16/10/2014

MENTES/ CAPÍTULO 4: A GENTE É UMA CRIANÇA E DIZ “SIM” PRA TUDO



-Irmã? Não, não é possível. Isso só pode ser um complô, uma armadilha pra mim. O que você pretende com tudo isso?
-Minha mulher não está mentindo. A Virna tinha realmente uma irmã gêmea: a Valentina.
-Que loucura é essa...
-Loucura por quê? A coisa mais normal do mundo... Ou é porque o que você está vendo te lembra alguma coisa?- provoca Valentina.
-Não me lembra nada. Pelo contrário: até me provoca. Sabe o quê? Ânsia de vômito.
-Fique sabendo que cada palavra, cada mentira que você inventou da minha irmã... Você vai pagar. Se não for aqui, vai ser no inferno.
-Quem vai me comprar a passagem pro inferno? Você? Que a tal de Virna tenha inventado coisas sobre mim, ainda vai. Mas convencer que eu a matei? Já é monstruoso demais.
-Minha irmã nunca disse isso. Até porque ela sempre achou que, com você, ia rolar alguma coisa.
-E pelo visto, não deu tempo pra ela tomar o chá de Semancol, não é mesmo?
-O que é que você veio fazer no enterro da minha cunhada?
-Apesar de tudo o que aconteceu, eu nunca quis, nem desejei que ela tivesse esse fim trágico.
-Que aconteceu no cartório onde você se casou. Que coincidência, não é? Não desejou que ela morresse, mas pode ter apertado o gatilho.
-Já que você enche a boca pra defender a sua mulher, tape a boca dela pra ver se eu sou poupado dessas asneiras!
-Olha aqui, seu...
-“Olha aqui” nada!- vira-se para Valentina- Eu acho bom você começar a pensar no que fala, e pra quem fala!
-“Tá” ameaçando a minha esposa?
-Não! Estou avisando a você e à sua esposa que calúnia é crime, e que ela pode ser processada por isso.
-Então, vai! Procure seus direitos. Me processe por dizer a verdade!
-Sabe por que eu vou te poupar? Porque eu entendo a sua dor. Eu sei o que é perder alguém que eu amo muito. Se bem que nem dá pra comparar, sua irmã era uma interesseira... - Leandro se surpreende quando Valentina esbofeteia Bruno.
-A minha irmã só tinha um defeito: amar você, que não presta!
-Sua irmã demorou muito tempo pra abrir o jogo, mas deu pra perceber muito bem o que ela amava. Gostava do que tinha dentro do meu bolso. Ou você acha que eu caí nessa estorinha sem pé nem cabeça de que ela sempre me amou em silêncio? Ah, vá! Você se apoia nisso porque não entende que a vida tirou sua irmã de você!
-Não, não foi a vida! Foi você! Porque sabia que minha irmã ia impedir seu casamento de qualquer maneira!
-E ela ousou! Será que a polícia, quando viu o corpo dela estirado no cartório, também não achou a arma que ela “tava” apontando pra mim?
-Arma?
-Ficou interessada? Pois a sua irmã, quando eu me casei, estava apontando um revólver pra mim e pra minha mulher!
-E não chamou a polícia por quê?
-Porque sabia que ela era covarde! Uma fraca, cuja ambição não iria tão longe assim! Ela me preferia vivo, porque talvez com o tempo conseguisse destruir o meu casamento!
-Mentira... Você não a denunciou porque queria acabar com ela, e não deixou que ninguém percebesse nada!
-Como é que você sabe? Você “tava” lá?
-Agora chega! Deixa a Valentina em paz, e vai embora daqui! Anda!
-Seu marido, sim, é um homem sensato. Não sei o que eu seria capaz de fazer se tivesse que trocar palavra contigo por mais tempo.
-Não pense você que esta vai ser a última vez que vai me ver. A polícia começou o inquérito e vai te chamar!
-O que ela pode arrancar de mim além da verdade, não é? Só quem deve teme a polícia. Quando a minha possível intimação chegar, a gente conversa.
-Como é que pode ser tão cínico?
-Eu sou cordial, isso sim. Cínico, nunca vou ser. Se você quer saber, eu sinto pela morte da sua irmã! Porque vai depender, única e exclusivamente de mim, consertar a cagada que ela fez no meu casamento- coloca os óculos escuros e sai do cemitério, sendo visto de longe por Iago.
-O infeliz ainda teve capacidade pra vir aqui, como é que pode?- Valentina abraça Leandro.
-Esse pesadelo vai acabar, meu amor. Confia em mim.

