31/10/2016

ONZE MIL/ CAPÍTULO 15

Bernardo se esquiva da resposta... Vê aquele menino mirrado, negro, que se apresenta pelo apelido e entende de quem se trata.
-O que você tá fazendo aqui?
-Não sei. Pra falar a verdade, eu não sei nem onde estamos. A única coisa que eu me lembro é que... Fui falar com meu filho, e veio um carro sem que eu me desse conta... – olha para o alto- Acho que vai chover. Ficou tudo tão escuro, de repente.
-Tá com medo?
-De quê?
-Desse escuro.
Bernardo sente a escuridão se acentuar sobre ele.
-Sim.
-Por que não pede a Papai do céu?
-Pedir o quê?
-Pra levar esse escuro embora.
-Ele não vai me escutar.
-Me ensinaram que toda vez Ele escuta, meu pai e meu avô.
-Uma vez eu pedi. Queria que Ele salvasse minha filha. Ela estava à beira da morte, e eu tinha prometido que se Ele a curasse, eu nunca mais ia me meter na vida dela.
-O senhor acreditou?
-Claro que acreditei. Eu só tinha essa esperança de que Ele fosse mesmo fazer alguma coisa, mas Ele não fez nada.
-Não. O senhor acreditou no que o senhor disse que ia fazer?- a pergunta de Kim emudece Bernardo- Vê só: se pedir sem acreditar, não funciona.
-Eu não acredito em milagre. Já passei por tanta coisa difícil na minha vida que pra mim é impossível.
-Existe, sim.
-Como é que você sabe?
-A minha mãe eu não tenho. Mas eu tenho minha família: meu avô e meu pai. E tem uma coisa que eu peço toda vez.
-O que é?
-Que Papai do céu cuide do meu pai. Ele diz que queria cuidar de mim com minha mãe, mas ela tá no céu.
-Senhor, salve o meu irmão de toda malignidade, da sombra da morte. Desperta esse coração, para que possamos engrandecer o Teu nome- ouve-se a voz de Miguel.
-Tá ouvindo?
-Essa voz é do meu irmão. Mas de onde vem?
-Senhor, cuida do meu pai. Tu sabes o que ele tem feito com toda a nossa família, mas não permita que ele se vá sem conhecer o Teu amor, pra que aprenda a amar também...
-Yanna- constata Bernardo.
-Meu Deus, se quiser me castigar, venha, mas não leve meu pai. Não deixe ele ir embora com ódio de mim, com ressentimento de todos nós. Abre os olhos dele.
-Raffael...
-Senhor, cuida do meu avô, o pai da minha mãe. Faz ele feliz.
-Até o filho da Carolina... - com vergonha, finge não saber de quem se trata.
-É, eu sempre peço por ele. Meu pai me contou que ele deve chorar muito porque a minha mãe foi morar no céu.
-Mas... Por que eu estou ouvindo tudo isso? De onde que vem?
-Acho que eles querem ver o senhor voltar pra casa.


Subitamente, Bernardo acorda na sala de triagem de uma policlínica, ouvindo os choros de Miguel, Yanna e Raffael. O enfermeiro que o acompanha se assusta ao ver seus olhos abrindo. Logo, corre para chamar os parentes do empresário, sem ao menos saber o que falar. Miguel estranha a reação do rapaz.
-O que foi?
-Ele acabou de abrir os olhos.
-O meu pai?- Yanna corre para ver se Bernardo realmente está vivo e fica maravilhada. Sem se importar com os seus ferimentos, abraça o pai- Graças a Deus! Graças a Deus que você tá vivo, Pai!
-O que é que está acontecendo?
-Pai... Você tá vivo- Raffael se emociona, também abraçando o pai na hora, ainda que ele não tenha noção do que esteja acontecido.
-Como Tu és maravilhoso, Senhor! Obrigado, meu Deus! Obrigado por trazê-lo de volta à vida!- Miguel se ajoelha para agradecer.

...

