando para o céu.
-Por que me tentas a esse ponto, Senhor, se sabes que eu não sou capaz de suportar tanto?


Murilo volta do quarto do filho desaparecido e vai até a cozinha, ao perceber que Verônica não está mais na sala. A esposa do pastor está sentada à mesa.
-Eu quero saber onde é que essa mulher mora.
-Deve estar hospedada em algum hotel perto daqui, Verônica. Não sei qual.
-Mentira! Deve saber, sim. Só não quer me contar. Aliás, quando é que você pretendia me contar a verdade sobre essa desgraçada?
-Não pretendia contar.
-Como eu imaginava...
-Porque não sabia se ela estava falando a verdade.
-Da mesma forma que eu não posso confiar em tudo o que você me diz.
-Por favor, Verônica! Eu omiti porque não tinha confiança nela.
-E o que fez você ter, então?
-Aparentemente, ela não tem nenhum motivo pra mentir sobre o nosso filho. A não ser que ele tenha feito alguma coisa e ela queira se vingar.
-De um jeito ou de outro, você consegue jogar a culpa pra cima do “Gigante”.
-Eu posso ser um homem ingênuo, mas ele, certamente, não é. Tanto é que essa tribulação toda começou bem antes dele fugir de casa, quando começou a roubar e eu descobri tudo. Se eu cometi algum erro nessa estória, foi o de não te contar tudo desde o início. Te abrir os olhos, dizer que mesmo com todo o amor que demos a ele...
-Pode parar, Murilo. Você mesmo adora encher a boca de frases prontas da Bíblia, como aquela que você adora repetir nos cultos, que a gente tem que ensinar uma criança qual o caminho que ela deve andar pra não se desviar dele. Não é isso? Então, como você explica o seu próprio filho ter fugido de casa? Sim, porque vai ver que agora nem chamar de nosso eu posso mais, não é?
-Dessa culpa eu fico isento. Como também posso isentar você. Nós dois amamos o “Gigante” do mesmo jeito, na mesma intensidade. Mas ele sempre quis mais do que eu posso dar, do que você pode dar. Lembra uma vez, na festa do dia das mães do colégio? Que perguntaram a ele o que a mãe dele fazia? Ficou com vergonha de dizer que você vendia perfume, coisa que mulher usa, de porta em porta. Isso é vergonha, por acaso? Ser pobre? Vergonha, pra mim, é roubar, matar, tirar o que é dos outros... Por isso, eu sinto vergonha dele, mas o meu amor por ele não diminuiu nem um minuto. E eu sei que o seu também não. O que te perturba, Verônica, é pensar na possibilidade de isso ser verdade, mesmo que a Natália traga falsos indícios de que possa ser a mãe do nosso filho.
Verônica abaixa a cabeça e leva as mãos aos olhos. Depois, levanta-se e diz ao marido:
-Amanhã, eu vou caçar essa mulher. Vou procurar em tudo quanto é hotel, até encontrar.
-E vai fazer o quê?
-O pai dela não era rico? Não tinha condições? Então, que ela pague o exame de DNA. Ela vai pagar, e eu vou levar alguma coisa dele pra provar que ele é meu filho.
-Só uma coisa que eu quero saber, Verônica: e se não for o seu filho? Vai deixar de amar o “Gigante”?
-Não. Vou deixar de amar você. Aliás, estou começando desde que percebi a sua relação com aquela mulher.
-Pela última vez: Natália não é minha amante!
-Eu não consigo acreditar em você. Não mais.
-Então, eu vou te pedir uma coisa: acreditar no mover que um milagre faz.
-Só nisso mesmo. Porque em você eu não consigo mais acreditar.


Na penitenciária, voltando ao tempo atual, Murilo visita Irandir e continua a conversar com ele.
-Que susto você deu!
-É, escapei por pouco. Só que ninguém veio me ver. Nem trouxeram a minha filha.
-Calma, depois alguém vai vir te visitar. Pelo menos, já passou o pior.
-Verdade. Aquele médico foi uma bênção.
-O que foi que você disse?
-Aquele médico. Não tinha nenhum, aí ele veio pra cuidar do pessoal do presídio. Se não fosse ele, eu tinha morrido.
-Não é do médico que eu perguntei. Você disse que ele... Foi uma bênção.
-Eu falei isso?
-Falou. Sem pensar, mas falou.
-Vai ver é porque eu pensei que não fosse mais escapar, que não fosse mais ver a minha filha, e daí eu...
-Já entendi.
-Ou é de tanto falar com você. Não acredito totalmente N’Ele. Aliás, às vezes eu penso que Ele existe, mas não se envolve com meus problemas, entende?
-Todo mundo deve passar por isso, pelo menos uma vez na vida.
-Quer dizer que o pastor já passou?
-Vivi muitos milagres. O nascimento do meu filho foi o maior da minha vida, Irandir.
-Sei como é.
-Depois, como pastor, era o que eu mais via: a transformação na vida das pessoas. Gente voltando pra família depois de ter se viciado em crack, marido que retoma o casamento depois de ter agredido a esposa diversas vezes, marginal que aceita o Senhor como salvador depois de ter quase morrido... Exemplos não faltam.
-Não foi isso que eu perguntei. Queria saber se já duvidou alguma vez.
-Quase todo dia, depois que eu vim parar aqui. Desde que o advogado disse que eu ia ser transferido pra cá... Não sei, parece que eu “tô” num jogo e o desafio é saber quanto tempo eu vou aguentar.
-Seu caso é mais complicado que o meu.
-É. Pelo menos você sabe que sua filha ainda te ama.
-Não. A família da minha mulher veio em peso pra cima de mim. Não sei se disseram alguma coisa, falaram mal de mim pra ela... Duvido que o amor dela por mim seja o mesmo.
-Amor não muda.
-Sabe quando eu realmente vou acreditar nesse poder que você tanto fala? Quando você sair daqui e tudo voltar a ser como era antes.
-Cuidado com o desafio. Minhas orações “tão” sendo ouvidas, mas esse desafio... Pode ser aceito.