|||||

Plínio repara que algumas malas estão chegando à sua casa.
-Noêmia, de quem é essa bagagem?
-Do Bruno, doutor.
-Bruno? Mas por que vieram parar aqui?
-Eu não sei, também fiquei preocupada. Mas o taxista disse que ele deu ordens estritas pra deixar as malas aqui na casa.
-Mas ele se casou ontem... Será que aconteceu alguma coisa?
-Ah, tomara que não.
-Bom, se ele estiver vindo...
Bruno abre a porta.
-Meu filho, como é que você está? O que houve?
-Seja discreta como sempre foi, Noêmia. Pega um uísque pra mim- a empregada fica atônita com o pedido e a presença do moço- Não vou descontar do seu décimo terceiro, pega a minha bebida. Vai!
-Com licença.
-Vale pra você também, viu? Sem perguntas!
-Você contrariado? Pensei que só eu tinha esse poder.
-Não, se engana. Em mim, você não causa nada.
-Bom, fique tranquilo! Sobre o que aconteceu na sua lua de mel, eu prometo ficar calado. Meu assunto com você é outro.
-Não me diga que vão você e o pestinha deixar a minha casa? Sim, porque não tem cabimento eu comprar uma casa pra morar com a Giovanna tendo esse palácio no meu nome.
-Justamente sobre o William que eu quero falar.
-Se o moleque estiver doente, você pode quebrar o cofrinho e comprar o remédio. Ajuda financeira pra sustentar aquele bastardo eu não dou.
-Vai se calar?
-Pra deixar você falar? Não vou.
-Por que você encheu a cabeça do meu filho de caraminhola?
-Quando eu fiz isso?
-Ontem, na festa. Fez insinuações, disse que se ele soubesse o que você sabe de mim, deixaria de me amar.
-Vamos dizer que eu amo o meu irmão, e que eu já estou preparando o bichinho para um futuro sofrimento.
-Não basta me torturar! Tem que torturar também o filho que eu amo!
-Agora chegamos ao ponto! Ele, que não foi desejado, é alvo do seu amor. Eu, planejado dentro de um casamento feliz, sou o malvado, o rejeitado, o que merece se ferrar!
-Sua imaturidade é irritante! Será que você não entende? O seu problema é comigo, não com ele. E eu não te odeio, apesar de você desejar isso com todas as forças.
-É? E por que eu ia querer isso?
-Porque assim o seu ódio por mim seria justificado, e acabaria comigo de uma vez.
-Às vezes, eu fico na dúvida se eu faço isso lentamente ou ferro contigo de uma vez por todas.
-Só quero ver se isso traz a sua mãe de volta!
-Não fala dela!
-De quem? Da minha ex-mulher? Quanto tempo acha que eu vou ser punido por uma coisa que aconteceu quando você era uma criança?
-Quando ela morreu, “tava” fugindo de você, da sua presença nefasta, do seu poder de destruição.
-Mas eu não estava pilotando aquele helicóptero! Eu queria salvá-la, vi o quanto ela estava descontrolada!
-No fim das contas, a morte da mamãe foi providencial. Você se gaba por ser um homem que, aparentemente, não tem nada a esconder. Mas você se libertou quando trouxe aquela mulher pra morar aqui.
-Eu amava a Letícia.
-Eu sei, sei muito bem. É isso que me consome de ódio. Você me fez acreditar que a gente era uma família feliz, mas vivia insatisfeito. E foi com essa... Que você foi resolver o seu problema.
-Bruno, eu sou um homem. Todo homem tem suas necessidades.
-O que você chama de instinto, eu chamo de falta de ética. Não quer? Separa! Tem nojo? Larga! Não suporta ver, conviver, sentir ao lado? Se afasta! Mas nem isso. Porque você se diz um homem, e pra você, homem é ser nojento! É ser sem moral, é ser um lixo! Amava tanto a Letícia que dividiu sua vida com ela. A começar pela cama em que dormia com a minha mãe!
-Não ouse falar assim comigo! Quem você pensa que é? O ético? O perfeito? O de moral ilibada? Você não é nada!
-Já William é o filho maravilhoso. Vai ver porque até o último dia da vida daquela mulher, você a amou. É por isso que eu odeio aquele menino. Porque ele não é descartável, como eu sou. Como eu fui, como eu sempre vou ser pra você!
-Do que você quer me convencer? De que tudo que você faz de errado é pra chamar a minha atenção?
-Não. Eu quero expor a verdade. Eu quero que você e o mundo todo saibam que eu posso formar uma família. Sem destruir, sem passar por cima de ninguém. Dando amor a uma mulher que merece ser amada, que não vai me enganar.
-Certeza sobre a Giovanna, se ela será fiel ou não, nunca terá.
-Mas não vai partir de mim a traição. Eu me casei pra vida toda. Se ela não vai me respeitar, aí já é outra coisa. Mas eu sei de mim. Eu sei que eu começo e posso terminar meu casamento sem máculas. Já você conseguiu errar. Com as duas.
-Não se gabe. Não ser um assassino, como diz que eu sou, não te impede de, algum dia, ver alguém esfregar na sua cara seus erros mais terríveis.
-Eu não digo, pai. Afirmo! Que eu não posso errar... E que você é um assassino.
-Aonde você vai?
-Vou procurar a minha mulher.
-Onde ela está?
-Longe de mim. Mas eu sei como trazê-la pra perto- abre a porta da mansão.
-Se for grave, deixa eu ir com você... –toca levemente o ombro do filho.
-Não me toca. Por favor... Não me toca- vai à casa onde Giovanna está.
-Cadê o Bruno?- pergunta Noêmia, com o copo de uísque na mão, que é tomado por Plínio.
-Foi atrás da mulher.
-Será que foi grave o que aconteceu, doutor?
-Tudo o que acontece na vida dele é grave, Noêmia.