Lucas olha para o filho desacordado e fala:
-Me leva no lugar dele, meu Deus. Mas não faz isso comigo, não tira ele de mim.
-Lucas, o que foi?- Osmar acorda assustado- O Kim piorou?
O monitor cardíaco registra a volta dos batimentos do menino.
-Kim?- Lucas chega perto do leito- Kim, meu filho, você tá me escutando?
A criança abre os olhos.
-Tava sentindo sua falta, Pai.
-Oh, meu Deus... – Lucas derrama suas lágrimas sem medo.
-Mas não faz nem duas horas que ele foi pra casa, Kim. Seu pai não demorou tanto assim, não...
-Demorou, sim. Achei que ele não ia mais voltar.
-Você também demorou pra acordar, meu filho. Pra mim, pareceu a eternidade.
-Se eu te falar um negócio, não vai ficar de mal de mim?
-Não. O que é?
-Tá muito engraçado você careca, igualzinho a mim.
Lucas ainda se arrisca a soltar o riso, vendo a felicidade do filho em vê-lo vivo. Não se contém e o abraça, mesmo estando o garoto deitado.
-Aconteceu o quê com você, Lucas?
-Só a confirmação, Pai.
-Confirmação de quê?
-De que os milagres acontecem.

ALGUMAS SEMANAS DEPOIS...

Bernardo desce com uma mala do seu quarto, e Miguel abre a porta, olhando o irmão com uma feição inconformada.
-Tem certeza de que é isso que você quer, Bernardo?
-Alguma opção que você possa me sugerir?
-O que você está fazendo é radical demais. É como se estivesse condenando seus filhos.
-Meus filhos são adultos, Miguel. E isso já ocorreu há bastante tempo, eu é que não quis ver.
-Deixar tudo pra trás, o trabalho, a família, recomeçar em outro lugar... Tudo isso é arriscado, Bernardo.
-Não será nenhuma surpresa pra eles. Já conversei e admiti que preciso dar um tempo pra mim e pros dois.
-Sinceramente, eu não entendo. Você é tão obstinado pelos seus objetivos, e de repente resolve deixar tudo pra trás.
-Miguel, há anos que eu insisto em ser de uma forma que acaba me machucando. Raffael e Yanna não vão sofrer pela minha ausência. Só assim eles vão saber que podem realizar seus sonhos. Do que adianta impor a minha vontade? Carolina não iria voltar só porque eu orei pra ver a sua cura.
-Pois é. Te faltou acreditar naquilo que pediu a Deus.
-Engraçado... Você já é a segunda pessoa que me diz isso.
-Quem te falou antes?
-Esquece, não importa.
-Bernardo, não está fugindo com medo deque a Yanna te denuncie pelo roubo dos onze mil CDs, não é?
-A questão foi esclarecida pela Sílvia, não é? Yanna sabe que fui eu quem arquitetou o assalto. Mas a intenção dela era de lançar o disco de qualquer forma. Essa obstinação certamente ela herdou de mim.
-E quanto ao Kim? Você vai continuar ignorando seu neto?
-Tudo continua do jeito que está, Miguel. A única alteração vai ser a minha retirada. Esse menino passou cinco anos sem ter nenhum tipo de contato comigo, não criamos nenhuma espécie de vínculo. Por que fazer isso agora?
-Ele está com linfoma, você sabe disso.
-Claro que sei. Por isso eu quero que Raffael e Yanna prestem assistência, caso ele precise de alguma coisa.
-Não existem substitutos quando se trata de afeto.
-Meus filhos não estão me substituindo. Estão assumindo um papel que queriam assumir e não tiveram oportunidade, porque eu os impedi. Nunca vou dizer que jamais vou chegar perto daquela criança, mas hoje eu não me sinto preparado pra nada disso.
-Nem mesmo pra pedir perdão a Lucas, pelo seu preconceito?
-O único culpado pelo desespero da Carolina, que culminou na sua morte, sou eu. Uma vez, eu disse que era o único que tinha o direito de sofrer pela morte da minha filha. Agora eu cheguei à conclusão de que estava certo. Porque quem contribuiu pra esse desfecho trágico fui eu.
-A Carolina morreu te amando, Bernardo. Tanto que confiou a você e ao Lucas a responsabilidade de cuidar do Kim.
-Mas eu não fui capaz. Olha só o que eu fiz com os meus filhos, Miguel. Eles não me respeitam, me temem. Vou condenar essa criança à minha tirania também? Bom, o que eu quero falar com você antes de viajar é o seguinte- entrega-lhe as chaves da mansão- Toma conta da minha casa, e dos meus filhos.
-Por quanto tempo você pretende ficar?
-Até me despir dessa escuridão que me assombra. Isso pode levar uma vida toda.
-Você vai sair assim, sem nem dizer ao menos pra onde vai?
-Pra quê essa afetividade toda, Miguel? Despedidas, abraços e lágrimas em excesso? Sejamos práticos. Tudo isso é uma prévia longa da minha agonia em ficar longe deles, mas é necessário. Fique tranquilo, porque eu vou dar notícias.
-E como você encara essa aproximação dos meninos com a Sílvia?
-Sílvia soube construir um novo lugar. Aquela mulher frívola que largou os três filhos desapareceu e foi substituída por uma mulher que não sabe fazer outra do que conquistar os filhos dia após dia. Você não vê, Miguel? Até o Raffael, que é o mais teimoso dos três, perdoou a mãe desde que ela voltou pro Brasil, embora nunca tenha me dito e até tenha destratado a mesma em público.
-Sua ex-mulher conseguiu o seu perdão?
-Quem sabe? Mas eu não me sinto em condição de me relacionar com ninguém, nem com meus filhos, nem com meu neto, nem com o ex-namorado da minha filha, minha ex-mulher... O que esperar de um homem que não se entende?
-Realmente, não quer que eu vá com você?
-Faça o que você sempre fez enquanto eu estive aqui: ore. Às vezes, funciona.
Miguel dá um abraço emocionado.
-Que o abraço que nenhum homem pode dar na sua alma, Deus venha a dar. Ainda que no tempo Dele.
-Que assim seja. Enfim, me deseje uma boa viagem.
-Sempre. Me liga quando chegar ao seu destino.
-Caso eu saiba qual é... – puxa a mala e se retira da mansão.

