28/10/2016

ONZE MIL/ CAPÍTULO 12

-Quem te disse isso?
-O pai dele.
-Você foi visitar aquela criança na pocilga onde ela, o pai e o avô moram? Eu já não disse que não quero saber de vocês se aproximando dessa corja?
-Querendo ou não, o Kim é seu neto.
-Ele é filho da Maria Carolina, o que pra mim é muito diferente. Se eu fui obrigado a ver minha filha sendo tirada de mim, por que eu não posso colocar essa extensão da ilusão que sua irmã tinha no túmulo, junto com ela?
-Porque o Joaquim não é uma ilusão. Ele existe, e está à margem da nossa família há cinco anos.
-Você ainda não me respondeu por que foi procurar aquele lá.
-Não fui procurar o Lucas, e também como eu encontrei ele não interessa. Mas o Kim tá internado na Oncomed, passando por um tratamento quimioterápico.
-Melhoras pra ele, então.
-O senhor só vai dizer isso?
-Que tipo de personagem você quer que eu encarne, Raffael? O avô amoroso? Que passa por cima do seu passado apenas para presentear o netinho com amor incondicional?
-Até hoje você culpa esse menino pela morte da Carol.
-Ele não é culpado, o pai que é. E pela educação que ele deve receber, não duvido nada que se torne um cretino quando crescer.
-Ah, por favor, Pai!
-Falei alguma mentira?
-Como se você estivesse muito interessado na criação desse menino! O senhor não fez questão nenhuma da guarda do Kim quando ele nasceu porque se o Lucas é culpado, e ele é filho do Lucas, tem tanta culpa quanto o pai.
-Viu só? Bastou pouquíssimo tempo dialogando com aquele indivíduo e você já está aí, me peitando. Acontece que eu não sou seu coleguinha de faculdade, com o qual você usa o tom que te convém! Aprende a ser homem, Raffael! Já passou da hora de você deixar de se sensibilizar com qualquer coisa que te digam!
-Homem como quem? Posso saber?
-Olha aqui, você não me provoca!
-O errado aqui é o senhor! Bota isso na sua cabeça!
-Já acabou?
-Não, ainda não! Se o senhor já se esqueceu, eu vou te dizer o que é ser homem. É se importar com o próximo, é ser sincero, é ter hombridade...
-Ah, pode me poupar desse discursinho barato. Você não resolve seus problemas e quer que arque com os delírios que culminaram na morte da sua irmã?
-Que problemas eu tenho pra resolver?
-Você se enfurna debaixo dos livros e não quer saber de namorar, de ter uma mulher, de levar uma mulher pra cama... Se tem uma verdade é aquela que você admitiu pra sua mãe: sem mim, você não seria nada. Só falta admitir essa verdade pra si mesmo.
-A minha vida particular não interessa a mais ninguém além de mim.
-A mim também interessa. Porque a criação que você recebeu não inclui um comportamento de maricas, que se comove, que chora. Filho meu tem que ser macho, entendeu?
-Sobretudo humano!
-Para de palhaçada!
-Pois eu vou dizer uma coisa, Pai: se você tá esperando que eu arrume uma mulher que agrade, antes de mais nada, a você, desista.
-Você se apaixonou uma única vez, pela moça que fazia cursinho com você, e depois que ela sumiu da sua vida, por quem mais você se interessou? Hein?
-Realmente, eu não imaginava que a minha vida sexual foi um prato cheio pra suas insinuações e preocupações. Quer usar isso pra me atacar, Pai? Pois eu vou dizer em alto e bom som: independentemente do que você pensa a meu respeito, eu sei o que é ter uma mulher e sei o que preciso pra colocar uma na minha cama. Ao contrário de você, que mesmo tendo três filhos com uma mulher, conseguiu fazer com que ela escapasse.
Bernardo tenta bater no filho, mas é impedido por Raffael, que age mais rapidamente.
-Nunca mais fale comigo desse jeito, porque eu ainda sou o seu pai!
-E você não me subestime nunca mais, ouviu bem? Aqui, e em qualquer lugar, eu sou seu filho, e não uma marionete sua! Você faz o que bem entender com a informação que eu te dei- solta o braço de Bernardo- Com licença.
-Sabe o que fazer pra colocar uma mulher na cama... Se soubesse que eu tive que pagar por isso, nunca mais arrotava hombridade na minha cara.

