-Desculpe, parece que vocês
não estavam sabendo...
-Pra ser sincero, eu sabia.
Soube assim que voltei de viagem.
-Mas como foi isso? Tem
certeza de que foi assassinato?
-Encontramos o corpo em um
cartório no centro da cidade.
-Pra ser mais exato, o mesmo
onde vocês se casaram.
-Será que não foi suicídio?
Digo isso porque eu a achava um tanto desequilibrada.
-Não há dúvidas. Ainda
estamos verificando o paradeiro da arma que efetuou o disparo, mas pelos exames
feitos no IML, o crime aconteceu na tarde de ontem.
-O senhor pode assinar a
intimação, Dr. Bruno?
-Claro, me deixa só pegar uma
caneta.
-E se recompor, por favor-
alerta Giovanna.
Bruno veste uma camisa e
apanha uma caneta numa estante da sala. Assina rapidamente.
-E quando eu preciso estar
lá?
-Amanhã, às oito da manhã. O
senhor será interrogado pelo delegado Iago Pereira.
-Mas não precisa se
preocupar. É apenas um procedimento rotineiro. Claro que esperamos contar com a
sua colaboração.
-Se eu não colaborar, vocês
vão atrás de mim até no inferno, não é? Se era só isso, podem se retirar.
-Claro. Com licença.
-Tenham uma boa tarde.
-Igualmente- responde Bruno,
ironicamente.
-Deixa eu ver se eu entendi:
esses rapazes disseram que a tal de Virna foi assassinada, e você reage com
essa frieza, dizendo que já sabia?
-Não só sabia como ainda fui
ao enterro.
-E por quê?
-Bom, não se fala em outra
coisa lá no trabalho. E também eu não queria ficar como o chefe que humilhou a
funcionária. Conheço de longe gente interesseira, vai que a família inventa de
pedir uma indenização...
-OK, mas por que você não
disse que foi ao enterro dessa moça?
-Porque como ela, o enterro
foi irrelevante. A não ser o fato de a irmã gêmea dela estar revoltada com o
homicídio, jurando vingança a torto e a direito.
-Imagino a dor dessa
família...
-Imagina nada. Na sua
família, nunca teve ninguém demente. E, decididamente, essa moça não estava no
seu estado normal quando saiu do instituto, se é que algum dia ela já esteve.
-Vai ver porque ela não
aguentava mais esconder que amava você.
-Giovanna, não seja tão ingênua...
A mulher de classe média baixa se apaixonar pelo chefe, trabalhar com ele
durante anos sem dizer uma palavra, e revelar isso às vésperas do casamento?
Amor é o que nós sentimos, aquilo dali era oportunismo.
-Sabe que, por causa da
discussão que tiveram, você é o principal suspeito dessa morte? Ainda mais
dentro do cartório onde...
-Não tenho do que ter medo.
Aliás, o medo deixou de me acompanhar há anos. Se é pra falar a verdade, mentir
pra quê, não é mesmo?
-A verdade pode machucar. Até
mesmo a quem diz.
-Infelizmente, eu não conheço
homem mais calejado do que eu. Mas vamos parar de falar disso. O importante é
que a nossa lua de mel, mesmo aqui, não acabe tão cedo.
|||||
Abílio está num supermercado
escolhendo algumas bebidas quando o seu celular toca. Trata-se de Plínio.
-Você tinha ligado pra mim?
-Sim, mas só dava na caixa
postal.
-Ontem, tive uma insônia.
Mais uma discussão com Bruno, depois resolvi desligar o celular. Só liguei
agora quando fui aprontar William pra levar ao colégio. O que foi?
-Estava dando tempo ao tempo
pra reunir as provas necessárias que comprovam o golpe sofrido pelo Mentes.
-Verdade? E onde elas estão?
-Na minha casa, mas eu vou
pra Mentes daqui a pouco. Passei no supermercado pra fazer umas compras, porque
minha empregada está de licença médica.
-Mas eu preciso te ver, tenho
que conferir essas provas que você conseguiu, Abílio- na mesma hora, Bruno
chega e escuta a conversa.
-Então, o que acha de
marcarmos um jantar na minha casa?
-Hoje à noite?
-Às sete horas.
-Está bem. Às sete eu vou até
sua casa e vamos resolver essa questão do golpe de uma vez- Plínio percebe a
presença do filho- Eu vou ter de desligar. Até mais tarde. Há quanto tempo está
aí?
-Acabei de chegar.
-Não deveria estar no
escritório?
