17/10/2014

MENTES/ CAPÍTULO 5: NÃO TINHA NOTADO VOCÊ ME CERCANDO

-Desculpe, parece que vocês não estavam sabendo...
-Pra ser sincero, eu sabia. Soube assim que voltei de viagem.
-Mas como foi isso? Tem certeza de que foi assassinato?
-Encontramos o corpo em um cartório no centro da cidade.
-Pra ser mais exato, o mesmo onde vocês se casaram.
-Será que não foi suicídio? Digo isso porque eu a achava um tanto desequilibrada.
-Não há dúvidas. Ainda estamos verificando o paradeiro da arma que efetuou o disparo, mas pelos exames feitos no IML, o crime aconteceu na tarde de ontem.
-O senhor pode assinar a intimação, Dr. Bruno?
-Claro, me deixa só pegar uma caneta.
-E se recompor, por favor- alerta Giovanna.
Bruno veste uma camisa e apanha uma caneta numa estante da sala. Assina rapidamente.
-E quando eu preciso estar lá?
-Amanhã, às oito da manhã. O senhor será interrogado pelo delegado Iago Pereira.
-Mas não precisa se preocupar. É apenas um procedimento rotineiro. Claro que esperamos contar com a sua colaboração.
-Se eu não colaborar, vocês vão atrás de mim até no inferno, não é? Se era só isso, podem se retirar.
-Claro. Com licença.
-Tenham uma boa tarde.
-Igualmente- responde Bruno, ironicamente.
-Deixa eu ver se eu entendi: esses rapazes disseram que a tal de Virna foi assassinada, e você reage com essa frieza, dizendo que já sabia?
-Não só sabia como ainda fui ao enterro.
-E por quê?
-Bom, não se fala em outra coisa lá no trabalho. E também eu não queria ficar como o chefe que humilhou a funcionária. Conheço de longe gente interesseira, vai que a família inventa de pedir uma indenização...
-OK, mas por que você não disse que foi ao enterro dessa moça?
-Porque como ela, o enterro foi irrelevante. A não ser o fato de a irmã gêmea dela estar revoltada com o homicídio, jurando vingança a torto e a direito.
-Imagino a dor dessa família...
-Imagina nada. Na sua família, nunca teve ninguém demente. E, decididamente, essa moça não estava no seu estado normal quando saiu do instituto, se é que algum dia ela já esteve.
-Vai ver porque ela não aguentava mais esconder que amava você.
-Giovanna, não seja tão ingênua... A mulher de classe média baixa se apaixonar pelo chefe, trabalhar com ele durante anos sem dizer uma palavra, e revelar isso às vésperas do casamento? Amor é o que nós sentimos, aquilo dali era oportunismo.
-Sabe que, por causa da discussão que tiveram, você é o principal suspeito dessa morte? Ainda mais dentro do cartório onde...
-Não tenho do que ter medo. Aliás, o medo deixou de me acompanhar há anos. Se é pra falar a verdade, mentir pra quê, não é mesmo?
-A verdade pode machucar. Até mesmo a quem diz.
-Infelizmente, eu não conheço homem mais calejado do que eu. Mas vamos parar de falar disso. O importante é que a nossa lua de mel, mesmo aqui, não acabe tão cedo.