...

Um táxi traz Bernardo até o aeroporto. Com a mala, ele passa pelo saguão do local, mas vai até a varanda, cuja janela dá pra observar a pista de decolagem. Começa a chover forte. Só há um pai, segurando o filho nos braços, no local além do empresário. Os dois homens recuam.
-É muito grande esse avião, Pai- Bernardo reconhece a voz da criança.
-Viu só? Sempre disse que ia te trazer e acabei trazendo- Lucas comenta, virando-se em seguida para encarar o olhar surpreso de Bernardo- O senhor?
-Pensei que vocês estavam no hospital. Me falaram que seu filho estava doente.
-Pois é. Linfoma.
-E como ele está agora?
-Passou pela primeira sessão da quimioterapia. Foi aí que o Joaquim aprendeu o que era milagre. A médica examinou depois que terminou a primeira parte do tratamento e disse que ele acabou. Aumentou a expectativa de vida. Claro, ele vai ficar a vida toda se cuidando, mas... O pesadelo passou. A gente acabou de sair da Oncomed, mas não foi pra casa. Joaquim insistiu em conhecer o aeroporto.
-É Kim!
-Tá bom, Senhor Kim, não se fala mais nisso- Lucas ironiza o comentário do filho.
-Fico feliz. De coração. Você fez o que eu disse.
-Me afastar da sua família?
-Não. Provar pra todo mundo que você ama a minha filha. Essa é a maior prova de amor que ela poderia receber.
-Faria mais se ela estivesse viva. Me coloquei contra todas as previsões de que um filho, tido aos dezesseis anos, criado por um cara negro e pobre, ia me trazer sofrimento- Bernardo entende isso como uma indireta.
-E você venceu. É digno de admiração. Bom, eu tenho que ir, não posso perder o meu voo- vira-se ao puxar a mala.
-A benção, Vô- a frase de Kim deixa Lucas e Bernardo sem reação imediata.
-Deus te abençoe, Joaquim... Kim- segue para a fila.
-Filho... Como você sabia que esse homem também era o seu avô?
-Toda noite, eu peço a Papai do Céu pra cuidar dele também. E um dia, ele apareceu no sonho. Tava com muito medo porque tava sozinho. Mas ele nunca vai ficar sozinho.
-Como é que você sabe?
-Todo dia, tem uma pessoa que ora por ele: eu.
-É por isso que eu amo tanto você, sabia?
-Também te amo, Pai.
O abraço mais longo dos últimos dias é trocado por Kim e Lucas.

...