-Deveria, mas tem uma papelada
pra você examinar e assinar. Como eu sabia que você se atrasaria por ter de
levar William ao colégio, quando um empregado poderia muito bem fazer isso,
resolvi trabalhar aqui hoje.
-Faço porque é minha
obrigação.
-Muito digno de sua parte...
-Já se reconciliou com a sua
mulher?
-Sendo essa pessoa
maravilhosa que eu sou, o que não consigo, Plínio? Com quem estava ao telefone?
-Não era nada importante. E
você? Foi prestar depoimento?
-Acabei de sair de lá. Coisa
mais enfadonha.
-O que você disse à polícia?
-A verdade, que era aquilo
que ela espera... Mentira, ela quer que eu assuma o crime pra se exibir, dizer
que a justiça nesse país funciona e que é rápida.
-Mas você falou que não havia
motivos pra matar a Virna?
-Não, falei que não matei. Motivo
ela me deu, e um ótimo.
-Que motivo?
-Pensei que o Abílio, seu
amigo de infância, já tinha te posto a par de tudo.
-Eu prefiro que meu filho
mais velho sente e converse comigo.
-Bom momento para pôr em
prática sua pedagogia freiriana, mas comigo não rola. Vamos trabalhar?
-Claro...
|||||
Horas depois, Abílio chega no
Instituto Mentes. Ao chegar, cumprimenta Silvia.
-Alguma ligação pra mim?
-Sim, do Dr. Plínio. Ele quer
saber se o jantar está confirmado para hoje mesmo.
-Está, sim- vê a porta da
sala de Bruno entreaberta- Bruno chegou cedo, não?
-Não é ele, é a Valentina, a
irmã gêmea de Virna.
-Aqui? Mas o que ela está
fazendo?
-Veio recolher as coisas que
a irmã esqueceu naquele dia. Juntei tudo e levei pra sala do Dr. Bruno, já que
o departamento pessoal está fechado pra reforma.
-Sim... Uma reforma que não
tem mais fim... Bruno deve ter explicação pra isso também.
-Como assim, Dr. Abílio?
-Melhor esquecer, Silvia.
O telefone toca.
-Vou ligar pro Dr. Plínio
confirmando o jantar do meu celular- Silvia atende ao telefone- Pois não?
-Passa pro Abílio, Silvia.
-Só um momento.
-Quem é?
-Pela voz, é o Dr. Bruno.
-Me dá aqui. Alô?
-Querido, alguma novidade aí
no instituto?
-Não, nenhuma. Pelo menos
acabei de chegar e não soube de nada.
-Ótimo, qualquer coisa me
avisa.
-Pra quê essa cordialidade
toda, Bruno? Mal trocamos palavras aqui e você me surpreende com um telefonema?
-A cordialidade faz parte de
mim, meu caro. Mas eu ouvi o meu pai ligando pra Silvia pra confirmar sobre o
jantar de vocês.
-Andou ouvindo atrás da
porta, Bruno?
-Não é a minha especialidade.
Nem foi intencional, eu juro.
-Então, como esse jantar veio
a se tornar tema da nossa conversa?
-Porque imaginei que deve ser
algo muito sério a ser tratado, já que vocês vão se ver à noite.
-Seu pai tinha muitos assuntos
acumulados. Não era recomendável que ele enfrentasse esse trânsito todo. Por
isso, ele decidiu que resolveria os problemas pendentes em casa.
-Sim, mas qual é o motivo do
jantar?
-Fique sossegado que o jantar
que marquei com seu pai na minha casa pra hoje não tem nada a ver com o
instituto.
-Mas provavelmente deve ter a
ver com o assunto que tanto queria falar com ele, desde antes do meu casamento.
-Se o que você espera é que
eu lhe revele, vou me limitar a dizer que o assunto é de foro íntimo.
-Abílio, se existe alguma
coisa incomodando você com relação ao Mentes, não hesite em me dizer.
-Tenha um bom dia, Bruno-
desliga o telefone.
-Vou ter de aproveitar essa
vibe “pai zeloso” do Plínio e tirá-lo de campo. Se o Abílio abrir a boca, acaba
comigo...
|||||
Valentina recolhe alguns
pertences pessoais de Virna que estão numa estante da sala de Bruno, e os
coloca numa mochila. Encontra uma caneta, a carteira de trabalho, uma bolsa com
pertences pessoais... Mas o que chama a atenção é um porta-retratos que está na
mesa do rapaz, com uma imagem romântica de um encontro que teve com Giovanna.