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Abílio está num supermercado escolhendo algumas bebidas quando o seu celular toca. Trata-se de Plínio.
-Você tinha ligado pra mim?
-Sim, mas só dava na caixa postal.
-Ontem, tive uma insônia. Mais uma discussão com Bruno, depois resolvi desligar o celular. Só liguei agora quando fui aprontar William pra levar ao colégio. O que foi?
-Estava dando tempo ao tempo pra reunir as provas necessárias que comprovam o golpe sofrido pelo Mentes.
-Verdade? E onde elas estão?
-Na minha casa, mas eu vou pra Mentes daqui a pouco. Passei no supermercado pra fazer umas compras, porque minha empregada está de licença médica.
-Mas eu preciso te ver, tenho que conferir essas provas que você conseguiu, Abílio- na mesma hora, Bruno chega e escuta a conversa.
-Então, o que acha de marcarmos um jantar na minha casa?
-Hoje à noite?
-Às sete horas.
-Está bem. Às sete eu vou até sua casa e vamos resolver essa questão do golpe de uma vez- Plínio percebe a presença do filho- Eu vou ter de desligar. Até mais tarde. Há quanto tempo está aí?
-Acabei de chegar.
-Não deveria estar no escritório?
-Deveria, mas tem uma papelada pra você examinar e assinar. Como eu sabia que você se atrasaria por ter de levar William ao colégio, quando um empregado poderia muito bem fazer isso, resolvi trabalhar aqui hoje.
-Faço porque é minha obrigação.
-Muito digno de sua parte...
-Já se reconciliou com a sua mulher?
-Sendo essa pessoa maravilhosa que eu sou, o que não consigo, Plínio? Com quem estava ao telefone?
-Não era nada importante. E você? Foi prestar depoimento?
-Acabei de sair de lá. Coisa mais enfadonha.
-O que você disse à polícia?
-A verdade, que era aquilo que ela espera... Mentira, ela quer que eu assuma o crime pra se exibir, dizer que a justiça nesse país funciona e que é rápida.
-Mas você falou que não havia motivos pra matar a Virna?
-Não, falei que não matei. Motivo ela me deu, e um ótimo.
-Que motivo?
-Pensei que o Abílio, seu amigo de infância, já tinha te posto a par de tudo.
-Eu prefiro que meu filho mais velho sente e converse comigo.
-Bom momento para pôr em prática sua pedagogia freiriana, mas comigo não rola. Vamos trabalhar?
-Claro...

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Horas depois, Abílio chega no Instituto Mentes. Ao chegar, cumprimenta Silvia.
-Alguma ligação pra mim?
-Sim, do Dr. Plínio. Ele quer saber se o jantar está confirmado para hoje mesmo.
-Está, sim- vê a porta da sala de Bruno entreaberta- Bruno chegou cedo, não?
-Não é ele, é a Valentina, a irmã gêmea de Virna.
-Aqui? Mas o que ela está fazendo?
-Veio recolher as coisas que a irmã esqueceu naquele dia. Juntei tudo e levei pra sala do Dr. Bruno, já que o departamento pessoal está fechado pra reforma.
-Sim... Uma reforma que não tem mais fim... Bruno deve ter explicação pra isso também.
-Como assim, Dr. Abílio?
-Melhor esquecer, Silvia.
O telefone toca.
-Vou ligar pro Dr. Plínio confirmando o jantar do meu celular- Silvia atende ao telefone- Pois não?
-Passa pro Abílio, Silvia.
-Só um momento.
-Quem é?
-Pela voz, é o Dr. Bruno.
-Me dá aqui. Alô?
-Querido, alguma novidade aí no instituto?
-Não, nenhuma. Pelo menos acabei de chegar e não soube de nada.
-Ótimo, qualquer coisa me avisa.
-Pra quê essa cordialidade toda, Bruno? Mal trocamos palavras aqui e você me surpreende com um telefonema?
-A cordialidade faz parte de mim, meu caro. Mas eu ouvi o meu pai ligando pra Silvia pra confirmar sobre o jantar de vocês.
-Andou ouvindo atrás da porta, Bruno?
-Não é a minha especialidade. Nem foi intencional, eu juro.
-Então, como esse jantar veio a se tornar tema da nossa conversa?
-Porque imaginei que deve ser algo muito sério a ser tratado, já que vocês vão se ver à noite.
-Seu pai tinha muitos assuntos acumulados. Não era recomendável que ele enfrentasse esse trânsito todo. Por isso, ele decidiu que resolveria os problemas pendentes em casa.
-Sim, mas qual é o motivo do jantar?
-Fique sossegado que o jantar que marquei com seu pai na minha casa pra hoje não tem nada a ver com o instituto.
-Mas provavelmente deve ter a ver com o assunto que tanto queria falar com ele, desde antes do meu casamento.
-Se o que você espera é que eu lhe revele, vou me limitar a dizer que o assunto é de foro íntimo.
-Abílio, se existe alguma coisa incomodando você com relação ao Mentes, não hesite em me dizer.
-Tenha um bom dia, Bruno- desliga o telefone.
-Vou ter de aproveitar essa vibe “pai zeloso” do Plínio e tirá-lo de campo. Se o Abílio abrir a boca, acaba comigo...

