-Linfoma? O meu filho tem um linfoma?
-Sim. Foi esse o resultado dos exames que eu
pedi pra fazer com o Joaquim.
-Não tem chance de ter dado errado?
-Impossível. O laboratório é de extrema
confiança. Esse é o diagnóstico.
-Meu Deus... – Lucas leva as mãos à boca e
anda em círculos- Mas como foi isso?
-A dor no peitoral que ele vinha sentindo, a
magreza que Joaquim apresentava...
-Mas pode ser anemia, né? Também é problema
no sangue! Eu lembro que Kim já teve, eu tenho um remédio lá em casa que eu
dava e ele...
-Agora não é uma questão a ser tratada
caseiramente, esperando um efeito imediato. Seu filho tem que ser levado a um
especialista da área.
-Não pode ser... Meu filho não pode estar com
isso.
-O que eu posso dizer é que você não deve
perder tempo. Infelizmente não podemos tratar disso aqui, não temos estrutura.
-Me diz uma coisa... Pra onde eu vou agora
com ele?
-Eu vou pedir um encaminhamento pra Oncomed.
Só que você tem que ir o quanto antes.
-Por quê? Tá tão grave assim?
-Não dá pra negar que Joaquim não apresentou
sintomas mais graves. Mas isso não deixa de significar que os índices estão bem
alarmantes.
-Tá... E eu falo com quem?
-Qualquer um da área do setor infantil. Se eu
não me engano, o melhor que tem lá é o Dr. Fábio Duarte. Além disso... Só nos
resta torcer pra que tudo dê certo.
-E orar também.
-Eu sinto muito, não queria ser o portador
dessa notícia.
-Tranquilo. Obrigado por me dizer a verdade,
Doutor. Eu posso ficar com o exame?
-Claro- entrega-lhe o envelope- Aconselho a
ir já amanhã de madrugada mesmo pra fila. Não são todas as crianças que
conseguem um tratamento lá na Oncomed.
-Tá bom. Obrigado- sai da policlínica,
devastado.
...
-Não ouviu minha pergunta? O que é que você
está fazendo aqui?
-Bernardo, por favor, olha onde nós estamos.
-Tudo bem, Miguel. Não precisa apaziguar
nada, porque não vai haver discussão nenhuma. Eu vim fazer o mesmo que você,
Bernardo: prestigiar o meu filho. Afinal, eu sou a mãe dele, não é?
-Você não se toca mesmo, não é, Sílvia?
-Raffael!- Yanna se incomoda com o tom de voz
adotado pelo irmão.
-Faz cinco anos que você faz esse teatrinho
de mãe arrependida. Isso não cola comigo. Não vai funcionar nunca. Se você
ainda não conseguiu se aproximar de mim, é porque eu não quis. Eu não deixei.
-O que acontece é que você e a sua irmã são
influenciados pelo Bernardo.
-Alto lá. Não trate meus filhos como se
fossem crianças. Eles estão bem diferentes da vez que você os abandonou.
-Para! Para de ficar jogando na minha cara
que eu deixei meus filhos pra trás! Será que vocês não percebem que eu me
arrependi? Que eu quero reparar o erro que eu cometi, o mal que eu fiz?
-A gente até acredita mesmo que você queira
se reaproximar. Mas se depender de mim, pode desistir. O tempo de sentir a sua
falta passou, Sílvia. Se você sumir, não vai ser um favor que você me faz, faz
a você também. E se eu devo alguma coisa do que eu me tornei hoje, é ao meu
pai. Nunca a você.
-Sílvia, vai embora, por favor. Não estraga a
noite do seu filho- Miguel pede.
-Mais uma tentativa frustrada minha, não é,
Miguel? Eu devia saber que eles ainda
são um joguete nas mãos do seu irmão.
-Essa é a sua justificativa para a rejeição
dos seus filhos? Não seja tola, Sílvia. Sem mim, eles continuariam ressentidos
com você. Aceite de uma vez: não existe mais um espaço seu no coração deles.
Vai embora daqui.
Silvia se retira do auditório, abalada.
-Obrigado, Pai.
-Não se preocupa, Raffael. Ela não vai mais
atrapalhar as nossas vidas. Eu sempre vou estar por perto- Bernardo abraça o
filho, de maneira fria, causando estranhamento em Yanna e em Miguel.
...