Uma livraria é o palco do lançamento de "Minha Liberdade Pra Te Adorar", o primeiro disco de Yanna, que assina sem o sobrenome Mutarelli. Nela, marcam presença Raffael, Sílvia, Miguel e Cadu, que é o primeiro a cumprimentar a amiga pelo CD.
-A gente conseguiu, minha amiga!
-Graças a Deus. Obrigada por tudo, Cadu. Obrigada por nunca ter me deixado desistir.
-Nunca me faça dar um puxão de orelha, hein?- o produtor abraça a amiga, aos risos.
Miguel e Sílvia conversam sobre a carreira da moça.
-Até que enfim ela deu o pontapé que precisava pra carreira. A voz da Yanna ainda vai chegar a muitos ouvidos.
-Me sinto tão privilegiada de ver essa alegria no rosto da minha filha, Miguel. Acho que ela nunca foi tão feliz.
-Sílvia, ela está aprendendo a ser feliz, essa que é a verdade. Inclusive, saiu uma resenha ontem no jornal. Ganhou uma avaliação de cinco estrelas.
-Nossa! Quer dizer que, se depender da crítica...
-A crítica aprovou, mas o principal aval veio antes, de cima!- Miguel aponta para o alto.
-Miguel, me diz uma coisa: o Bernardo deu notícias?
-Deu, sim, Mãe- Raffael se intromete na conversa- Está em um hotel em Lisboa.
-E ele está bem?
-Caminhando. Sem previsão de volta. Falei com ele hoje, e ele mandou um beijo pra Yanna, pelo lançamento do disco...
Alice chega à livraria e atrai a atenção de Raffael.
-Tudo bem, meu sobrinho?
-Tio, me dá licença.
-Claro, pode passar.
-Aquela moça é a que causou o desentendimento entre o Raffael e o Bernardo.
-Não, Sílvia. O desentendimento entre o meu sobrinho e o meu irmão foi culpa do meu irmão. E ele já entendeu isso.
-Não imaginava que você viesse.
-Pensei que a tua irmã tinha avisado que me mandou o convite. Até relutei em aceitar, mas ela disse que eu precisava vir até aqui.
-Até adivinho o que ela disse: as canções vão dar um abraço na sua alma.
-Pois é. Usou essas palavras, quando foi me chamar no hospital.
-Olha, eu... Eu queria te pedir desculpas por tudo que eu disse, pela forma como eu te tratei.
-A sua reação foi o último resquício do que a Alice Dubeux podia fazer de ruim pros outros e pra si mesma. A revelação dessa verdade, que me consumia, foi o que eu precisava pra enterrar de vez esse passado.
-Cara, eu não sei se eu tô sendo ridículo com o que eu vou dizer, mas...
-Espera, Fael. Acho que já sei o que é. Tentar de novo, não é isso?
-A Alice conseguiu me enganar enquanto esteve comigo. O olhar da Amanda não. Tanto é que continua vivo, pulsante, como se nós dois tivéssemos nos conhecido agora. Eu é que não enxerguei que o teu passado morreu.
-Fael... Pra eu voltar pra você, eu vou ter que me desfazer da Alice. Mas eu te peço uma coisa.
-Diz.
-Não se desfaz de nada que te compõe. Igual a você, eu não vou encontrar em canto nenhum.
-Quer dizer que...
-Prazer, Amanda. Por enquanto, o que você sabe de mim é que eu sinto uma necessidade enorme de ficar com você o resto da minha vida.
-O prazer é todo meu. Meu nome é Raffael e a minha profissão é te fazer feliz a cada segundo- dá as mãos à moça e a leva para perto do palco, onde já estão Sílvia e Miguel.
No palco, estão Yanna e Cadu. Uma repórter pergunta:
-O que o público pode esperar do seu primeiro disco, Yanna?
-Unção, esperança, fé... Tudo que, no processo de produção, era impossível que eu tivesse, mas tive. E quanto mais aumentavam as dificuldades, mais eu corria o risco de fazer Deus ser coadjuvante nessa trajetória. Minha preocupação era a de torná-Lo protagonista absoluto.
-Você pode dar uma palinha de alguma faixa?
-Claro. Eu e o Cadu, meu produtor, compusemos uma versão do nosso texto preferido: o capítulo 91 do livro de Salmos. Tem como você tocar essa canção pra mim, Cadu?- dá a mão direita ao amigo.
-Sempre- pega o violão e senta para tocar, enquanto Yanna se apresenta aos convidados da coletiva.