...

Amanhece um novo dia. Lucas cochila um pouco, assim como Kim, e Alice aproveita pra administrar novas doses dos medicamentos.
-Como é que ele tá, Amanda?
-Sob os efeitos da quimio, como o esperado. Por causa do linfoma, Kim já vinha apresentando uma perda de peso muito rápida. Agora, é possível constatar também uma anemia.
-Reparei que tinha um menino ao lado do Kim esses dias. Esqueci até o nome...
-Fernando. O Nando já tava aqui há mais de um ano, também tinha passado pelo tratamento de quimioterapia.
-Tinha?
-Morreu ontem à noite.
-Ai, meu Deus...
-Por favor, Lucas, não fica desesperado. Isso não é bom pro Kim.
-O bom é tirar o meu filho daqui. Os dias estão se passando e eu só vejo Kim piorar. Isso porque eu tô há poucos dias nesse hospital. Quanto tempo mais ele pode passar na Oncomed? Meses? Anos? E se ele não conhecer a cura?
-Você pode garantir a felicidade do seu filho, Lucas? Responde pra mim! Você pode garantir? Ninguém é super-herói aqui, mas a gente não pode esmorecer. Nem deixar ninguém esmorecer, principalmente quem a gente ama.
-Desculpa, mas você fala de um jeito...
-Desde criança, eu via o mundo me tirando todas as oportunidades possíveis de ser feliz. Eu fiz coisas condenáveis, Lucas, mas a única que sofre com o meu passado sou eu. Quando eu entrei pra Medicina, eu quis ser uma pessoa igual às outras. Pra mim, não existia essa de fazer a diferença. Eu era diferente de todas que eu conhecia, mas não era algo que me desse orgulho, que me engrandecesse como mulher. Quando eu vi que isso podia machucar os outros, resolvi me enxergar do outro lado. Decidi me ver do lado de quem realmente precisa de ajuda. O mais importante de tudo é que, embora eu não consiga apagar o meu passado, eu posso dar um sopro de esperança a quem não tem- passa a mão no rosto para enxugar as lágrimas- Mas eu não sou a mãe deles. Eu preciso da ajuda deles, da ajuda dos pais, da sua ajuda. Porque embora eu não devesse me envolver tanto, é um pouco de mim que vai embora quando eu perco uma batalha.
-Cara, eu... Não sei nem o que dizer depois de tudo que você me falou.
-Kim não quer respostas suas. Quer alguém que o ajude a acabar com as dúvidas.
-O que eu faço, Amanda? Faço ele entrar numa fantasia, digo que é uma aventura que termina com ele vivo e com saúde?
-Só não morra antes dele, por favor. Não morra em vida.
-Se ele não se salvar, Amanda... Eu vou morrer mais uma vez. Antes disso tudo acontecer, já era uma batalha. O Kim foi a melhor coisa que me aconteceu, mas eu tive que perder alguém pra ganhar meu filho.
-Tá falando da mãe dele?
-É. A Carolina.
-Pra ele, quando descobriu que a mãe não tava do lado, como você acha que foi? Se você não colocar um sorriso no rosto dele, ninguém vai conseguir.

...