O Dr. Fábio, responsável pelo setor infantil
da Oncomed, refaz os exames de Kim na manhã seguinte. Pai e filho esperam por
boas notícias.
-E então, Doutor? O outro médico deu o
diagnóstico errado?
-Pelo contrário. Ele foi eficiente em
identificar o problema. Seu filho tem mesmo um linfoma.
-Linfoma? O que é isso?
-É... Depois seu pai te explica, Kim. Fica
quietinho. O que é que a gente faz agora, Doutor? Minha vida é apertada, eu não
tenho como pagar um tratamento pra ele...
-A Oncomed tem um convênio com o sistema
público de saúde. Não precisa se preocupar com dinheiro. Só que, infelizmente,
há vezes que acabam os medicamentos aqui e demoram pra mandar.
-Kim vai ter que ficar internado?
-Eu? Aqui?
-Infelizmente não há como submeter o Joaquim
a algum tratamento caseiro no estágio que ele está. Seu filho vai ter que
passar por uma quimioterapia.
-Tá... Por quanto tempo?
-Isso vai depender de como ele vai reagir ao
tratamento.
-Mas isso tem algum efeito colateral?
-Tudo irá de acordo com a resposta do
organismo do Joaquim. Por sorte, uma vaga do setor infantil ficou vaga.
-O que aconteceu?
-Uma criança morreu esperando uma medula
óssea ser compatível.
-Ah...
-Pai, eu vou ficar aqui sozinho?
-Claro que não, meu amor. Eu vou com você pra
qualquer lugar.
-Sozinho você não vai ficar, Joaquim. Aqui
tem muitas crianças.
-Pois é, Kim. Não vai faltar gente pra você
brincar.
-Por que o senhor tá triste?
-Eu? Tô triste, não, meu filho- mente Lucas.
-Tá com o olho apertado. O senhor disse que
quando a gente aperta o olho e vira assim de lado é porque tá triste.
Lucas passa a mão na cabeça do filho.
-Eu tô feliz- disfarça- Pelo menos a gente
vai passar mais tempo juntos.
-Dá pra jogar futebol de manhã?
-Hum, acho que... Brincar de adivinhar, jogar
um dominó...
-Ah, vai ser moleza. Eu ganho do senhor
assim- Kim estala os dedos.
-Não vão faltar brinquedos pra você brincar
aqui, Joaquim.
-É Kim!
-Desculpa, é que ele não se acostumou quando
alguém chama ele pelo nome e não pelo apelido.
-Tudo bem.
-E... – Lucas toma cuidado pra que o filho
não o veja lacrimejando- Pra que lado eu vou agora?
-Você vai passar na segunda sala à direita e
falar com a Dra. Lacerda.
-Não é o senhor que vai cuidar dele? O médico
disse que o senhor é muito bom.
-Tenho dividido o núcleo das crianças com
outra médica, recém-formada. Pode ficar tranquilo, ela é muito boa.
-Tomara que ela cure meu filho. Melhor:
tomara que Deus use ela pra curar meu filho.
-Curar de quê? Eu não tô dodói, não.
A negativa de Kim deixa Lucas sem resposta.
...
O almoço de Bernardo com os filhos prometia
ser tranquilo...
-Hoje você foi pra onde, filho?
-Passei no Corpo Discente pra iniciar o
processo de emissão do meu diploma. Acho que não vai demorar tanto.
-Falando em diploma, Yanna... Você já se
formou há um tempo na faculdade, até mestrado andou fazendo e... Quando é que
você vai arrumar um emprego?
-Qual foi, Pai? Tenho te dado tanta despesa?
-O que você gasta não me incomoda. Só acho
que é muito estranho você não ter se empregado justamente na área que você
escolheu, a Música. Mas eu preferi me calar. Vai que você diz que eu boto
pressão pra assumir minha empresa e...
-Quanto a isso, pode ficar tranquilo. Eu vou
trabalhar com Música, e não me arrependo da minha escolha até hoje. Nem pretendo
me arrepender, se é isso que te preocupa.
-Que ótimo...
-E o que você vai fazer? Trabalhar na
produção de algum disco?
-Contanto que não seja mais um no meio da
overdose de sertanejo universitário, pra mim está ótimo.
-Não, Pai, não é a minha praia. Eu tinha até comentado
por alto uma vez, mas... Eu tô envolvida na produção de um disco, junto com um
amigo da faculdade, Cadu.