-Temos o prazer de chamar o orador da turma de Direito 2016.1 da Universidade Estadual de Pernambuco: Lucas da Costa Silveira.
Todos os presentes aplaudem durante a cerimônia que ocorre simultaneamente ao lançamento do disco, principalmente Osmar, que vê o filho subir ao palco acompanhado de alguém muito especial.
-Obrigado por me deixar viver pra ver isso, meu Senhor.
-Boa noite a todos. Confesso que quando fui escolhido pra essa tarefa, não imaginaria que tanto tempo se passaria e nem que tanta coisa acontecesse nesse intervalo. Quando estava preparando o meu discurso, sabia que teria que falar das dificuldades que aparecem no nosso caminho, dos inimigos que se levantam a todo momento. Durante um tempo, eu vivi uma experiência horrível, e não tinha condição de ir à universidade todo dia. Mas hoje eu tô aqui, pronto pra mostrar aos meus professores, meus colegas de turma e a todos os que estão aqui que, se for pra vencer, não vença sozinho. E meus companheiros de turma têm consciência disso. Portanto, o meu discurso não vai ser só meu. O texto que eu... Ou melhor, que Kim e eu vamos dizer essa noite, já é um tanto conhecido- começa a recitá-lo- Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará.
-Eu vou dizer do Senhor: Ele é o meu Deus, o meu refúgio e a minha fortaleza.
-Pois Ele te livrará do laço do passarinheiro e da peste perniciosa.
-Vai cobrir você com as Suas penas, e debaixo das Suas asas, vai ficar seguro.
-Não temerás terror noturno, nem seta que voa de dia.
-Nem da peste que se espalha no escuro... – Kim recorda os dias difíceis que passou na Oncomed, e volta a sorrir quando Lucas o segura firmemente- Nem da mortandade que assola ao meio-dia.



-Mil cairão ao teu lado e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido- Bernardo continua a leitura com o livro sagrado na mão, numa solitária mesa de restaurante.

30/10/2016

MORFOLOGIA ("24 HORAS POR DIA", DA LUDMILLA)

Tu não tens nada pra fazer,
Mas não treinas Caligrafia

Nota ruim
Tende a cair
Sem estudar Morfologia

Nota ruim
Tende a cair
Nota ruim tende a cair...

Gramática te traz pronome
E artigo no semestre
Adjetivo estudará
Substantivo no seu teste

Nota não rejeita
Verbo já tem revisado
E lido em sua aula
Pra nota não vir abaixo

Há numeral no estudo
Até porque relembro:
Estas podem variar
Segundo ensinamento

Porém, repara:
Conjunção para
Numa oração que será coordenada

Há, contudo,
Texto que logo
Auxilia aprovada

Tem preposição, que liga
Oração. Perceba truque!
Interjeição não varia
Advérbio não discute

