23/10/2016

ONZE MIL/ CAPÍTULO 7



-Sabe, você precisa ver sua cara de decepção nesse exato momento. O golpe do pai cauteloso foi um tiro pela culatra. Achou mesmo que esse bastardinho ia despertar alguma coisa em mim?
-O que o senhor pensa de mim ou acha dessa criança não me interessa!
-Não mesmo? Quer dizer que nem por um só segundo você acreditou que eu me prontificaria a cuidar desse moleque ao seu lado?
-Tá na cara que o senhor não ia querer mesmo um negro entrando e saindo da sua casa, convivendo com sua família.
-Ainda bem que você reconhece a verdade.
-Só que se dependesse de mim, eu também não ia querer conversa contigo. Acontece que Carol pediu pra nós dois pra cuidar desse menino.
-Pois então? Você não ama a minha filha? Prove! Mas não pra mim, e sim pro mundo. Se você realmente adora essa família de fachada, fadada desde sempre ao fracasso, constituída por um jovem que não tem onde cair morto, um recém-nascido e uma lembrança, passe a sustentá-la. Eu, Bernardo, me isento de toda e qualquer responsabilidade de avô. Coloque na certidão dele nome da mãe, da filiação dela inteira! Mas um centavo meu, você não tira!
-Quer saber? É um favor que o senhor me faz!
-Quanta dignidade...
-Mais do que o senhor, eu tenho.
-Disso eu duvido.
-Pensa que eu me esqueci que o senhor proibiu minha entrada no enterro da Carolina?
-Fiz pra não esquecer! E digo mais: coloquei um segurança no jazigo da minha família. Perto dela você não chega, nem depois de morta!
-Nem o senhor.
-Olha aqui, é melhor você parar de me provocar...
-Senão o quê? O bandido, a alma sebosa, o que não é de confiança sou eu. Fica até mal pro senhor conversar com gente que nem eu.
-Pra quê esse drama? Pra quê se fazer de vítima? Eu não terminei com seu relacionamento com Carolina! Foi você.
-Disso eu não posso te culpar! Quem terminou fui eu porque sabia que ela merecia alguém melhor do que eu. Mas se você não tivesse obrigado a ir embora, eu tinha cuidado desse bebê desde o começo. Ela fugiu nervosa, com medo, pronta pra me dizer a verdade. Pra mim, você é tão culpado da morte dela quanto o motorista daquele carro.
Furioso, Bernardo agarra Lucas pela gola de sua camisa.
-Pois pra mim, era você que tinha que morrer naquele dia! Não o motorista! Não a minha filha! Foi por sua causa que ela fugiu!
-Fugiu por você! Acha que desprezando o neto vai se livrar da tua culpa? Mas não vai, não!- Lucas é solto pelo empresário.
-Tomara que você sofra o tanto que eu sofri! Só assim, seu bostinha, você vai saber o que é ser pai!
-O que é? Tá desejando a morte do meu filho agora?
-Dele, não. Porque ele não tem culpa! Aliás, tem! Mas eu prefiro ver você definhando, sofrendo sem saber se teu filho vai acordar ou não, como eu passei com a minha Carolina! A única coisa que eu quero de você é o mesmo que você fez com ela: em vez de amar essa criança, minta! Invente que eu morri. Porque eu enterrei esse bebê no túmulo há uma semana- Bernardo se retira da policlínica.
-Se depender de mim, ele nunca vai saber de você. Miserável.

...