-Por isso que eu vim te procurar aqui no escritório, Pai. Espero não ter te incomodado.
-Meus filhos nunca são incômodo, apesar de tudo.
-Tudo o quê?
-Tudo que vocês ignoram da minha boca. Mas me diz uma coisa, Yanna: realmente não sobrou nada dos caminhões?
-Nada. Cinzas.
-Por mais que você não acredite, eu sinto muito. E também te agradeço pela confiança de me contar todos os detalhes.
-Aí é que tá. Não foi só pra desabafar que eu vim aqui. Vim te pedir ajuda.
-Claro. Claro que eu vou te ajudar, meu amor. Inclusive, você sabe que eu conheço alguns empresários do ramo, e eu posso indicar seu nome.
-Pra quê, Pai?
-Pra trabalhar com produção musical, que é a sua área.
-Ficar atrás de uma mesa de mixagem? É isso que você acha que eu tenho só pra oferecer? Pai, eu gravei um disco.
-Uma empreitada que fracassou, minha querida.
-Fracassou, não! A crítica e o público não sabem nem que eu existo, porque roubaram os meus discos! Eu tenho que pagar à gravadora pra ela produzir uma nova remessa.
-Quer dizer que você ainda não desistiu desse devaneio?
-Não.
-Então, OK. O que é que você quer?
-Um empréstimo.
-Por quê? Os caminhões da gravadora não estavam no seguro?
-Sim, tavam, mas eu paguei pelos mais de dez mil CDs. É isso que me preocupa. Investi o dinheiro da poupança nisso.
-À toa, pelo visto.
-Tá bom, para! Para de me provocar, de dizer que tava certo o tempo todo, porque não tava, não!
-Nossa, quanto nervosismo! Jamais pensei que veria tamanha agressividade. Mas tudo bem. O que é que você quer de mim, Yanna?
-Já disse. Um empréstimo. Pra pagar à gravadora por uma nova leva de discos.
-Você vai continuar insistindo nessa loucura de comercializar disco pra crente?
-Chega! Chega! Sabe de uma coisa? Se você não quiser me ajudar, é um direito seu, mas eu vou vender esse disco contra a sua vontade.
-Se ele foi gravado contra a minha vontade, colocar numa lojinha de artigos evangélicos é o quê pra você? Nada! Absolutamente tudo que eu falo entra por um ouvido...
-Eu já disse pro senhor parar...
-Você não exige nada! Não pede nada! Quem dá as cartas, inclusive da sua poupança ungida, sou eu aqui! Acorda, Yanna! Você e seu irmão só têm pernas porque eu os ensinei a usar! Não vou financiar suas aventuras no mundo gospel, desista!
-Do meu sonho, Pai? Eu desisto de você. Não tenho mais nada pra fazer aqui, não devia nem ter ouvido o conselho do Tio Miguel. Mas enquanto eu tiver força pra botar o joelho no chão e pedir a Deus que me traga o milagre que eu...
-Milagre? Oração? Você ainda vai apelar pra isso? Olha, Yanna, só pra você saber: a última oração que eu fiz foi pra que seu deus tirasse a minha filha de uma UTI! Não me venha ensinar sobre o que é ter fé! Porque se a sua fé foi tão grande assim, nem um só bandido tinha encostado o dedo em nenhum dos caminhões, tá bom? E se estiver insatisfeita, adote Tio Miguel, que tem vocação pra abraçar causas humanitárias. Eu sou carrasco! Ruim! Agora, se não for muito incômodo, volte pra sua casa.
-Obrigada pelo apoio incondicional.
-Em mim, você encontra verdade. Apoio não.

...

Sílvia recebe um detetive no quarto de hotel que está hospedada.
-Por favor, tenha a bondade de entrar.
-Com licença.
-Fique à vontade.
-Obrigado, Dona Sílvia.
-Me diz então: o que conseguiu descobrir a respeito do assalto aos dois caminhões?
-Antes de mais, me permite fazer uma pergunta?
-Claro. Do que se trata?
-Qual o seu interesse nesse caso?
-Minha filha gravou um CD e ele foi confeccionado pela gravadora, que pretendia distribuir todas as cópias disponíveis. Ela está muito abalada com o acontecido e eu quero ajudá-la de alguma forma.
-Agora eu entendo. E entendo também que tanto a senhora quanto ela vão se surpreender.
-Por que diz isso?
-Coloquei um dos meus informantes pra dar uma prensa numa pessoa que trabalha numa transportadora, a RYC.
-Sinceramente, não entendo. O que essa empresa tem a ver com o roubo dos onze mil CDs?
-Literalmente falando, o órgão não tem nada a ver. Mas uma pessoa contou que foi instruída a participar do assalto aos dois caminhões. Imagino que a senhora queira entregar as provas do depoimento às autoridades.
-Não sem antes descobrir por que destruíram todos os discos da minha filha Yanna. Só depois eu vou decidir o que fazer.
-Antes de mais nada, eu aconselho que a senhora entre em contato com sua filha o quanto antes.
-Agora o senhor me deixou preocupada.
-Sim. É para ambas ficarem.

