-Como
assim “não vai voltar com a gente”? A senhora tem que voltar!
-Não
tenho, não. Aliás, eu fico até surpresa que o motivo de você me cercar seja
justamente esse.
-Não
é um motivo qualquer. É o meu irmão, seu filho.
-Filho
esse que faz parte do meu passado. Eu achei que tivesse deixado bem claro, pra
todos vocês, que eu não queria ter aquela vida que eu levava de novo. Nem Bento
nem você fazem parte da minha história de vida mais, entenda isso.
-Olha
aqui, eu não quero ter aproximação nenhuma com a senhora. Já entendi que pra
senhora tanto faz se a gente tá vivo ou morreu. Só que Bento não pensa assim.
Ele é que acha que a senhora pode voltar.
-Bom,
e por que vocês não o convencem da verdade? De que eu não quero ter mais nenhum
tipo de contato com vocês? Será possível que eu tenho de me fazer entender,
depois desse tempo todo?
-Catorze
anos amanhã.
-Sua
memória é boa. Pena a do seu irmão não ser assim.
-Dona
Vilma, Bento pode morrer a qualquer momento! Meu Deus, ninguém quer que você
deixe seu marido, nem sua casa, pra voltar a morar lá em casa. A gente só
precisa que você visite Bento. Será que você não pode perder um dia dessa
maravilhosa vida que você leva?
-Fora
de cogitação, Ariela- disse, enquanto bebia um suco- Imagina... O que eu vou dizer
pra Norberto? “Meu amor, eu tive dois filhos antes de te conhecer e vou visitar
um que está à beira da morte”?
-Que
se dane o seu marido!
-Não,
que se danem vocês! Eu não vou pôr meu casamento em risco! Vou deixar bem claro,
pra que você não me venha com apelos sentimentalóides: eu não tenho vocação pra
ser mãe, muito menos pra ser atriz e fingir preocupação. Abandonar dois filhos
deve significar alguma coisa, não é?
-Significa,
sim, senhora: que você não passa de uma vigarista.
-Pense
como quiser- levantou-se para ir embora.
-Mas
como um bandido entende o outro, vamos ver se o Norberto não vai se comover com
o drama da esposa dele, da querida Vivinha.
-Se
você abrir a boca pro Norberto, aí é que você pode dar adeus à ideia absurda de
que eu vou visitar Bento. Pode parar com as chantagens, Ariela. Eu vou blindar sua
entrada na minha casa e na Lust. Vou
te impedir de se aproximar de mim e do meu marido! Invente qualquer desculpa
pro seu irmão. Mas pra Salvador eu não volto!
-O
que é que tá acontecendo aqui?- Celine chegou ao restaurante.
-Hum...
Você deve ser a mulher com quem Jayme se amigou, não foi? Pois então manda um
recado pra ele: diz que eu não deixei minha família obrigada, não! Fui porque
quis! Dê uma desculpa pra ele, porque eu não vou voltar!
-Quem
disse que a gente te quer de volta, minha filha? Acontece que Bento tá doente, ele
só quer que você lhe faça uma visita no hospital.
-Mas
eu não vou. E diga pra tirarem essa ideia absurda da cabeça dele. Quanto a
você, já está avisada: nem pense em se aproximar de mim de novo- pega a bolsa-
Com licença.
-Eu
não acredito nisso... Como é que dois seres humanos podem ter saído desse
monstro?
-Eu
não vou desistir, não, Celine. Você vai ver, eu vou vencer minha mãe pelo
cansaço!
-Será
que você não tá aproveitando essa situação pra... Sei lá... Se vingar do que
ela fez no passado?
-O
que ela fez antes não me interessa mais. Tô com raiva do que ela faz hoje,
insistindo em esquecer que eu existo, que Bento existe... A gente não é nada
pra ela, Celine. Por que esse ódio todo?
-É
a vida que ela escolheu levar, Ariela. Quis se afastar de todo mundo que
gostava dela de verdade.
-Só
que meu irmão não merece isso.