|||||

O interfone do apartamento dos pais de Giovanna toca.
-Pronto?- diz à moça, abatida.
-Dona Giovanna, tem um entregador aqui embaixo. Disse que tem uma encomenda pra senhora assinar. Posso mandar subir?
-Entregador? Claro, pede pra ele vir, por favor. Obrigada.
Alguém bate à porta. Giovanna identifica aquele modo de tocar, e desconfia de que Bruno tenha alguma coisa a ver com o pedido misterioso. Dito e feito: ela abre para receber o entregador e se depara com o próprio marido segurando um buquê de rosas vermelhas.
-Desculpe, eu pedi pro porteiro mentir. Na verdade, eu o subornei.
-O que não é muito comum pra você. Mentir deve ser uma tormenta.
-Não precisa ser irônica comigo.
-Claro que não. Nesse quesito, você me vence. Há quanto tempo você me fez de palhaça?
-O que eu preciso dizer ou fazer pra que você acredite em mim?
-Eu não consigo, Bruno. Às vezes, eu acho que isso tudo é um pesadelo, que essas lágrimas vão secar, que eu vou amanhecer no sul ao seu lado... Mas aí vejo que não tem mais jeito.
-Isso poderia ser dito se nós tivéssemos passando por uma crise no nosso casamento.
-E por acaso não estamos?
-Giovanna, você nem se deu o benefício de duvidar de mim... Muito pelo contrário: tomou o golpe daquela vigarista como verdade.
-Então, vai me contar de onde conhece a tal de Virna?
-Conhecia. Ela não existe mais.
-Como assim? O que quer dizer?
-Que a Virna é página virada na minha vida. Aliás, ela não tem página nenhuma, porque é desimportante, sempre foi.
-Como é que você me explica isso, então? O que eu li? O fato de não conseguir crer numa só palavra do que você diz?
-Virna queria realizar um amor. Queria ter aquilo que nós construímos durante anos, começar o capítulo maravilhoso que tínhamos reservado.
-Quer me explicar, sem rodeios?
-Essa moça era a minha secretária.
-Não acredito nisso...
-Há dois dias, na véspera do nosso casamento, essa menina veio me procurar e dizer exatamente aquilo que estava no e-mail: que eu não podia me casar com você porque ela me amava.
-Como é que você tem coagem de dizer isso na minha cara?
-Eu não quero ter de mentir pra você. Aliás, não faria sentido, já que eu sou conhecido pela minha absoluta franqueza.
-Mas é lógico que quando você soube, deve ter se sentido envaidecido! Que espécie de homem não ficaria, ainda mais sabendo o quanto é bonito e culto feito você?
-Envaidecido, sim. Com amnésia, não! Eu sempre fui bem claro quando te pedi em casamento, porque disse que queria formar uma família. A minha especialidade não é arte cênica, é arqueologia! Não tenho porque mentir!
-Mas omitiu por quê?
-Porque eu sei que isso te irritaria! Você ficaria insegura, pensaria até em adiar o nosso casamento. E eu não podia esperar mais, Giovanna. Não posso porque quanto mais perto eu fico do seu lado, mais certeza eu tenho de que você é a mulher que eu sempre desejei. A única.
-Não sei como pode ter tanta certeza de que eu ainda quero você.
-Vim te procurar aqui, na casa da sua mãe, porque sabia que ela era o seu porto seguro depois de mim.
-O que você quer dizer com, isso?
Bruno joga o buquê no chão.
-Que eu não preciso de flor, de declaração de amor, de joelhos no chão pra te convencer. Quanto mais veemência você tiver ao dizer que quer me ver longe da sua vida, mais certeza eu vou ter de que aquilo que você diz não condiz com o que realmente sente. Só eu posso ocupar a sua mente. O seu coração, Giovanna.
-Some da minha frente.
-Tem certeza de que não me quer mais um só segundo na sua vida? Porque quando eu abrir aquela porta, pode ter certeza de que eu não volto mais. É isso o que você quer?
O modo racional e frio de Bruno dá lugar a um olhar jamais lançado à Giovanna. A languidez demonstrada fez com que ela não reconhecesse o marido. Mas nem por isso o rapaz deixou de ser, para ela, um tipo irresistível.