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Valentina recolhe alguns pertences pessoais de Virna que estão numa estante da sala de Bruno, e os coloca numa mochila. Encontra uma caneta, a carteira de trabalho, uma bolsa com pertences pessoais... Mas o que chama a atenção é um porta-retratos que está na mesa do rapaz, com uma imagem romântica de um encontro que teve com Giovanna.
O que chama a atenção de Valentina é o sorriso do jovem, poucas vezes encontrado em seu rosto, que parece ser destinado a fazê-lo de modo irônico. Conseguiu, enfim, enxergar um momento raro de felicidade de Bruno.
-Quero ver quanto tempo você vai ficar assim, feliz... – enxuga as lágrimas, ao mesmo tempo que Silvia entra na sala.
-“Tá” tudo bem?
-“Tá”... Quer dizer... Não, é tudo muito difícil. Recolher, vir buscar as coisas da Virna por causa do...
-Como é que alguém teve coragem de fazer uma coisa dessas? Ela não fez mal a ninguém, não tinha inimigo nem nada...
-Minha irmã tinha um inimigo, sim. Esse safado que trabalhava com ela.
-Não, Valentina. Seu Bruno não ia fazer isso.
-Mas ele brigou com ela no dia anterior. Foi por causa disso que ela saiu daqui. E ela foi encontrada no cartório onde ele se casou. Quem mais ia querer se livrar da minha irmã?
-Tudo bem, Seu Bruno não gosta de ninguém mesmo, só dele. Mas matar? Não, é muita maldade pra uma pessoa só.
-O dele é que “tava” na reta, minha filha. Virna não tinha nada pra perder, não. Num dia, perdeu o emprego. No outro, mataram ela. Ninguém me tira da cabeça que esse tal de Bruno tem a ver com isso.
-E vai fazer o quê, se ninguém sabe quem foi?
-Acusei ele no meu depoimento. A polícia já mandou pra chamar pra ele explicar. Duvido que ele escape. Ele tem cara de quem tem mais coisa pra esconder do que isso e, se tiver, eu vou descobrir.
-Você “tá” muito nervosa, Valentina. Senta aqui um pouco- Silvia puxa uma cadeira- Quer que vá pegar alguma coisa pra você?
-Já nem sei mais o que é dormir, nem parar pra descansar... Tem como fazer uma garapa de açúcar pra mim... É...
-Silvia.
-Sim, eu já tinha esquecido.
-Vou buscar agora. Fica aí que eu já venho.
-“Tá” certo...

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A tarde chega, e Bruno para um pouco de conferir os relatórios que está analisando com Plínio. Ele está no jardim, quando toca o celular.
-Fala, meu bem.
-Saí da escola agora.
-E como foi a aula para os carentes?
-Para as crianças, você quer dizer.
-Que seja.
-Prazerosa, como sempre. Quando chegar, eu vou tomar um banho e preparar aquele jantar.
-Não me tente, pelo menos não hoje.
-Ué, como assim?
-Eu vou ter de jantar com o Abílio, que trabalha com o meu pai.
-Poxa, Bruno... Não dá pra adiar?
-Você não sabe o quanto eu quero chegar mais cedo... Mas eu tenho que ir.
-Tudo bem. Mas eu vou estar esperando do mesmo jeito, não importa a hora que você chegue.
-Eu sei que vai. Te amo, Giovanna.
-Também te amo. Beijo.
-Outro- ao desligar o telefone, repara que o skate de William está jogado no chão do jardim. Calmamente, vai até a cozinha e encontra Noêmia.
-Quer alguma coisa, meu filho?
-Sim, uma laranja. Vou pro jardim.
-Mas você não comeu nada. Não vai almoçar com o seu pai?
-Não “tô” com tanta fome assim, Noêmia.
-Sabe que daria um gosto imenso por aceitar almoçar com o Dr. Plínio. Você nunca faz isso.
-É justamente por isso que protelo eternamente esse almoço- beija a testa de Noêmia, que vai supervisionar o trabalho da cozinheira da casa.
Voltando ao jardim, Bruno deixa a laranja cair e se aproxima do skate do irmão. Com a faca, acaba afrouxando os parafusos das rodas. Em seguida, deixa o objeto na mesma posição em que ele foi encontrado. William chega e pega o brinquedo, sem ter visto a armadilha do filho primogênito de Plínio.
-Bruno? “Tá” fazendo o quê aqui?
-Essa é minha casa, ou quer que eu te lembre?
-Ih, “tá” pior que de costume...
-Onde é que você vai?
-Vou até a pista da Lagoa. A turma me chamou pra dar um rolê.
-É bom avisar a seu pai. Vai que...
-Vai que o quê?
-Não, esquece.
Assim que William sai, Bruno passa e vê seu pai almoçando sozinho, mas sobe ao quarto e esconde a carteira do plano de saúde em seu bolso.

