-Sabe, você precisa ver sua cara de decepção
nesse exato momento. O golpe do pai cauteloso foi um tiro pela culatra. Achou
mesmo que esse bastardinho ia despertar alguma coisa em mim?
-O que o senhor pensa de mim ou acha dessa
criança não me interessa!
-Não mesmo? Quer dizer que nem por um só
segundo você acreditou que eu me prontificaria a cuidar desse moleque ao seu
lado?
-Tá na cara que o senhor não ia querer mesmo
um negro entrando e saindo da sua casa, convivendo com sua família.
-Ainda bem que você reconhece a verdade.
-Só que se dependesse de mim, eu também não
ia querer conversa contigo. Acontece que Carol pediu pra nós dois pra cuidar
desse menino.
-Pois então? Você não ama a minha filha?
Prove! Mas não pra mim, e sim pro mundo. Se você realmente adora essa família
de fachada, fadada desde sempre ao fracasso, constituída por um jovem que não
tem onde cair morto, um recém-nascido e uma lembrança, passe a sustentá-la. Eu,
Bernardo, me isento de toda e qualquer responsabilidade de avô. Coloque na
certidão dele nome da mãe, da filiação dela inteira! Mas um centavo meu, você
não tira!
-Quer saber? É um favor que o senhor me faz!
-Quanta dignidade...
-Mais do que o senhor, eu tenho.
-Disso eu duvido.
-Pensa que eu me esqueci que o senhor proibiu
minha entrada no enterro da Carolina?
-Fiz pra não esquecer! E digo mais: coloquei
um segurança no jazigo da minha família. Perto dela você não chega, nem depois
de morta!
-Nem o senhor.
-Olha aqui, é melhor você parar de me
provocar...
-Senão o quê? O bandido, a alma sebosa, o que
não é de confiança sou eu. Fica até mal pro senhor conversar com gente que nem
eu.
-Pra quê esse drama? Pra quê se fazer de vítima?
Eu não terminei com seu relacionamento com Carolina! Foi você.
-Disso eu não posso te culpar! Quem terminou
fui eu porque sabia que ela merecia alguém melhor do que eu. Mas se você não
tivesse obrigado a ir embora, eu tinha cuidado desse bebê desde o começo. Ela
fugiu nervosa, com medo, pronta pra me dizer a verdade. Pra mim, você é tão
culpado da morte dela quanto o motorista daquele carro.
Furioso, Bernardo agarra Lucas pela gola de
sua camisa.
-Pois pra mim, era você que tinha que morrer
naquele dia! Não o motorista! Não a minha filha! Foi por sua causa que ela
fugiu!
-Fugiu por você! Acha que desprezando o neto
vai se livrar da tua culpa? Mas não vai, não!- Lucas é solto pelo empresário.
-Tomara que você sofra o tanto que eu sofri!
Só assim, seu bostinha, você vai saber o que é ser pai!
-O que é? Tá desejando a morte do meu filho
agora?
-Dele, não. Porque ele não tem culpa! Aliás,
tem! Mas eu prefiro ver você definhando, sofrendo sem saber se teu filho vai
acordar ou não, como eu passei com a minha Carolina! A única coisa que eu quero
de você é o mesmo que você fez com ela: em vez de amar essa criança, minta!
Invente que eu morri. Porque eu enterrei esse bebê no túmulo há uma semana-
Bernardo se retira da policlínica.
-Se depender de mim, ele nunca vai saber de
você. Miserável.
...
Ao chegar a sua casa, Bernardo é recepcionado
por Miguel.
-Onde é que você tava?
-Nossa mãe morreu há muito tempo pra alguém
ficar me fiscalizando, Miguel- entra em casa- O que foi que houve pra me
receber já na porta?
-Tem uma visita pra você.
-Pode dizer que eu não estou pra ninguém-
sobe às escadas.
-Sou eu, Bernardo.