|||||

Valentina está varrendo o seu quarto, com a janela aberta, e bastante abatida. Leandro aparece com um copo de café.
-Toma, vai fazer bem.
-Não tenho sede.
-Assim, você não pode ficar.
-Não se preocupe. Uma hora, a minha agonia acaba.
-E quando é que vai ser isso, Valentina?
-Queria dar essa resposta primeiro pra mim.
-Meu amor, eu sei que a gente “tá” vivendo um pesadelo, mas a gente tem que encontrar um jeito pra acordar, e o mais rápido possível.
-Só que quando eu acordar, Leandro, ela não vai “tá” aqui. E não vai ser porque ela viajou, sofreu um acidente, adoeceu ou coisa assim. Tiraram ela de mim. Aquele desgraçado tirou ela de mim!
-Ninguém sabe se foi o Bruno mesmo...
-Por favor! Não é possível que você use tanto a cabeça pra não se dar conta. Ninguém odiava a minha irmã, ninguém queria que ela sumisse da face da terra a não ser esse cara... E você viu o rosto dele? O jeito como ele olhou pra gente? Como falou?
-Isso não quer dizer nada, Valentina.
-Pode ser, mas uma certeza eu tenho. Sendo ele culpado ou não, a polícia não “tá” nem aí pro caso, porque se tivesse, a essas alturas alguém já tinha aparecido pra ser chamado de suspeito.
-Calma. Você apontou um suspeito, lembra?
-Que pode muito bem sair de viagem e fazer a gente de palhaço.
-Não, meu amor. O seu depoimento fez a polícia pensar um pouco sobre essa relação entre o tal de Bruno e sua irmã.
-Como assim? O que você sabe?
-Iago pediu pra avisar que daqui a pouco, dois homens encarregados por ele vão entregar a intimação pra que aquele cara deponha no caso da Virna.
-Quer dizer que eu posso ter esperanças?
-Dizem que é a última que morre, não é?
-Não vejo a hora.

|||||

Após um momento a sós com seu marido, Giovanna ouve a campainha de sua casa sendo tocada. Estranha bastante, já que é a segunda visita inesperada da tarde. Levanta-se da cama e põe uma roupa rapidamente.
-Pois não?
-É aqui que mora Bruno Reinchenbach?
-Chegou há uns minutos... Mas como vocês souberam que ele estava aqui? Tínhamos saído pra viagem em lua de mel...
-Checamos no Instituto Mentes. Fomos informados que, por motivos não revalados, vocês anteciparam a volta à cidade. Ele está aí?
-Quem “tá” me procurando?- aparece o rapaz, saído do quarto e sem camisa.
-Bruno, por favor, veste uma roupa.
-Pra quê tanta cerimônia?
-Eles são da polícia- explica Giovanna, envergonhada.
-Polícia?Aqui?
-Vocês podem explicar o que está acontecendo aqui? Por que estão procurando o meu marido?
-Na verdade, viemos a pedido do delegado Iago Pereira para lhe entregar uma intimação. Pode assinar, por favor?- pergunta o outro rapaz enviado por Iago.
-Intimação pra quê?
-Pra que o senhor deponha sobre o assassinato de uma das funcionárias do Instituto Mentes: Virna Viana, ocorrida na tarde de ontem.
-Assassinato?- incrédula, Giovanna olha para o esposo, que exibe descontentamento ante a face dos policiais, justamente após se reconciliar com a mulher.

Nenhum comentário:

Postar um comentário