Aquela mesma noite serve para que Alexandre volte para o apartamento onde se esconde aos prantos. Rebeca sai do quarto vestindo uma camisola e encontra o comparsa na sala.
-Alexandre? Você saiu daqui? Ficou maluco? A gente pensou que você já “tava” dormindo, no quarto... O que é que você tem?
-Cadê o Paulo? Onde é que ele “tá”?
-Paulo já foi pra cama. Mas o que foi que houve?
-Me abraça, Rebeca. Não me pergunta nada, me abraça!- agarra a moça, que toca em seu cabelo.
-O que é que você “tá” fazendo? Se o Paulo pega a gente aqui...
-A gente não “tá” fazendo nada demais- enxuga as lágrimas- Só se você quiser fazer.
-Para com isso, Alexandre. É só um capricho.
-Quer pagar pra ver?
-Desiste disso. Você não sabe com quem “tá” se metendo.
-Vai valer a pena se no final de tudo isso, eu tiver você. Será que você ainda não entendeu que eu te quero?
-Entendi muito bem. Mas eu não posso.
-Pode, sim. E quer.
Os dois se beijam e vão até o quarto do rapaz, onde Alexandre tira a roupa de Rebeca e, em seguida, a sua. Por diversos momentos, a jovem tenta se desvencilhar dele, mas ele traz seu rosto de volta. Até que, num determinado momento, ela cansa de resistir.


No quarto em que Natália está hospedada, uma camareira recolhe alguns lençóis.
-A senhora deseja mais alguma coisa?
-Não, obrigada. Pode se retirar.
-Onde é que ela “tá”? Ela “tá” aqui?- Verônica entra intempestivamente.
-Quem é você? Eu vou chamar a segurança!
-Não, pode deixar. Eu já esperava por essa visita. Pode ir tranquila, ela vai ficar aqui conversando comigo.
-Se é assim, com licença.
-Sabia que você ia dar um jeito de me encontrar.
-Não foi muito difícil.
-Como é que você passou e ninguém tentou te impedir?
-Falei que era parente sua e que o assunto era urgente, que não podia esperar me anunciarem. Você é tão cara de pau que fez questão de se enfiar num hotel perto da minha casa. Não deu trabalho nenhum.
-Se engana, Verônica. Não é pra ficar perto da sua casa, e sim do meu filho.
-Me poupe dessa conversa fiada.
-Bom, se você não quer falar sobre isso, creio que nós duas não temos nenhum assunto em comum. Certo?
-Ontem você falou que a gente podia fazer um exame de DNA pra saber se o “Gigante” é mesmo seu filho ou meu, como sempre foi e sempre vai ser.
-Está disposta a isso mesmo?
-Só não tenho dinheiro pra fazer o exame. Mas isso você deve ter de sobra.
-Tudo bem. Mas eu preciso de alguma prova pra fazer o exame.
-Trouxe duas- tira duas sacolas da bolsa que está carregando- Essa daqui é a escova de dente que ele usava- diz, ao abrir uma delas, para em seguida abrir a outra- Já esse pente tem alguns fios de cabelo. Era o que ele usava também.
-Você veio preparada pra tudo.
-Como eu sei que você deve ter seus contatos, vai indicar um lugar pra que a gente faça o exame.
-Pode ser numa filial da clínica do meu pai...
-Não, vai ser em qualquer outro lugar. Por isso que eu já vim preparada com tudo. Sei que em dois dias o resultado sai. Vou esperar na clínica até que o resultado saia. Porque sei que você não vai poder comprar ninguém, muito menos fraudar o resultado.
-Verônica, eu não seria capaz disso, e não acredito que você pense isso de mim.
-Não me mande confirmar o que acho ou deixo de achar de você.
-Se é assim, eu também vou ficar dia e noite esperando o resultado. E pode ter certeza de que o “Gigante”, quando voltar pra casa, vai ter que me chamar de mãe.
-Vamos ver se vai.
-Então, vamos? Eu só preciso pegar o meu talão de cheques e passar na recepção do hotel pra avisar que vou ter de me ausentar.
-Faça o que quiser. Mas não demore nem tente me enganar. Eu quero ver se essa sua estória tem cabimento ou não.
-Além das provas que o meu pai me deixou, esse exame provará para você e Murilo que eu tenho razão.
-Quero ver no que isso vai dar.


Rebeca e Alexandre continuam despidos. Dormem abraçados na cama, que fica próxima à janela. Ela se mexe um pouco, sem abrir os olhos, e depois volta a cochilar. Mas o casal é acordado com os estilhaços do vidro da janela. E ficam mais assustados ao verem que, na porta do quarto, Paulo está esperando por eles, com uma arma em punho apontada para os amantes.
-Já são quase nove horas da manhã. Eu já “tava” com vontade de acordar o casal. Melhor se levantar, antes que o café esfrie.
-Paulo... Não vai fazer nenhuma besteira... –suplica Rebeca.
-O que vai dizer pra mim? Que isso tem explicação? Não, Rebeca. Não gaste seu latim comigo. Aliás, eu só quero escutar uma coisa: o que é que vão pedir antes de eu despachar os dois pro inferno.

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