-Sílvia?
-Eu vou sair, pra deixar vocês dois à
vontade.
-Pode ficar, Miguel. Eu só vou me sentir à
vontade quando essa mulher sair daqui. O que é que você quer na minha casa?
Sílvia surpreende os dois irmãos ao
esbofetear o ex-marido. Miguel a detém.
-Como é que você teve coragem de fazer isso
comigo? Mandou a minha filha pro exterior? Viu ela à beira da morte,
acidentada, enterrou e não teve a dignidade de me telefonar pra contar o que
estava acontecendo?
-Dignidade, Sílvia, é a última coisa que você
pode me cobrar! Afinal de contas, a gente não cobra dos outros aquilo que não
tem!
-Como é que você pode ser tão desumano,
Bernardo? Como é que você acha que eu me senti sabendo que a minha filha morreu
por um portal de notícias?
-Você abandonou seus três filhos, Sílvia! O
que você quer? Condolências e pêsames a você quando Carolina fosse parar numa
cova?
-Mas eu tinha o direito de saber! Eu não
deixei, em nenhum momento de amar meus filhos!
-No entanto, passou anos sem dar um único
telefonema pra saber deles. Não foi você que faltou a compromissos
profissionais quando eles estavam doentes, não foi você que supervisionava tudo
pra que eles fossem cidadãos respeitáveis, de bem, que não devessem nada a
ninguém. A dor pela perda da Carolina pode até me matar, mas só eu tenho o
direito de sofrer!
-Fique sabendo que eu vou reconquistar o amor
dos meus filhos, quer você queira, quer não.
-Não seja imbecil! Por mais que você tente,
não é capaz de preencher o vazio que fez questão de deixar. Carolina, Raffael e
Yanna são órfãos de mãe. Coloque isso na cabeça!
Yanna e Raffael assistem à discussão.
-Meus amores...
-Acho melhor vocês irem pro quarto.
-Miguel tem razão. Poupem-se dessa cena
lamentável. Ou melhor: é bom que estejam aqui. Vão ouvir porque eu só vou dizer
uma vez: estão proibidos de se aproximar dessa mulher, que se diz mãe dos dois.
-Eles não são mais crianças, Bernardo.
-Não interessa!- grita, assustando a todos-
Você não existe pra nós, e assim vai continuar sendo, Sílvia. Fora da minha
casa.
-Você não pode fazer isso comigo. Eu também
sofro com a morte da nossa filha...
-Sílvia, eu vou ter que chamar a segurança ou
você vai sair por conta própria?
-Some daqui- Raffael pede- A gente não
precisa de você. Nunca precisou.
-Ouviu? Fora daqui. Eu não quero ver você na
minha casa, nunca mais! Some da vida dos meus filhos. Meus!
-Eu não vou desistir de vocês. Não vou-
Sílvia é solta por Miguel e sai da mansão.
-Se alguém perguntar por mim, Miguel, minta
dizendo que eu não estou. Impeça estranhos de entrarem aqui- Bernardo se dirige
ao quarto.
...
O quarto de Yanna, onde a universitária está
com Raffael, é o cenário de outra situação difícil. Os dois estão sentados na
cama, enquanto o estudante continua mexendo insistentemente no celular.
-Pra quem você tá ligando desde hoje?
-Pra Amanda. Aliás, tô ligando desde que isso
tudo aconteceu, mas ela não me atende.
-Será que ela tá com algum problema?
-Tá muito estranha. Desde antes eu já tinha
sacado que tinha alguma coisa no ar. Mas ela não quis me dizer- tira o celular
da orelha- Olha aí! Fora de área. Parece até que tá desligando pra não me
atender.
Bernardo abre a porta do quarto de maneira
violenta e assusta os filhos.
-Estão avisados: se aquela mulher tentar
algum tipo de aproximação, não a deixem chegar perto. Ouviram?- fecha a porta.