-Ninguém
merece isso. Só que a gente tem que seguir a vida. Em vez de se preocupar com Vilma,
a gente tem é que contar a história do Bento pra todo mundo, fazer uma
campanha, procurar algum doador porque o tempo tá correndo... Ariela, me
promete que não vai fazer nada, que vai esquecer o que houve aqui.
-Não
me pede isso, porque eu não consigo.
-Você
tem que fazer isso, Ariela! Por você, pelo seu irmão, pelo seu pai. Já não
basta a doença de Bento e você querendo trazer um problema novo pra todo mundo?
Amanhã, a gente vai pra casa!
-Pra
casa?
-Esperar
o quê, Ariela? Que Vilma resolva encarnar a mãe zelosa e venha com a gente? E
criar expectativa pra Bento? Já é final de ano, vai ser um inferno ter que
pegar um avião, enfrentar fila no aeroporto... Eu quero passar essa virada de
ano com a minha família, nem que seja no hospital! Amanhã a gente vai pra casa!
Quem
me dera se fosse tão simples de obedecer ao que Celine ordenava...
/////
Vilma
voltou pra casa. O marido, que já estava lá, deveria ter notado aquele sumiço
em plena tarde...
-Por
onde você andou?
-O
chá que a Marta marcou foi cancelado.
-Eu
sei. Liguei pra lá, querendo saber de você.
-Sabe
também por que cancelaram, Norberto?- pegou o jornal que estava sobre o sofá e
jogou no colo do marido- Subornou o delegado quando foi dar o depoimento sobre
a denúncia de prostituição... Agora, o meu nome também tá na roda, meu querido.
Esse chá cancelado foi providencial, não teria o que dizer pras minhas amigas
se elas me vissem.
-É
só com isso que você se preocupa?
-Claro
que é só com isso.
-Você
poderia me dar apoio, logo agora que eu estou precisando tanto.
-Norberto,
eu sou sua esposa. Mas não vou passar a mão na sua cabeça toda vez que uma
besteira sua virar manchete da Folha!
-Se
aquele desgraçado do assessor de imprensa não tivesse falado nada, a essa
altura o escândalo da prostituição já tava no limbo, ninguém mais ia dizer um
“A”... Mas o miserável resolveu abrir a boca... Deixe estar. O que é dele está
guardado...
-Você
não vai fazer nada! Quer expor a gente mais ainda? Imagina se esse homem
aparece morto? A culpa vai cair em cima das suas costas! E aí, meu amor, nunca
mais a gente sai da capa do jornal! E dos seus erros, eu já estou cheia!
-O
que é que há com você, hein? De uns dias pra cá, é essa agressividade toda!
-Claro!
Antes você agenciava aquelas meninas com cuidado, agora não tem mais precaução.
Coloca um pé de chinelo pra te assessorar e diz todos os seus passos pra ele.
-Pra
isso que eu contratei aquele cabra safado, não foi?
-Foi,
pra ele te trancar no presídio e jogar a chave no ralo da pia! Além disso,
ainda deixa aquele traste do Henrique morando aqui.
-Rique
é meu filho, Vivinha! Onde que ele vai morar?
-Idade
pra alugar uma quitinete ele tem!
-É
só uma fase, vai passar!
-Deixa
de ser burro, Norberto! Aquele teu filho nunca foi boa coisa! Bati o olho nele
desde que vim morar aqui. E ele não vai parar! Pode encher a boca e dizer pra Deus
e o mundo que sente vergonha de ser seu filho, mas come na sua mão! Aposto que
ele tá naquela tal de rave, gastando
o que pode... Já conferiu o seu cartão de crédito dentro do bolso?
-Já
não aguento mais esse cenário de guerra! Até quando Rique não tá aqui, você vem
com seu estresse e transforma essa casa num inferno! Já tô cansado disso!
-Verdade?
Por que você não acaba com o meu reinado, então? Bota outra no meu lugar, na
minha cama! Não faz isso, sabe por quê? Porque sabe que se outra tomar posse
disso tudo aqui, o único afeto que ela pode sentir é pelo seu dinheiro.
-Como
o que você tem?
-Está
enganado, meu querido. Nunca amei um homem como eu amo você.