-Tá, mas qual é o gênero, Yanna?
-Gospel, Fael.
-Olha aí... Logo o que você mais gosta de
ouvir. E quando é que vocês vão chamar o artista pra gravar?
-Ela já gravou. Sou eu.
-Como é?- Bernardo se surpreende.
-Você gravou um disco gospel?
-Gravei. E só tô esperando o Cadu finalizar
pra mostrar o resultado pra todo mundo.
-Que mal lhe pergunte... Eu posso saber como
você financiou esse disco?
-Com o dinheiro da minha poupança, é lógico.
-Às escondidas? Sem contar nada pra ninguém?
-Eu sabia que você não ia confiar em mim pra
isso.
-Pelo contrário, Yanna. Eu confio muito em
você. Não confio mesmo são nesses crentes, que adoram explorar a fé dos outros.
Qual é o próximo passo? Bordar seu nome numa toalhinha e vender dizendo que tem
unção? Ora, por favor, Yanna! Você tá jogando meu dinheiro no lixo!
-Meu dinheiro. Quantas vezes eu te pedi algum
centavo pra financiar a primeira tiragem? Quando que eu te pedi?
-Gente, calma, não precisa desse clima
todo...
-Precisa, sim, Raffael. A gente só é a melhor
família do mundo quando acata todas as ordens dele. Experimenta fazer o que
você quer pra ver se ele te apoia.
-E o que você quer, filha amada? Ser trilha
sonora da vida de um monte de bitolado? Desculpe, mas eu realmente achei que
você fosse mais inteligente.
-Talvez eu seja mesmo. Porque estou tentando
me livrar das suas amarras.
-Vamos lá: você usa o dinheiro da sua poupança
pra financiar um disco, grava-o às escondidas como se fosse uma bandida, cursa
uma faculdade em detrimento das minhas sugestões e ainda precisa se livrar das
minhas amarras?
-Sim. As da culpa. A culpa que você põe em
cima da gente sempre que a gente pensa em agir diferente do que você quer. Tem
hora que eu penso que não tenho pai, e sim um programador! Se eu gravei um CD
de música gospel, é porque eu quis compartilhar com outros aquilo que eu acredito.
Será que é tão difícil pro senhor entender que eu sou dona da minha vida?
-Não. Como também não é difícil de supor que
isso não vai dar certo.
-Então, me deixa quebrar a cara.
-Você ainda vai desistir dessa ideia, escreve
o que estou dizendo.
-Porque o senhor quer?
-É, porque eu quero!
-Pode parar com a ditadura, Pai. Eu já sou
adulta o suficiente pra saber o que eu faço.
-Filhos não crescem nunca, pra pai nenhum.
-Então, me faz um favor: para de me colocar
numa redoma. Me deixa respirar, tá bom?
-Não dou seis meses pra você se arrepender
dessa empreitada.
-Isso tudo é o quê? Já não basta preconceito
contra negro, agora quer ser intolerante a protestante também? Daqui a pouco,
nem o Tio Miguel te aguenta.
-Já você não me suporta, não é? Faz o seguinte:
a porta da rua não é serventia da casa, mas você pode muito bem abri-la e se
reconciliar com sua amorosa mãezinha, que tal?
-Deixa de ser fazer de vítima, Pai...
-Eu sou a única vítima, Raffael! A única!
Sabe de uma coisa? Eu não tenho mais apetite, vou pro meu quarto trabalhar!
-Pode ficar. Quem vai sair sou eu, Pai. Chega
de deixar a gente sozinho no almoço só porque não aguenta ouvir as verdades que
eu digo. Fica à vontade, a comida tá do mesmo jeito: deliciosa, mas amarga até você
abrir a boca- Yanna joga o guardanapo sobre a mesa e se retira.
-Agora me diz, Raffael: eu posso como uma
coisa dessas? Posso?
...
Lucas e Kim abrem a porta e encontra um leito
vazio, perto da janela. Uma pessoa de costas está com a mão esquerda encostada
à pia. Do lado direito, dois frascos de tinta guache e a mão direita levantada.
-Com licença. Eu tô procurando a Dra.
Lacerda.
-Está falando com ela- vira-se, com rosto
pintado e o nariz de palhaço- Muito prazer. Amanda Lacerda.
Esta é exatamente a mesma Alice que conquistou
Raffael no passado. A jovem aperta a mão de Lucas.
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