Um
pesadelo. O pior de todos eles, que estava apenas começando. Celine, muito
nervosa, conseguiu sair do carro. Correu em direção ao caminhão que nos
atingiu, e viu o motorista quase desmaiando de tão bêbado.
-Alguém
me ajuda... Alguém ajuda... – dizia, quase sem voz.
Do
hospital, vinha correndo o doutor Ronaldo Andrade, que cuidava do caso do meu
irmão.
-O
que houve aqui?
-Acho
que ele bebeu, Doutor... Ariela?- ao se lembrar de mim, correu para o carro, e
me viu desmaiada e ensanguentada- Ariela, fala comigo! Acorda, Ariela! Por
favor!
Ronaldo
se aproximou da minha janela e pôs a mão no meu pescoço.
-Vou
chamar a ambulância- começou a discar o número- Por favor, eu preciso de uma
ambulância na avenida do Hospital Miranda Couto. Isso, a poucos minutos do
ambulatório. Acidente de carro com duas vítimas, e um caminhão. Certo, vou
ficar aguardando. A senhora tá bem? Não fraturou nada?
-Como
é que eu posso estar bem? É minha enteada, doutor! Tira ela daí de dentro, por
favor!
-Tem
que deixar sua enteada imobilizada, minha senhora! Ela pode ter quebrado alguma
coisa! A senhora tava no carro também?
-No
banco de trás. Mas eu não tô machucada, não... Por favor, Doutor, salva a vida
da minha enteada, a mãe dela tá lá dentro também...
-Foi
a mãe dela que tava dirigindo?
-O
rapaz do caminhão que bateu na gente, devia ter bebido cerveja, não sei! Por
favor, Doutor! Ela pode morrer!
-Fica
calma! Já tem gente vindo pra fazer o resgate, eu vou pedir pra elas serem
atendidas aqui, fique tranquila- ele a abraçou enquanto ela soluçava bastante
devido ao susto.
/////
Acordei
na tarde do dia seguinte. Meu pai estava ao meu lado, me olhando e segurando na
minha mão, chorando muito.
-Onde
é que eu tô?
-Filha...
Graças a Deus que você acordou!
-Onde
é que eu tô, pai?
-Você
tava vindo pra cá com Celine e sua mãe. Um motorista bêbado avançou o sinal a
bateu no carro que vocês tavam.
-Um
acidente?- tentei me levantar, mas a minha cabeça, que estava enfaixada, doía
muito. Meu pai me segurou.
-Por
favor, minha filha, não se mexe. Eu vou avisar o Doutor que você já acordou, pra
ele te dar o outro remédio.
-E
elas? Onde é que elas tão?
-Celine
saiu do carro na mesma hora. Correu e pediu ajuda. Não tem nenhum arranhão.
-Minha
mãe?
-A
Vilma, ela... Tá no quarto ao lado.
-Ela
vai morrer?
-Ariela,
os médicos tão tentando de tudo pra salvar sua mãe. Mas eles disseram que... A
gente não pode mais ter esperança.
-E
Bento? Você disse pra ele que ela vinha pra cá?
-Finalmente
conheceu a mãe, como você quis que acontecesse. Só que Vilma não acordou. O
médico disse que ela só tá esperando a hora.
-Por
que você tá assim, desse jeito? Por que tá chorando, pai?
-Ele
passou mal depois que tentou falar com Vilma e ela não abriu os olhos. Doutor
Ronaldo disse que ele tem que se operar o quanto antes, mas ainda não acharam
um doador. Bento tá morrendo, Ariela.
Aquilo
me desesperou. Tudo parecia estar sendo em vão. Não havia forma de encontrar a
luz no túnel que eu tanto procurava. A presença da Vilma, antes tida como um
trunfo para lidarmos com a doença de Bento, virou uma tormenta ainda maior.
/////
Paralelo
a toda essa tragédia, Rique conversou com o advogado de Norberto para saber
qual era a real situação do pai.
-Não
vai ser fácil conseguir a liberdade do seu pai, Henrique. Nem mesmo apelando
pra um habeas corpus.
-Por
quê?
-A
polícia andou vasculhando as contas de Norberto e acabou descobrindo detalhes
que vão tornar essa soltura praticamente impossível.
-E
que detalhes são esses?