O que chama a atenção de
Valentina é o sorriso do jovem, poucas vezes encontrado em seu rosto, que
parece ser destinado a fazê-lo de modo irônico. Conseguiu, enfim, enxergar um
momento raro de felicidade de Bruno.
-Quero ver quanto tempo você
vai ficar assim, feliz... – enxuga as lágrimas, ao mesmo tempo que Silvia entra
na sala.
-“Tá” tudo bem?
-“Tá”... Quer dizer... Não, é
tudo muito difícil. Recolher, vir buscar as coisas da Virna por causa do...
-Como é que alguém teve
coragem de fazer uma coisa dessas? Ela não fez mal a ninguém, não tinha inimigo
nem nada...
-Minha irmã tinha um inimigo,
sim. Esse safado que trabalhava com ela.
-Não, Valentina. Seu Bruno
não ia fazer isso.
-Mas ele brigou com ela no
dia anterior. Foi por causa disso que ela saiu daqui. E ela foi encontrada no
cartório onde ele se casou. Quem mais ia querer se livrar da minha irmã?
-Tudo bem, Seu Bruno não
gosta de ninguém mesmo, só dele. Mas matar? Não, é muita maldade pra uma pessoa
só.
-O dele é que “tava” na reta,
minha filha. Virna não tinha nada pra perder, não. Num dia, perdeu o emprego.
No outro, mataram ela. Ninguém me tira da cabeça que esse tal de Bruno tem a ver
com isso.
-E vai fazer o quê, se
ninguém sabe quem foi?
-Acusei ele no meu
depoimento. A polícia já mandou pra chamar pra ele explicar. Duvido que ele
escape. Ele tem cara de quem tem mais coisa pra esconder do que isso e, se
tiver, eu vou descobrir.
-Você “tá” muito nervosa, Valentina.
Senta aqui um pouco- Silvia puxa uma cadeira- Quer que vá pegar alguma coisa
pra você?
-Já nem sei mais o que é
dormir, nem parar pra descansar... Tem como fazer uma garapa de açúcar pra
mim... É...
-Silvia.
-Sim, eu já tinha esquecido.
-Vou buscar agora. Fica aí
que eu já venho.
-“Tá” certo...
|||||
A tarde chega, e Bruno para
um pouco de conferir os relatórios que está analisando com Plínio. Ele está no
jardim, quando toca o celular.
-Fala, meu bem.
-Saí da escola agora.
-E como foi a aula para os
carentes?
-Para as crianças, você quer
dizer.
-Que seja.
-Prazerosa, como sempre.
Quando chegar, eu vou tomar um banho e preparar aquele jantar.
-Não me tente, pelo menos não
hoje.
-Ué, como assim?
-Eu vou ter de jantar com o
Abílio, que trabalha com o meu pai.
-Poxa, Bruno... Não dá pra
adiar?
-Você não sabe o quanto eu
quero chegar mais cedo... Mas eu tenho que ir.
-Tudo bem. Mas eu vou estar
esperando do mesmo jeito, não importa a hora que você chegue.
-Eu sei que vai. Te amo,
Giovanna.
-Também te amo. Beijo.
-Outro- ao desligar o
telefone, repara que o skate de
William está jogado no chão do jardim. Calmamente, vai até a cozinha e encontra
Noêmia.
-Quer alguma coisa, meu
filho?
-Sim, uma laranja. Vou pro
jardim.
-Mas você não comeu nada. Não
vai almoçar com o seu pai?
-Não “tô” com tanta fome
assim, Noêmia.
-Sabe que daria um gosto
imenso por aceitar almoçar com o Dr. Plínio. Você nunca faz isso.
-É justamente por isso que
protelo eternamente esse almoço- beija a testa de Noêmia, que vai supervisionar
o trabalho da cozinheira da casa.
Voltando ao jardim, Bruno
deixa a laranja cair e se aproxima do skate
do irmão. Com a faca, acaba afrouxando os parafusos das rodas. Em seguida,
deixa o objeto na mesma posição em que ele foi encontrado. William chega e pega
o brinquedo, sem ter visto a armadilha do filho primogênito de Plínio.
-Bruno? “Tá” fazendo o quê
aqui?
-Essa é minha casa, ou quer
que eu te lembre?
-Ih, “tá” pior que de
costume...
-Onde é que você vai?
-Vou até a pista da Lagoa. A
turma me chamou pra dar um rolê.
-É bom avisar a seu pai. Vai
que...
-Vai que o quê?
-Não, esquece.