ONZE MIL/ CAPÍTULO 14

-Isso é mentira! Mentira sua! Você não tem pretexto algum pra se aproximar dos meus filhos e agora inventa essa patacoada?
-Você acha que isso tudo é uma farsa? Pois eu tenho como provar o que estou dizendo. Desde que eu soube que os discos da minha filha tinham sido roubados, eu contratei um detetive particular. E descobri que os assaltantes não são ninguém menos do que os funcionários da RYC Transportadora! Familiar esse nome pra você, não é? A sua transportadora!
-Eu não acredito que você fez isso comigo.
-E não é pra acreditar mesmo! Sua mãe, ou melhor, esta mulher está fazendo de tudo pra acabar com a imagem que eu construí.
-Se engana, eu não me atreveria a tanto. Que você fez pelos nossos filhos o que pôde enquanto eu preferi me afastar deles, disso eu não tenho a menor dúvida. Mas tentar acabar com o sonho da Yanna? Pra quê isso, Bernardo?
-Sílvia, você... Você não tem como provar uma vírgula dessa história que está nos contando.
-Aqui tem um dossiê comigo!- entrega-o à Yanna- Um dossiê com informações que comprovam que quatro dos seus funcionários foram pagos por você pra roubarem os caminhões. Eles trocaram as placas dos dois veículos assim que saíram da vista dos motoristas. E colocaram fogo pra que ninguém pudesse identificar onde eles tinham parado. Mas antes, Bernardo, você deu a cartada final: fez com que os ladrões entrassem em outra via erma e descarregaram as onze mil cópias em caminhões próprios da transportadora, pra que quando encontrassem os veículos da gravadora, pensassem que os CDs também tinham se perdido no incêndio criminoso. Assim, eles seriam armazenados na sede da transportadora e ninguém desconfiaria de nada.
-Graças a Deus!- a frase de Miguel deixa Bernardo ainda mais alterado- Deus é tão maravilhoso que não deixou nada acontecer com os discos da Yanna. Porque Ele sabe o coração que a serva dele tem.
-Deixa de dizer baboseira, Miguel!
-Baboseira nenhuma!- Yanna se volta contra o pai- Eu vou agora mesmo ligar pro Cadu e avisar que os discos estão na transportadora. Você vai ter coragem de negar isso? É a sua cara, Pai! Desde que eu falei da gravação do disco, você não suportou a ideia de me ver realizando meu sonho... Porque sempre exigiu que eu realizasse os seus! Mas agora chega! Esse CD vai chegar às lojas, e nem você nem ninguém vai me impedir!
-Comprou a história dessa desgraçada?
-Não é o que ela disse de você que me convenceu! É o seu comportamento. Você é capaz de tudo pra que ninguém descubra que seus planos deram errado. A começar pela ida da Carol pro exterior! Ser ela não tivesse fugido dela, se tivesse encarado a gravidez do lado da gente, minha irmã teria sobrevivido. Mas agora ela tá dentro de um túmulo. E a culpa é sua!
-Cala essa boca... – Bernardo levanta a mão para Yanna.
-Não encoste um dedo nela!- ordena Sílvia.
-Tem razão, Sílvia. Não vale a pena perder tempo com ela, não vai acreditar em mim mesmo. Só na mãezinha abnegada que tem.
-Pode nos poupar das suas ironias. Eu não me sinto atingida por nada do que você diga ou pense de mim.
-A descoberta do meu suposto mau-caratismo te deu um gás e tanto na disputa pelo respeito dos meus filhos, não?
-Respeito? O que eu quero é o coração deles, que você minou desde que eu fui embora, coordenando os dois pra realizarem os seus anseios. Você só se sente realizado como pai se os dois te obedecerem. Fora dessa possibilidade, você é o homem mais frustrado do mundo.
-O que você quer? Que eu confirme todas as informações desse dossiê? Quer? Yanna, minha querida, se você espera alguma nota de ressentimento ou um pedido de desculpas, gaste seu tempo em atividade melhor. Distribua suas milhares de cópias Brasil afora, mas não sem antes jogar esse dossiê nas mãos da polícia. Mas é bom que eu avise: até lá, o seu destino quem determina sou eu.
-Por que tanto ódio, Bernardo? Tem horas que eu penso que nunca mais vou conseguir reconhecer o meu irmão, aquele que batalhava pra chegar onde queria, sem atropelar a felicidade dos próprios filhos. A própria Carolina é a maior vítima desses sacrifícios que você faz da felicidade da sua família.
-Por que tanto amor transbordando de você, Miguel?
-Porque eu não passo a minha vida esperando o mesmo dos outros, nem que os outros façam a minha vontade, como se eu fosse o senhor de tudo!
-Ótimo. Só falta o Raffael aqui pra completar a crucificação. Eu não vou mais permanecer nesse espetáculo patético contra mim. Se ele existir... Vão para o inferno!- abre a porta de casa e se retira.
Na sala, ficam Miguel, Sílvia e Yanna, sem saber o que dizer uns para os outros.

...

Fora do setor infantil da Oncomed, Lucas e Osmar esperam por notícias de Kim. Alice volta do quarto.
-Como é que tá meu filho, Amanda?
-Lucas, as notícias não são boas.
-Por quê, Doutora? O que meu neto tem?
-Detectei que o Kim apresentou a síndrome da lise tumoral.
-O que é isso, Amanda?
-É uma série de complicações que surge devido ao tratamento da quimioterapia. Os sintomas são vários, mas o que Kim teve foram dois: a paralisia e a contração dos músculos da boca.
-Kim vai ficar assim até o fim do tratamento, Doutora?
-Acabei de dar um medicamento via oral pra ele, Seu Osmar. Agora ele está sob controle, mas isso não impede que novas crises ocorram com ele.
-Então por que você não para com a quimioterapia, Amanda? Será que você não tá vendo que Kim tá pior desde que veio se tratar aqui?
-A quimioterapia é o melhor tratamento pro linfoma, Lucas. Sem ela, os efeitos da doença seriam piores.
-Só que eu não vejo nada!
-Doutora, a senhora vai me desculpar, mas... O meu neto está definhando numa cama.
-Kim não pode perceber o desespero de vocês, por isso eu peço que tentem manter a calma, pelo menos na frente dele.
-Como é fácil falar, não é?
-Lucas, eu não preciso das suas ironias, eu estou fazendo o meu trabalho da melhor maneira possível. Mas acontece que cada organismo responde de uma maneira diferente ao tratamento, e o do Kim tem demonstrado diversas reações adversas. Acontece que não existe outra opção que traga os mesmos resultados. E se vocês não acreditam nos avanços que o Kim pode fazer, ninguém vai convencê-lo de que a cura vai chegar.
-Filho, procura comer alguma coisa, ir pra casa, tomar um banho. Eu fico com Kim.
-Eu não saio de perto do meu filho. Nunca saí, quanto mais agora!
-Seu Osmar não tá te expulsando daqui, Lucas. Ele só tá preocupado com você, assim como seu filho ficaria se te visse assim.
-Ouve a doutora, Lucas. Vai descansar um pouco, mais tarde você volta.
-Tá bom, Pai. Vocês que sabem- sai, decepcionado.
-Doutora, me desculpe por ele. Mas não está sendo fácil.
-Eu entendo, Seu Osmar, só queria que ele entendesse que da minha parte nada falta pro Kim se livrar dessa doença.
-Cá pra nós, Doutora: acha que ele tem chance?
-O tempo vai se encarregar de trazer a resposta que vocês tanto esperam. Mas eu tenho medo de uma possível regressão no quadro do Kim. Se ele fraquejar mais, não vai ser nas mãos da medicina que o problema vai ser colocado.
-Disso eu sei. Mas eu tenho fé que a senhora faz o possível. O impossível está nas mãos de Deus.
-Tomara, Seu Osmar.