-Pra
começar: ele hipotecou a mansão onde vocês moravam. Tudo pra conseguir dinheiro
e pagar homens que aliciavam menores de idade. Eles enganavam meninas de onze, doze
anos, prometendo um trabalho que durasse meio período, que elas pudessem
conciliar os estudos com a carreira de modelo, procuravam essas adolescentes até
em outros estados... E quando elas chegavam aqui, eram espancadas, colocadas em
motéis de beira de estrada, e mandavam cartas pra famílias mentindo que estavam
tudo bem.
-E
o pior é que eu não me assusto com nada disso. Vi muito isso durante minha vida.
Meu pai tratando menina mais nova que eu como se fosse mercadoria.
-Se
você ainda não se surpreendeu, vou te dizer que existe mais por trás dessa
estória. O testamento que sua mãe deixou antes de morrer foi falsificado.
-Como
assim?
-A
leitura feita há vinte e dois anos dizia que você, Henrique, poderia herdar
tudo o que ela deixou aos vinte e cinco anos, e que até lá seu pai seria seu
representante legal.
-Sim,
o que é que tem isso?
-Era
pra você ter herdado tudo há um ano atrás! Seu pai falsificou o testamento pra
que você não assumisse a fortuna, e assim ele poderia administrar tudo que é seu
de direito.
-Não,
meu pai não fez uma coisa dessas...
-Mas
fez, Henrique. Fez. Com o dinheiro, ele abriu uma conta no nome dele, e movimentava
todo o montante. Não sobrou quase nada do dinheiro. Pra piorar, já passou do
prazo de pagamento da hipoteca da mansão.
-Quer
dizer que eu tô na rua?
-Quer
dizer que o pouco que sobrou desse dinheiro herdado da sua mãe vai dar pra você
recomeçar sua vida. Só que isso vai ser em outro lugar, porque nem você nem seu
pai, se conseguir sair da prisão, terão onde ficar.
/////
O
último dia do ano havia chegado. Com ele, os meus dezoito anos. Começava a
caminhar pelo hospital, com a ajuda do meu pai e a de Celine. Transitava por
entre os quartos: num, Bento estava sedado; noutro, Vilma em situação
irreversível, com graves lesões corporais. Parecia que toda a minha luta
acabaria ali. “Se Bento fosse realmente nos deixar, que ao menos nos deixasse
com a alegria que havia recuperado recentemente, em decorrência do retorno da
nossa mãe” era o meu pensamento. Mas eu voltei a me sentir culpada como há anos
atrás e, novamente, por algo que não era de minha responsabilidade. Pensei que
ter trazido Vilma contribuiu para o estado lamentável que meu irmão se
encontrava.
Em
uma única semana, eu consegui me sentir a pior pessoa do mundo. Cada vez mais
eu me castigava por ter deflagrado toda aquela agonia... Eu me imaginava
voltando pra casa, abraçando minha família. Só que, naquele dia, não havia
espaço para felicidade. Vez ou outra, eu passava no quarto de Vilma para vê-la.
Conversava, pedia perdão, implorava para que ela acordasse. Tudo em vão. Na
maior parte do tempo, ficava ao lado do meu pai, que permanecia com as mãos
sobre meu irmão. Celine ficava distante, devido à revelação que meu pai tinha
feito, mas sofria por Bento também.
O
que me fez desabar foi estar, junto à Celine, ao lado da janela do quarto, e
vendo aquela multidão de pessoas se divertindo e comemorando a chegada de 2012.
Meu pai continuava lá, velando o sono de Bento. E chorava, mas silenciosamente.
A emoção se intensificou quando passamos a ouvir a contagem regressiva.
Os
fogos de artifício que eram soltos naquele momento puderam abafar o “eu te amo”
que ele repetia diversas vezes para Bento. Era uma das piores coisas que eu já
tinha visto. Caminhei pelo hospital e decidi ir até o quarto de Vilma. Celine
foi atrás de mim, com medo de que eu tomasse alguma atitude impensada devido ao
meu desespero.
Ao
chegar lá, duas enfermeiras entraram com o médico. Ele fez a massagem cardíaca
e ligou o desfibrilador, na tentativa de reanimá-la. Vi o doutor cobrindo o
rosto dela, vindo em seguida na nossa direção.