-Acho
bom que seja assim. Sabe que eu seria capaz de cometer uma loucura se eu
descobrisse que você não me ama tanto quanto diz. Se bem que... Você já não me
procura há muito tempo... Pode ser que um dia eu canse, e coloque outra na cama
da gente.
-Faça
isso, Norberto. Faça justamente com a mulher que dedicou catorze anos da vida a
você e à peste que chama de filho. Aí você vai ver do que eu sou capaz.
/////
Ao
voltar do hospital, meu pai tomou um banho e, cansado, sentou-se no sofá.
Enrolado na toalha, encontrou uma coletânea de músicas da Nana Caymmi,
presenteada pela sua primeira mulher. Coloca o CD no aparelho em bota a
primeira música em modo de repetição.
-Ah,
vem cá, meu menino. Pinta e borda comigo, me revista, me excita, me deixa mais
bonita. Ah, vem cá, meu menino, do jeito que imagino. Me tira essa canseira, me
tira essas olheiras de esperar tanto tempo a mudança dos ventos pra eu me
sentir com forças, pra eu me sentir mais moça...- diziam os primeiros versos,
quando o celular tocou. Tratava-se da Celine.
-Meu
amor, como é que tá Bento?
-Deixei
ele lá no hospital e vim tomar um banho, comer alguma coisa. O médico tem já o
meu número; disse que se ele tiver alguma coisa, me liga. Tá tudo na mesma,
Celine. E Ariela?
-Coitada,
passou por um perrengue mais cedo.
-Alguma
coisa com Vilma?
-Duas:
a primeira é que ela conseguiu encontrar Vilma e convenceu tua ex a vir aqui
pra conversar. Falou de Bento, da situação que ele tá...
-Ela
disse o quê?
-Na
cara de pau, que não volta! E ainda falou mais a miserável: que é pra gente
inventar qualquer desculpa pra Bento, que ela foi pra se afastar de vocês
mesmo... Enfim... Ela deixou a menina de um jeito que...
-Viu
que era por isso que eu não queria deixar que vocês duas fossem atrás dessa
mulher?
-Você
não quis vir, Jayme. Alguém tinha que tomar uma atitude. É o último desejo de
seu filho.
-É
o que ele pensa que é último desejo. Bento vai se salvar. Meu coração tá me
dizendo isso. Bom, acho melhor deixar Ariela descansar um pouco o juízo dela. E
a segunda coisa?
-Por
que tá tocando “Mudança dos ventos” aí?
-Não
tá tocando nada, o som tá desligado.
-Não
me faz de idiota, Jayme. É a música preferida do tempo que vocês dois eram
casados.
-Achei
o CD e coloquei pra tocar. Música normal, como outra qualquer.
-Por
isso não quis vir pra cá. Pra Vilma não pintar e bordar contigo de novo.
-Não
delira, Celine.
-Às
vezes, eu fico na dúvida. Se eu tivesse te deixado, e não ela, você vinha atrás
de mim?
-Para
de falar besteira... Amanhã eu ligo pra saber de Ariela.
-E
de mim? Quando você vai querer saber de mim, Jayme?
-Boa
noite, Celine- desligou o telefone, desconcertado.
Cada
vez menos, ela se conformava. E eu chegaria à certeza de que eu não era a única
insatisfeita com a vida que eu levava. Mas, pelo menos naquela noite de 27 de
dezembro de 2011, Celine teria mais uma preocupação. Ao desligar o telefone,
resolveu me dar um beijo de boa noite. Eu detestava isso, mas ela insistiu em
fazê-lo. E eu não estava lá... Saiu do quarto e foi ao saguão do hotel,
desesperada por não saber notícias minhas.
Novamente,
eu estava lá, na Lust. Exatamente na
calçada. Perguntei ao Gustavo, o balconista do lugar, se Norberto estava lá.
Ele disse que o dono da boate não havia chegado. Resolvi esperar. Quando ele
estacionou, fui ao encontro dele, que não entendeu meu olhar de quem não sabia
o que estava fazendo, nem o que diria.
-E
você, quem é?
-Depende.
Quem o senhor quer que eu seja?
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