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Ao fim da tarde, Valentina liga para Leandro, que está na delegacia.
-Oi, meu amor.
-Como é que você “tá”, Leandro?
-Fazendo plantão. Hoje, a delegacia “tá” mais cheia que de costume. Iago pegou uma gripe triste agora de tarde e se arriou.
-Eu vou levar uma comida pra você.
-Não precisa, Valentina. A essa hora, fica muito esquisito pra chegar aqui.
-Não, senhor. Vou colocar tudo num prato e já chego aí.
-Se você insiste... ”Pegasse” as coisas da tua irmã lá no instituto?
-Trouxe tudo pra casa. Olha, e que fim levou a estória do depoimento?
-Iago liberou o Bruno. Disse que o depoimento dele não diz nada sobre o crime da Virna.
-Como é que não diz?
-Bruno falou muito bem dela, disse que ela sempre uma profissional excelente, mas que ela foi embora porque deu em cima dele um dia antes do casamento dele.
-Ou seja, o desgraçado só contou a parte ruim da estória, não é?
-Valentina, o que o Bruno pensa ou deixa de pensar sobre sua irmã realmente não ajuda a gente a descobrir nada.
-Mas eu sei que ele é o assassino.
-Não. Você supõe,e ainda por cima sem provas.
-Uma alma dessa não vai ficar só com esse erro.
-O que quer dizer?
-Que se ele teve coragem de fazer isso com a Virna, e eu sinto que fez, ela não vai ser a única vítima desse cara. Meu coração me diz que ele não vai parar.
-E você? Vai parar?
-Nunca.

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Noêmia está arrumando o quarto de Plínio quando ouve o telefone da sala tocar. Uma das empregadas atende.
-Residência da Família Reinchenbach, boa noite. Sim, quem deseja falar com ele? Só um segundo- a mulher leva o telefone até o escritório- Dr. Plínio, tem um homem ao telefone querendo falar com o senhor.
-Quem é?- pergunta, ao lado de Bruno.
-Se identificou como Geraldo.
-Geraldo? Tudo bem, me dá aqui. Alô?
-O senhor é o pai de William?
-Sim, quem gostaria?
-Sou Geraldo, personal trainer aqui na Lagoa do Araçá. Liguei pra avisar que seu filho sofreu um acidente aqui na pista de skate.
-O William?- levanta-se, assustado- O que houve com o meu filho?
-Ele caiu, as rodas do skate dele se soltaram, e ele estava descendo uma rampa.
-Mas como é que ele está?
-Não se preocupe, ele está consciente. Mas está chorando muito de dor, creio que ele deve ter tido uma fratura ou uma luxação.
-Eu já estou indo pra aí. Obrigado por me avisar- desliga o telefone.
-O que houve?- Bruno finge preocupação.
-O William levou uma queda do skate, ligaram pra mim avisando. Vou socorrer ele agora!
-Pega a carteira do plano de saúde. Sabe onde está?
-Na minha gaveta. Bem lembrado. Noêmia- sobe até o quarto com Bruno- Vê aí minha carteira do plano de saúde na gaveta.
-Aqui não está, Dr. Plínio.
-Eu sempre deixo aí, Noêmia.
-Mas eu arrumei isso agora, não vi carteira nenhuma.
-O que é que o senhor tem?
-William sofreu um acidente, e eu tenho que levar ele pro hospital agora!
-Em vez de procurar essa bendita carteira, por que não leva o menino pra Upa, que é aqui perto? O senhor ainda tem que ir até a Lagoa pra pegar o William.
-Certo... Termina de analisar os relatórios pra mim, eu ligo mandando notícias.
-Vai logo!- Bruno se aproxima da porta do quarto quando Plínio sai com o carro.
-Bruno, e os relatórios?
-Vou obedecer ao meu querido pai e terminar de analisá-los... Em casa! Fui, Noêmia.

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Abílio está arrumando a mesa de jantar. Põe os últimos talheres e escuta a campainha tocar.
-Sete e ponto. Plínio sempre pontual- abre a porta e dá de cara com Bruno.
-Surpresa...
-O que você veio fazer aqui?
-Tratar do seu “assunto de foro íntimo”. Não vai convidar um exímio representante de pontualidade britânica pra entrar?

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