Ao chegar a sua casa, Bernardo é recepcionado por Miguel.
-Onde é que você tava?
-Nossa mãe morreu há muito tempo pra alguém ficar me fiscalizando, Miguel- entra em casa- O que foi que houve pra me receber já na porta?
-Tem uma visita pra você.
-Pode dizer que eu não estou pra ninguém- sobe às escadas.
-Sou eu, Bernardo.
-Sílvia?
-Eu vou sair, pra deixar vocês dois à vontade.
-Pode ficar, Miguel. Eu só vou me sentir à vontade quando essa mulher sair daqui. O que é que você quer na minha casa?
Sílvia surpreende os dois irmãos ao esbofetear o ex-marido. Miguel a detém.
-Como é que você teve coragem de fazer isso comigo? Mandou a minha filha pro exterior? Viu ela à beira da morte, acidentada, enterrou e não teve a dignidade de me telefonar pra contar o que estava acontecendo?
-Dignidade, Sílvia, é a última coisa que você pode me cobrar! Afinal de contas, a gente não cobra dos outros aquilo que não tem!
-Como é que você pode ser tão desumano, Bernardo? Como é que você acha que eu me senti sabendo que a minha filha morreu por um portal de notícias?
-Você abandonou seus três filhos, Sílvia! O que você quer? Condolências e pêsames a você quando Carolina fosse parar numa cova?
-Mas eu tinha o direito de saber! Eu não deixei, em nenhum momento de amar meus filhos!
-No entanto, passou anos sem dar um único telefonema pra saber deles. Não foi você que faltou a compromissos profissionais quando eles estavam doentes, não foi você que supervisionava tudo pra que eles fossem cidadãos respeitáveis, de bem, que não devessem nada a ninguém. A dor pela perda da Carolina pode até me matar, mas só eu tenho o direito de sofrer!
-Fique sabendo que eu vou reconquistar o amor dos meus filhos, quer você queira, quer não.
-Não seja imbecil! Por mais que você tente, não é capaz de preencher o vazio que fez questão de deixar. Carolina, Raffael e Yanna são órfãos de mãe. Coloque isso na cabeça!
Yanna e Raffael assistem à discussão.
-Meus amores...
-Acho melhor vocês irem pro quarto.
-Miguel tem razão. Poupem-se dessa cena lamentável. Ou melhor: é bom que estejam aqui. Vão ouvir porque eu só vou dizer uma vez: estão proibidos de se aproximar dessa mulher, que se diz mãe dos dois.
-Eles não são mais crianças, Bernardo.
-Não interessa!- grita, assustando a todos- Você não existe pra nós, e assim vai continuar sendo, Sílvia. Fora da minha casa.
-Você não pode fazer isso comigo. Eu também sofro com a morte da nossa filha...
-Sílvia, eu vou ter que chamar a segurança ou você vai sair por conta própria?
-Some daqui- Raffael pede- A gente não precisa de você. Nunca precisou.
-Ouviu? Fora daqui. Eu não quero ver você na minha casa, nunca mais! Some da vida dos meus filhos. Meus!
-Eu não vou desistir de vocês. Não vou- Sílvia é solta por Miguel e sai da mansão.
-Se alguém perguntar por mim, Miguel, minta dizendo que eu não estou. Impeça estranhos de entrarem aqui- Bernardo se dirige ao quarto.

...

O quarto de Yanna, onde a universitária está com Raffael, é o cenário de outra situação difícil. Os dois estão sentados na cama, enquanto o estudante continua mexendo insistentemente no celular.
-Pra quem você tá ligando desde hoje?
-Pra Amanda. Aliás, tô ligando desde que isso tudo aconteceu, mas ela não me atende.
-Será que ela tá com algum problema?
-Tá muito estranha. Desde antes eu já tinha sacado que tinha alguma coisa no ar. Mas ela não quis me dizer- tira o celular da orelha- Olha aí! Fora de área. Parece até que tá desligando pra não me atender.
Bernardo abre a porta do quarto de maneira violenta e assusta os filhos.
-Estão avisados: se aquela mulher tentar algum tipo de aproximação, não a deixem chegar perto. Ouviram?- fecha a porta.
-Você acha que ela vai mesmo...
-Se ela quiser, não vai conseguir. Pelo menos se depender de mim. Essa mulher deixou a gente sozinho quando criança, foi morar no Estados Unidos, nunca deu um telefonema pra saber da gente... Agora que Carol morreu, vem dar uma de boa mãe?
-Sei lá, Fael... Ela me pareceu sincera.
-Isso é arrependimento. Culpa. Só isso.
-Tudo bem, a gente não vai falar mais disso pra você não ficar nervoso. Continua ligando pra ver se Amanda atende.
-Quer saber de uma coisa? Eu vou pro apartamento dela!
-E se ela não estiver?
-Vou esperar. Preciso contar o que tá acontecendo com a gente, e quero saber por que ela tá colocando essa distância entre a gente.

...