Assim que William sai, Bruno
passa e vê seu pai almoçando sozinho, mas sobe ao quarto e esconde a carteira
do plano de saúde em seu bolso.
|||||
Ao fim da tarde, Valentina
liga para Leandro, que está na delegacia.
-Oi, meu amor.
-Como é que você “tá”, Leandro?
-Fazendo plantão. Hoje, a
delegacia “tá” mais cheia que de costume. Iago pegou uma gripe triste agora de
tarde e se arriou.
-Eu vou levar uma comida pra
você.
-Não precisa, Valentina. A
essa hora, fica muito esquisito pra chegar aqui.
-Não, senhor. Vou colocar
tudo num prato e já chego aí.
-Se você insiste... ”Pegasse”
as coisas da tua irmã lá no instituto?
-Trouxe tudo pra casa. Olha,
e que fim levou a estória do depoimento?
-Iago liberou o Bruno. Disse
que o depoimento dele não diz nada sobre o crime da Virna.
-Como é que não diz?
-Bruno falou muito bem dela,
disse que ela sempre uma profissional excelente, mas que ela foi embora porque
deu em cima dele um dia antes do casamento dele.
-Ou seja, o desgraçado só
contou a parte ruim da estória, não é?
-Valentina, o que o Bruno
pensa ou deixa de pensar sobre sua irmã realmente não ajuda a gente a descobrir
nada.
-Mas eu sei que ele é o
assassino.
-Não. Você supõe,e ainda por
cima sem provas.
-Uma alma dessa não vai ficar
só com esse erro.
-O que quer dizer?
-Que se ele teve coragem de
fazer isso com a Virna, e eu sinto que fez, ela não vai ser a única vítima
desse cara. Meu coração me diz que ele não vai parar.
-E você? Vai parar?
-Nunca.
|||||
Noêmia está arrumando o
quarto de Plínio quando ouve o telefone da sala tocar. Uma das empregadas
atende.
-Residência da Família
Reinchenbach, boa noite. Sim, quem deseja falar com ele? Só um segundo- a
mulher leva o telefone até o escritório- Dr. Plínio, tem um homem ao telefone
querendo falar com o senhor.
-Quem é?- pergunta, ao lado
de Bruno.
-Se identificou como Geraldo.
-Geraldo? Tudo bem, me dá
aqui. Alô?
-O senhor é o pai de William?
-Sim, quem gostaria?
-Sou Geraldo, personal trainer aqui na Lagoa do Araçá.
Liguei pra avisar que seu filho sofreu um acidente aqui na pista de skate.
-O William?- levanta-se,
assustado- O que houve com o meu filho?
-Ele caiu, as rodas do skate dele se soltaram, e ele estava
descendo uma rampa.
-Mas como é que ele está?
-Não se preocupe, ele está
consciente. Mas está chorando muito de dor, creio que ele deve ter tido uma
fratura ou uma luxação.
-Eu já estou indo pra aí.
Obrigado por me avisar- desliga o telefone.
-O que houve?- Bruno finge
preocupação.
-O William levou uma queda do
skate, ligaram pra mim avisando. Vou
socorrer ele agora!
-Pega a carteira do plano de
saúde. Sabe onde está?
-Na minha gaveta. Bem
lembrado. Noêmia- sobe até o quarto com Bruno- Vê aí minha carteira do plano de
saúde na gaveta.
-Aqui não está, Dr. Plínio.
-Eu sempre deixo aí, Noêmia.
-Mas eu arrumei isso agora,
não vi carteira nenhuma.
-O que é que o senhor tem?
-O que é que o senhor tem?
-William sofreu um acidente,
e eu tenho que levar ele pro hospital agora!
-Em vez de procurar essa
bendita carteira, por que não leva o menino pra Upa, que é aqui perto? O senhor
ainda tem que ir até a Lagoa pra pegar o William.
-Certo... Termina de analisar
os relatórios pra mim, eu ligo mandando notícias.
-Vai logo!- Bruno se aproxima
da porta do quarto quando Plínio sai com o carro.
-Bruno, e os relatórios?
-Vou obedecer ao meu querido
pai e terminar de analisá-los... Em casa! Fui, Noêmia.
|||||
Abílio está arrumando a mesa
de jantar. Põe os últimos talheres e escuta a campainha tocar.
-Sete e ponto. Plínio sempre
pontual- abre a porta e dá de cara com Bruno.
-Surpresa...
-O que você veio fazer aqui?
-Tratar do seu “assunto de
foro íntimo”. Não vai convidar um exímio representante de pontualidade
britânica pra entrar?
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