-Nós
fizemos todo o possível. Eu sinto muito, mas...
Abracei
Celine, mais uma vez.
-O
que eu vou dizer pra Bento se ele acordar e perguntar dela?- comecei a chorar.
-Desabafa,
meu amor. Chora! A gente vai encontrar a solução junto.
-Foi
culpa minha, Celine! Eu sou a culpada! Vilma morreu por minha culpa!
-Não
fala isso! Você só quis ver sua família unida de novo! Foi um acidente, Ariela!
Um acidente!
As
enfermeiras colocaram o corpo numa maca e o retiraram do quarto. Celine e o
médico tentavam me tirar de lá a todo custo, mas eu não queria sair. Tudo
parecia apontar para um único caminho: a aceitação de que a minha jornada toda
foi em vão.
/////
Seguindo
por uma interminável madrugada, estive sentada com Celine num banco que ficava
entre os dois quartos. Meu pai deixou Bento sozinho por uns instantes assim que
a esposa o avisou da morte de Vilma. Ele não precisou me dizer uma única
palavra- apenas chorou comigo e me abraçou forte. Celine o olhava fixamente, e
tinha certeza de que não era apenas um simples gesto de solidariedade que ele
tinha para comigo: era a dor de quem perdeu a mulher que verdadeiramente amava,
mas que preferia sofrer em silêncio, mascarando aquele sentimento diante do meu
sofrimento.
Minha
madrasta- que àquela altura, já conseguira provar que não estava disposta a
carregar a imagem estereotipada de uma- ficou no quarto de Bento, atenta caso
ele precisasse de alguma coisa. O longo abraço, que pretendia trocar com meu
pai pela morte de Vilma, foi interrompido quando o médico que a atendeu veio
falar conosco.
-Com
licença. Desculpe interromper, mas qual de vocês é parente de Vilma Ramos de
Oliveira?
-Ela
é filha de Vilma, doutor.
-U-hum.
E o senhor?
-Eu...
– pigarreou- Fui casado com ela, embora a gente não tenha se separado pela lei.
-Desculpe
ter de tocar nesse assunto, seu...
-Jayme.
Jayme Oliveira.
-É
que nós temos que dar entrada na papelada pra liberação do corpo e... Enfim, é
doloroso, mas vamos ter que tocar no assunto. O senhor sabe se ela tinha
família?
-Só
os meus dois filhos, Doutor. Mas por que a pergunta?
-Porque
nós queríamos saber se havia algum parente de Dona Vilma que pudesse autorizar
ou não a liberação dos órgãos de sua esposa pra transplante.
-Mas
o acidente que ela sofreu... Será que dá pra aproveitar alguma coisa?
-Seu
Jayme, o que levou sua esposa... Sua ex-esposa a óbito foi um dano cerebral,
provocado pelo acidente. Mas não há impedimento nenhum, mesmo porque Dona Vilma
tinha quarenta anos, e não havia nenhum histórico de doença.
-Sinceramente,
eu não sei o que dizer, Doutor. Acho que a gente deveria respeitar a vontade
dela. Conhecendo a Vilma como eu conheci, eu acho impossível que ela
manifestasse uma vontade desse tipo.
-Pai...
A última coisa que ela fez na vida foi vim ver Bento. Isso não quer te dizer
nada?
-Ariela,
eu não tô entendendo.
-Eu
autorizo, Doutor…
-Autoriza?
Mas você é menor de idade, não?
-Não.
Eu completei dezoito anos ontem. E eu acompanhei todo o sofrimento da minha
mãe, que quis rever meu irmão. Doutor, ele tá muito mal, precisando de um
coração novo. E os dois não conseguiram se ver, se falar, nada... Depois de
tudo que eles passaram pra que esse encontro acontecesse, acho que merecem
alguma coisa boa, mesmo sendo tão tarde.
-Filha,
você quer doar o coração da sua mãe pra Bento?
-Podem
ser os outros órgãos também, Doutor. Eu sei que essas coisas demoram, mas o
senhor tem que ajudar. Não só o meu irmão, mas também os outros, que ficam
esperando tanto tempo por uma operação.
-Se
é assim... Vou falar com Dr. Ronaldo, que cuida do caso de seu irmão. Depois,
eu trago a papelada pra você assinar. Tem certeza de que quer fazer isso,
Ariela?