...

Transtornado depois da aparição de Sílvia, Bernardo faz um trajeto diferente do habitual sem perceber. Quando nota, já está perdido.
-Droga. Agora vou pegar um engarrafamento desgraçado...
Passando pela praia, encontra a beira da calçada Raffael, sentado no chão e descalço. Rapidamente, estaciona o seu automóvel e vai até a areia, mas o filho não o percebe. Sobre os pés do engenheiro, joga um pouco de areia com o seu sapato.
-Que é isso?
-Poderia fazer a mesma pergunta, Raffael. Desde quando você dorme fora de casa?
-A você eu não devo explicações- levanta-se, consternado.
-Me deve até as calças que está usando, moleque! O que é, hein? Já deu o seu show, já deixou seu tio e sua irmã preocupados com o seu paradeiro, até foram parar na delegacia. Deixa dessa frescura e entra no carro.
-Com você, eu não vou a lugar nenhum.
-Que tom de voz é esse pra falar comigo?
-A lugar nenhum! Ouviu?
-Olha aqui, para com esse ataque. Jamais te poupei da verdade do que acho ou deixo de achar de você. Então, não venha agora se comportar como uma criança!
-Tudo o que você faz comigo ou pensa de mim eu não sei. Ontem mesmo eu descobri um segredo seu.
-Você abandonou o carro na Oncomed. Até tenho uma vaga ideia do que pode ter acontecido... Aquele negro safado falou mal de mim, não foi?
-Lava a boca pra falar do Lucas! Ele tem mais dignidade do que você. Pelo menos ele não trama contra o próprio filho. O Kim sabe que pode confiar no pai, ao contrário de mim.
-Fala o que foi que aquele calhorda inventou sobre mim, fala!
-Mentiras do Lucas eu não tenho pra contar. Mas as verdades de Alice Dubeux, a prostituta de luxo que você contratou... Essas, sim, são um prato cheio.
-Quem é essa tal de Alice?
-Que foi? Sua memória é tão seletiva que você não se lembra nem de quem transou contigo?
-Raffael, eu não admito que você...
-Você não tem que admitir nada! A única coisa que eu quero de você é distância.
-Sério mesmo que você perdeu o resto de juízo que tinha por conta de uma rameira?
-Que você colocou na minha vida.
-Olha à sua volta, seu imbecil. Há milhares de mulheres no mundo. Você tinha justamente que se apaixonar por ela, pela Alice? Juro que eu achei que você fosse mais inteligente!
-Você não tinha o direito de fazer isso comigo! Como é que você conseguiu ser tão canalha?
-Eu disse que controlava a sua vida, e que era responsável por tudo que você fazia. Até isso, Raffael. Até uma mulher na sua cama eu fui responsável por colocar.
-Só que na minha vida você não tinha o direito de se meter.
-Eu sou teu pai, idiota! Acha mesmo que esse jeito excessivamente estudioso, sem olhar pra um rabo de saia que seja, não me preocupava? Com menos idade que você, eu já tinha tido vários namoros, dormido com quem bem entendia. Será que não era mesmo pra eu ficar preocupado? Foi daí que eu pensei: já que ele não vai pra cama com a primeira que aparece, que não vá com o primeiro.
-Teu método funciona tão bem que enterrou uma filha.
-Não fala da Carolina, insolente.
-Por quê? Virou santa? Fugiu de você, do seu receio, da sua opressão e acabou morta! E quando você teve a oportunidade de fazer alguma coisa de bom depois da morte dela, recusou o neto por ele ser filho de um negro. Mas é muito mais fácil botar a culpa no Lucas, não é? Por que você não diz que cavou a sepultura da tua própria filha, hein? Por quê? Eu não vou ter o mesmo destino da Carolina.
-Não? Vai fazer o quê, então? Se casar com aquela vagabunda pra me provocar?
-Fugir do teu domínio, da tua ditadura, do teu império. A partir de hoje, eu não vivo mais com você. Mas não precisa se preocupar: eu não vou deixar nada meu lá dentro.
-Pior que vai. Se você insistir nessa ideia estapafúrdia de abandonar a nossa casa, nem entre.
-Se é assim que você quer...
-Quem deu a carta do jogo foi você. Agora, você tem total liberdade pra se refestelar na cama da prostituta. Isso é, quando tiver vaga, porque ela deve atender muito ainda, não é?
-Nossa, que alívio! Antes, eu sentia nojo dela e de mim. Passou. O meu nojo é por você, só por você. E se você for homem, como diz que é, nunca mais olha na minha cara- Raffael recolhe os sapatos e atravessa a rua.
Bernardo chora diante da reação do filho, mas não se intimida e repete os passos dados pelo engenheiro.
-Olha aqui!- grita enquanto atravessa a rua, mas Raffael não se vira- Se você acha que vai viver com aquela mulher, você tá muito engana...
Raffael ouve o impacto de um carro, que atropela Bernardo.
-Pai!- corre para vê-lo, agonizando em uma poça de sangue.