O interfone do apartamento de Alice toca.
-Seu namorado está aqui. Posso deixar subir?
-Namorado?
-É, o Fael.
-Ah, sim. Deixa subir. Obrigada- desliga o telefone, apreensiva. Quando Raffael toca a campainha, é outra agonia. Pensa se deve ou não abrir a porta, optando pela primeira alternativa.
-Posso falar com você?- pede, com o coração despedaçado.
-Pode. Eu queria mesmo te ver.
-Aconteceu... Tanta coisa nessa semana. Por que você não me atende quando eu ligo?
-Raffael, eu preciso falar antes de você.
-Fala, então.
-Eu não tinha condições de te encarar, de olhar pra você e contar o que tá acontecendo comigo.
-Tá me deixando até assustado, Amanda. O que foi?
-A gente não pode continuar com isso.
-Isso o quê?
-Nós dois, juntos. Eu quero terminar com você... Ou melhor, eu preciso.
-Terminar? Mas por quê? Eu te fiz alguma coisa?
-Não, quem fez fui eu. Sei que vai ser difícil porque eu sei que você me ama, só que...
-Só que o quê?
-Eu não posso mais enganar você.
-Mas você tá falando do quê, Amanda? A gente tava tão bem...
-Não, você sabe que não. Eu tava distante, e você mesmo percebeu. Eu não posso fazer ninguém feliz se eu estiver mentindo até pra mim mesma, entende?
-Sinceramente, não.
-Tudo bem. Eu vou falar. Isso vai me doer, mas eu não quero que você se iluda, que chore por minha causa.
-Fala. Por que você não quer mais ficar comigo?
-Raffael, eu fiquei com você por dinheiro.
-Dinheiro?
-É. Pela grana do seu pai.
-Agora eu tô entendendo. Você ficou comigo por interesse. Nunca gostou de mim. E como não ganhou nada comigo durante esse tempo que a gente passou junto.
-Não é nada disso, Fael...
-Para! Não precisa vir com essa voz doce, pra conseguir o que quer, não. Ainda bem que você me abriu os olhos. Evitou que eu ficasse mais tempo agindo como um idiota. Sendo um idiota!
-Raffael, me deixa conversar com você.
-A minha irmã morreu, sabia?
-Sua irmã?
-É, a minha irmã caçula. Claro que você não ia saber disso! Porque não me atende, né? Já não tá conseguindo nem me aguentar mais! Se fosse outra, tava do meu lado, se fazendo de boazinha, de compreensiva, mas não. Não consegue nem mentir porque não sente nada por mim. Nem nojo! Pra completar, a minha mãe tá de volta querendo refazer uma família que ela mesma destruiu. E quando eu chego aqui... - Raffael leva as mãos à cabeça e fica de costas para Alice.
-Meu Deus, eu não... Eu não tinha ideia do que tava acontecendo. Se eu soubesse, eu...
-Tinha evitado de me dar um fora agora, né? E depois ia deixar eu quebrar a cara mais tarde. Eu não sei se eu dou um murro na tua cara ou se eu parto a minha, pra ser de ser tão burro!- abre a porta do apartamento.
-Não, Raffael! Não sai assim! Me deixa falar com você- encosta a mão no ombro dele.
-Tira a mão de mim! Encosta no próximo imbecil que você levar pra cama. O que pra você não vai ser muito difícil- Raffael pega o elevador.
Alice deixa a porta aberta e senta no chão, aos prantos, enquanto o rapaz sai desnorteado, sem acreditar na intenção inicial de Alice.

...

Chegou o dia da alta do filho de Lucas e Carolina. Joaquim coloca o recém-nascido nos braços do pai pela primeira vez. Osmar não contém a emoção.
-Eu não pensei que ia estar vivo pra ver essa cena.
-Né isso? O avô mais jovem que eu conheço- brinca Lucas.
-Bom, estão liberados. Só que eu fiquei com uma dúvida. Nesses dias todos, você não disse que nome quer dar pra ele.
-Carol até brincava. Dizia que se a gente tivesse um filho, tinha que ser um nome comum. O irmão dela é Raffael com dois "f", a irmã se chama Yanna. A normalzinha da família era ela.
-Pensou em que nome, filho?
-Joaquim.
-Vai batizar com meu nome?
-É a melhor opção- Lucas sorri de orelha a orelha com o bebê nos braços- Obrigado por tudo, Doutor.
-Não precisa me agradecer. Sejam felizes. Vocês merecem.
-Vamos ser, sim. Ele é o motivo pra lutar por essa felicidade. E eu sei que Carol lá de cima vai me ajudar nisso.
-Vamos pegar o ônibus, Lucas?
-Bora. Fica com Deus, Doutor.
-Fiquem com Ele também.

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