-Depois
de tudo que me aconteceu na semana passada, Doutor, eu tenho certeza de que se
eu não consegui realizar o último pedido de Bento é porque não era o último.
-Tudo
bem. Eu vou procurar Ronaldo antes de largar do meu plantão. Mas ainda acho que
você tem que maturar essa decisão, Ariela.
-Minha
filha sofreu muito pra tomar essa atitude, Doutor.
-Tudo
que Vilma queria era não ver Bento... Nesse estado. E vai ser por causa dela
que ele vai sair daqui, Doutor. Com vida.
/////
Passaram-se
uns dias até a data da operação. Nesse ínterim, Bento acordou, perguntou por
Vilma e meu pai escondeu sobre sua despedida, pra que ele não chegasse a
piorar. No entanto, vimos o quão fraco meu irmão estava. Chegamos a duvidar que
ele saísse vivo da cirurgia. Lógico que não tecemos comentários sobre isso, não
queríamos desesperar uns aos outros. Aquela cirurgia durou dez horas, mas
parecia estar revivendo daquela semana infeliz.
Abordamos
o Dr. Ronaldo assim que ele saiu do centro:
-Cadê
Bento, Doutor?
-A
operação foi tranquila, embora bastante cansativa. Nós vamos levá-lo para a
sala de recuperação.
-A
gente pode entrar pra ver ele?- perguntei animada.
-Só
não pode demorar muito. Vem comigo.
-Ele
vai se salvar, Celine. Meu filho vai conseguir se salvar!- disse meu pai para a
esposa, seguido de um abraço emocionado.
Assim
que entrei, ele abriu os olhos.
-Não
demore muito, porque ele tem que repousar.
-Tudo
bem. Já, já, eu saio- fui até a maca na qual ele estava deitado- Vai ficar tudo
bem agora.
-Ariela...
Desculpa.
-Desculpa
por que, Bento?
-Por
ter pedido que minha mãe viesse aqui. Eu sei que você tá triste. E sei que...
-Por
favor, não fala nada, Bento. Você tem que descansar.
-Não.
Me deixa falar. Painho falou que ela não quis saber da gente.
-Isso
ficou lá trás.
-Só
que eu não consigo esquecer. Eu fingia que tava dormindo... E escutava Celine
contando pra Painho que... Você lutou muito, e ela não queria vir... Que só
veio porque tinha medo do marido. Não veio por minha causa.
-Mas
ela veio. E vai continuar entre a gente, mesmo que a gente não veja.
-Do
que adianta? Se ela vier, vai continuar tudo igual. Esqueceu que ela não tem
coração?
-Tem,
sim. Bate em você, inclusive- coloquei a mão sobre ele.
-Como...
Peraí, do que você tá falando?
-Mainha
já te deu a vida duas vezes, Bento. Vai mesmo desistir de viver por causa
dela?- consegui me fazer entender para ele, mas vi que estava abalado pela
minha revelação. Não falamos mais nada.
-Ariela,
eu vou ter que levá-lo ao quarto. Você pode dar licença?
-Pode
ir, Doutor.
Nosso
pai havia optado pelo silêncio durante anos. Resolvemos usar a mesma tática
para o resto da vida, e nunca mais Bento e eu conversamos sobre Vilma. Não
havia forma de substituí-la. Ele até tentou, reconhecendo todo o esforço de
Celine e passou a tratá-la como uma mãe- ainda que distante, já que ela decidiu
se separar. Cansamos do sofrimento que não acontecia por acaso, e sim porque
nós nos sentíamos confortáveis em derramar lágrimas, em clamar por compaixão e
dar a tudo uma dimensão gigante. Tudo que justificasse o nosso sofrimento. E por
que nos vitimizávamos? Confesso não ter essa resposta até hoje. Só sei que não
faz mais parte de nós. E nos sentimos melhores por isso.
/////
Não
me tornei nenhuma pessoa especial depois de tudo o que aconteceu, não mudei,
não amadureci. Sou a mesma. Só não continuei estacionada no tempo, como fiz
durante catorze anos.
Dias
depois, eu fiquei sabendo que havia sido aprovada no vestibular de Jornalismo.
Como a cirurgia de Bento era algo recente, até cogitei a ideia de não cursar.