...

Ainda na sala de estar da casa de Bernardo, Yanna analisa o dossiê entregado por Sílvia.
-Quanto mais eu leio, mais eu me surpreendo com meu pai.
-Yanna, eu sei que tudo é muito difícil de digerir, mas eu tinha que contar a verdade.
-Eu vou ligar pro Cadu, o meu amigo que ajudou a produzir o CD, e contar o que aconteceu- Yanna se levanta do sofá.
-Espera, filha. Eu quero falar com você ainda.
-O que foi, Sílvia?
-Sei quer tudo ainda é muito recente, que talvez não seja a melhor hora pra falarmos a respeito disso, mas... Mais uma vez, eu quero te pedir perdão. Quero que você me perdoe pelos anos que me ausentei, pela responsabilidade que não quis ter com nenhum dos meus três filhos, mas... A vida cobrou muito caro de mim e do seu pai.
-Sílvia, não é de uma hora pra outra que o meu perdão vem. Já faz cinco anos que você vem tentando, eu tenho que reconhecer. Mas por mais que eu ore, eu não consigo te dizer que eu te desculpo... Embora eu, dentro de mim, já tenha te perdoado milhões de vezes.
-Nunca vou conseguir apagar o meu passado. Mas eu preciso construir o meu futuro, e não conheço ninguém melhor do que vocês. Claro, eu não posso ser hipócrita de negar que o Bernardo soube colocar nossos filhos do caminho do bem.
-Só que, pelo visto, nossas vidas são assim por uma questão de livre-arbítrio. Todos os dias, eu tento reconhecer aquele homem que nos abraçava na infância pra gente não chorar. Hoje, o que eu vejo é um adulto duro, intransigente... Não existe mais possibilidade de diálogo com ele.
-O que está pensando em fazer, minha filha?
-Por enquanto, eu só quero resolver o problema da distribuição dos CDs. Depois disso, eu não fico mais aqui, por mais que ele exija ou peça.
-Desculpem interromper a conversa de vocês.
-Fala, Tio. Tem novidades do Raffael?
-Sim, ele está no hospital.
-Meu filho? O que foi que houve com Raffael?
-Com ele não aconteceu nada, Sílvia. Ele está acompanhando o Bernardo.
-Mas o que meu pai tem?
-Yanna, você vai ter que ser forte.

...

Osmar dorme no quarto em que está Kim, também adormecido. Lucas volta para o hospital cabisbaixo, e sem fazer barulho. Primeiramente, olha para o pai. No entanto, ouve um ruído contínuo: o monitor cardíaco mostra que não há mais batimentos em seu filho.
-Kim? Não pode ser... Não, não pode ser!

...

Bernardo segue caminhando pela calçada e vê que nasce rapidamente um gramado no asfalto da rua em que está. Logo, os carros que estão estacionados dão lugar às mais belas flores que existem, e as vidraças dos prédios refletem o azul do céu, cada vez mais forte.
Uma criança anda calmamente na mesma calçada, atrás do dono da transportadora. Repentinamente, segura a mão de Bernardo.
-Quem é você?
-Kim. E você?