...

Para alegrar as crianças, Alice vai até a sua sala e volta a usar frascos de tinta guache e alguns pinceis. Mas ao abrir uma das tinturas, vem à sua memória uma cena protagonizada por ela e Lucas, especificamente quando o pai de Kim dava informações sobre o filho no dia da internação.


-Me diz o nome completo dele pra eu preencher a ficha aqui na prancheta.
-Joaquim Mutarelli Siqueira.
-Mutarelli...


Em outro momento, Alice recorda de parte do diálogo que teve com o rapaz pela última vez, quando ele estava desesperado pelos efeitos da quimioterapia que Kim apresentava. Ao mesmo tempo, entra uma pessoa na sala sem que ela se dê conta.


-O Kim foi a melhor coisa que me aconteceu, mas eu tive que perder alguém pra ganhar meu filho.
-Tá falando da mãe dele?
-É. A Carolina.


-Carolina... – pensa- Mutarelli?- agora fala em alto som.
-Agora não me chama mais pelo nome, Amanda?- pergunta Raffael, pensando que ela o viu entrar pelo espelho que usava para se caracterizar.
-Raffael? O que você tá fazendo aqui?
-Faz uns dias que eu te vi na rua, entrando aqui. Pensei que a sua lembrança já tinha morrido, mas bastou você me aparecer depois de cinco anos que eu me esqueci.
-De quê?
-De te esquecer.
-Olha, Raffael, é melhor você sair, o médico pode chegar e...
-Se olha no espelho. Repara nessa sua cara de desespero, de quem não sabe o que dizer pra mim.
-O que a gente tinha pra acertar, falamos há cinco anos.
-Você falou. Botou pra fora, tudo que quis. Só que eu não me convenci, nem você.
-O que você quer? Que eu te jure amor eterno?
-Que você seja sincera com nós dois, porque você sumiu da minha vida antes que eu dissesse que tudo que eu ouvi era mentira.
-Não é possível que você resolveu questionar o que eu disse há anos. Raffael, eu me aproximei de você por dinheiro, nada mais que isso. Não era justo você sofrer por minha culpa.
-Tá, mas e agora? É justo, Amanda?
-Quando eu decidi sair da sua vida, eu me dei conta de que você tinha se apaixonado por mim. E eu não tinha direito de machucar ninguém com um amor que eu podia dar, mas que nenhum homem queria que eu retribuísse.
-Como é que você sabia se eu ia te desprezar ou não? E por quê? O que tinha de tão errado em você que a gente não podia ficar junto?
-Eu não fui sua primeira mulher por acaso.
-Que papo é esse agora?
-Raffael, eu fugi de você e de mim mesma pra nunca ter que contar a verdade, porque esse segredo tava me machucando.
-Fala o que é!
-Eu desisti de você porque... Porque eu era garota de programa.

...

Kim tira do travesseiro os fios de cabelo que caíram.
-Filho, deixa isso aí. Daqui a pouco a moça da limpeza vem tirar.
-Pensei que depois do remédio passasse.
-Você tem que ter paciência, Kim.
-Todo mundo fica com o "cucuruto" sem cabelo?
-Só quando fica velhinho- brinca- Não é melhor cortar tudo? Pelo menos não vai cair mais.
-Mas eu vou ficar feio.
-Fica nada. Você é meu filho, esqueceu? Não vai ficar feio nunca.
-Por isso, Pai.
-Como assim, Seu Joaquim?
-Se eu cortar, vou ficar diferente de você.
-E se de repente a gente ficar parecido?
-Mas você todo cheio de cabelo e eu careca?
-Só tem um jeito: a gente faz um trato.
-Que trato?                                                  
-Você e os outros meninos vão cortar meu cabelo.
-Sério?
-Mas ó: só se me deixar cortar o seu também.
-Assim, eu quero.
-Topou?
-Chega batendo- Kim bate na mão do pai, entusiasmado.

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