No entanto, isso decepcionaria meu pai, e eu acabei me matriculando. No
decorrer dessa graduação, nada de novo. Era uma vida monótona, só que bem
melhor que toda aquela tensão que tomava conta de mim nos anos anteriores.
Um
ano antes de terminá-lo, decidi adiantar a produção da minha monografia. Assim
que marquei a data da minha defesa, chamei apenas a minha família: Bento (com a
cabeça raspada por ter passado no vestibular de Medicina), o meu pai (todo
orgulhoso) e Celine. Na banca, o orientador e o professor arguidor. Dentro do
auditório, as pessoas que, além de Bento, foram beneficiadas com os
transplantes de órgãos da minha mãe.
Tive
quinze minutos para tratar sobre o problema, que era “O comportamento da mídia
baiana acerca do investimento em obras decorrentes da Copa do Mundo”. Assim que
a apresentação terminou, comecei a anotar as considerações que os professores
fizeram, quando me dei conta de que você estava lá. Deixou o cabelo crescer e
adotou uma barba. A roupa também não condizia com quem você era. Mas aquele
jeito obstinado de me olhar entregava quem era, apesar dos três anos que se
passaram desde a última vez que havíamos nos visto. Minha reação foi ficar
extasiada, mas pude disfarçar. Celine percebeu e olhou para trás: te viu na
primeira fila e entendeu que você não fazia parte do meu passado.
Confesso
que depois disso, pouco assimilei sobre do que os professores gostariam que eu
acrescentasse no texto. Quando ambos findaram a proposição de sugestões, o
orientador voltou a tomar a palavra.
-Bom,
eu vou pedir a todos que se retirem da sala por um instante, para que possamos
chegar a um consenso sobre a apresentação e o texto da orientanda Ariela Ramos
de Oliveira. Dentro de alguns minutos, nós vamos chamá-los e faremos, então, a
leitura do resultado.
Pronto...
Bastou que ele me chamasse de “orientanda” pra eu ficar em pânico (ou, pelo
menos, que nele eu me mantivesse). Bento, meu pai e Celine- já do lado de fora
do auditório- me parabenizaram pela apresentação. Difícil foi dar atenção aos
demais que a acompanharam, todos querendo me abraçar e apertar a minha mão...
Ao
mesmo tempo, meu pai tentava uma última aproximação com Celine.
-Você
andou faltando esses dias ao restaurante... – notando que a conversa era
particular, Bento voltou a ficar perto de mim.
-É
que... Eu tenho ido ao médico.
-Tá
doente? De quê?
-Não,
muito pelo contrário. Eu tô ótima. Cada vez melhor. O que acontece é que... Já
faz um tempinho que eu tenho lido umas coisas sobre inseminação artificial.
-Inseminação?
Por quê?
-Não
é lógico, Jayme? Pois é... Amanhã, eu vou fazer a primeira tentativa.
-Você
quer ter um filho de um homem que você nem conhece?
-O
problema não é o pai. Mesmo porque não saber quem é esse pai vai ser bom pra
mim. Inclusive, eu pedi que não me dessem dados sobre o doador. Não quero imaginar
como ele é. Só de saber que eu vou poder gerar um filho, eu me sinto feliz.
-E
depois, Celine? O que você vai dizer? Quando seu filho crescer, ele vai querer
saber que pai é esse...
-Ele
vai. Eu não. Pra quê se preocupar com isso agora?
-Mas...
Se você se interessar por alguém? Não era melhor você ter um filho de alguém
que você ama?
-Aí
é que tá, Jayme: eu não vou amar mais ninguém. Você foi o último. É melhor
assim.
-Melhor
pra quem? Pra você?
-Lembra
que você disse uma vez que, assim que teve aquele problema de ter que criar
seus filhos sozinho, não queria mais se apegar a ninguém, porque ficou com medo
de sofrer? Entendi que você tem razão.
-Volta
pra casa, Celine. Bento e Ariela amam você, sentem sua falta. Como eu também
sinto.
-Um
dia, eles vão crescer, Jayme. A madrasta vai ser uma figura que vai ficar no
passado. E eu acho melhor que você comece a pensar em deixar as coisas ruins no
passado, já que comigo você não conseguiu ser feliz. Eu torço, de coração, pra
que você encontre uma mulher que aceite suas falhas, seus erros... Que seja
mais compreensiva do que eu.
Quando
todos se afastaram, fui na sua direção, mas o orientador avisou que nós poderíamos
entrar. O arguidor leu que eu havia sido aprovada com a nota nove e que teria
dez dias para fazer as poucas alterações necessárias. Minha cara de alívio
coincidia com a festa que todos fizeram, com mais felicitações e muitas fotos.
E eu, que me preparava para este momento por dois semestres, me via
completamente despreparada pra ter de encarar você, a quem eu esperava há três
anos, desde que eu deixei aquele hotel no Recife.
-O
que você tá fazendo aqui?
-Somos
colegas de curso, sabia?
-Como
assim, cara?
-Também
fiz vestibular pra Jornalismo, lá na UFPE. Aproveitei que meu semestre terminou
um pouquinho antes do seu e vim te ver.
-Mas
como foi que você entrou aqui?
-Teu
orientador, Carlos Arantes, é amigo do meu chefe. Faz um tempo que eu tô
cobrindo umas matérias num jornal de lá de Pernambuco.
-Quem
diria que você ia tomar jeito na vida?
-É.
Parece que meu pai aprendeu a lição de me ensinar as lições dele.
-Onde
que ele tá?
-Só
foi o tempo de vocês saírem do hotel que a polícia prendeu ele. Descobriu uma
coisa pior dele, que ele tava me enganando, enfim... Eu fiquei sabendo o que
houve com Vilma. Meus sentimentos.
-Pois
é, Rique- as lágrimas me vieram aos olhos- Mas esquece. Hoje é dia de
comemorar! Ainda tô besta como foi que você me achou.
-Google, Ariela. Joguei seu nome e
descobri o seu curso.
-E
você veio a Salvador só pra me ver?
-Principalmente
pra isso. Só que minha visita é a trabalho.
-Hum...
Quer fazer uma matéria comigo?
-Uma
matéria, não. Um livro.
-Livro?
-A
editora do jornal tá pedindo pra gente colher depoimentos, histórias que sejam
bem emocionantes, pra lançar em livros, só pra assinantes. Foi quando lembrei
daquela menina atacada que ficava cercando a mãe e o padrasto. Tudo pra
realizar o desejo do irmão... Como é que ele tá?
-Vivo.
Mais vivo que antes, totalmente curado.
-Eu
queria conhecer ele. Claro, depois que a gente sair pra tomar um café.
-Vai
ser difícil. Não tomo café desde que eu tinha uns... Três anos? Mas tudo bem.
Por você, eu faço um esforço.
-OK,
a gente procura outro programa pra fazer... Você continua linda.
-Olha
que eu tenho muito pra contar, viu, seu Henrique?
-Henrique,
não. Gabriel. Uso um pseudônimo pra escrever no jornal. E também porque você
sabe, a mídia queria cair em cima de mim, querendo informação sobre meu pai.
-Que
esquisito... Logo você, sendo filho de quem é, trabalhando na imprensa?
-Pra
me distanciar do que eu vou ser pra sempre. Mas não de tudo, nem de todos... De
todas.
-Pega
um notebook e bota pra recarregar.
Depois que eu entrei naquele carro, eu consegui muita coisa pra contar. Vai se
cansar.
-Não
de você. Nunca. Definitivamente, você veio pra me provar que ter viajado até
Salvador foi a melhor coisa da minha vida.
-Isso
é cedo pra dizer. Mas faço questão de te provar que é verdade.
-Então,
me dá seu telefone. A gente marca de se encontrar- e você discou seu número no
meu celular, para depois salvá-lo.
-Quando
a gente se vê?
-Deixa
que eu te ligo.
-Promete?
-Juro,
juro que te ligo.
-Então...
Vou ficar te esperando- deu-me um beijo no rosto, e saiu da universidade.
Seu
celular tocou em trinta segundos. Você não conhecia o número, e nem sonhava que
uma história de amor finalmente deslancharia após atender aquela ligação.
-Então,
Gabriel...
-Ariela?-
riu, sem graça por ter me achado um tanto fria durante o desfecho da conversa.
-Quanto
tempo a gente tem pra tomar aquele café? Se depender de mim, todo o tempo do
mundo...