-Você acha que ela vai mesmo...
-Se ela quiser, não vai conseguir. Pelo menos
se depender de mim. Essa mulher deixou a gente sozinho quando criança, foi
morar no Estados Unidos, nunca deu um telefonema pra saber da gente... Agora que
Carol morreu, vem dar uma de boa mãe?
-Sei lá, Fael... Ela me pareceu sincera.
-Isso é arrependimento. Culpa. Só isso.
-Tudo bem, a gente não vai falar mais disso
pra você não ficar nervoso. Continua ligando pra ver se Amanda atende.
-Quer saber de uma coisa? Eu vou pro
apartamento dela!
-E se ela não estiver?
-Vou esperar. Preciso contar o que tá
acontecendo com a gente, e quero saber por que ela tá colocando essa distância
entre a gente.
...
O interfone do apartamento de Alice toca.
-Seu namorado está aqui. Posso deixar subir?
-Namorado?
-É, o Fael.
-Ah, sim. Deixa subir. Obrigada- desliga o
telefone, apreensiva. Quando Raffael toca a campainha, é outra agonia. Pensa se
deve ou não abrir a porta, optando pela primeira alternativa.
-Posso falar com você?- pede, com o coração
despedaçado.
-Pode. Eu queria mesmo te ver.
-Aconteceu... Tanta coisa nessa semana. Por
que você não me atende quando eu ligo?
-Raffael, eu preciso falar antes de você.
-Fala, então.
-Eu não tinha condições de te encarar, de
olhar pra você e contar o que tá acontecendo comigo.
-Tá me deixando até assustado, Amanda. O que
foi?
-A gente não pode continuar com isso.
-Isso o quê?
-Nós dois, juntos. Eu quero terminar com
você... Ou melhor, eu preciso.
-Terminar? Mas por quê? Eu te fiz alguma
coisa?
-Não, quem fez fui eu. Sei que vai ser
difícil porque eu sei que você me ama, só que...
-Só que o quê?
-Eu não posso mais enganar você.
-Mas você tá falando do quê, Amanda? A gente
tava tão bem...
-Não, você sabe que não. Eu tava distante, e
você mesmo percebeu. Eu não posso fazer ninguém feliz se eu estiver mentindo
até pra mim mesma, entende?
-Sinceramente, não.
-Tudo bem. Eu vou falar. Isso vai me doer,
mas eu não quero que você se iluda, que chore por minha causa.
-Fala. Por que você não quer mais ficar
comigo?
-Raffael, eu fiquei com você por dinheiro.
-Dinheiro?
-É. Pela grana do seu pai.
-Agora eu tô entendendo. Você ficou comigo por
interesse. Nunca gostou de mim. E como não ganhou nada comigo durante esse
tempo que a gente passou junto.
-Não é nada disso, Fael...
-Para! Não precisa vir com essa voz doce, pra
conseguir o que quer, não. Ainda bem que você me abriu os olhos. Evitou que eu
ficasse mais tempo agindo como um idiota. Sendo um idiota!
-Raffael, me deixa conversar com você.
-A minha irmã morreu, sabia?
-Sua irmã?
-É, a minha irmã caçula. Claro que você não
ia saber disso! Porque não me atende, né? Já não tá conseguindo nem me aguentar
mais! Se fosse outra, tava do meu lado, se fazendo de boazinha, de
compreensiva, mas não. Não consegue nem mentir porque não sente nada por mim.
Nem nojo! Pra completar, a minha mãe tá de volta querendo refazer uma família
que ela mesma destruiu. E quando eu chego aqui... - Raffael leva as mãos à
cabeça e fica de costas para Alice.
-Meu Deus, eu não... Eu não tinha ideia do
que tava acontecendo. Se eu soubesse, eu...
-Tinha evitado de me dar um fora agora, né? E
depois ia deixar eu quebrar a cara mais tarde. Eu não sei se eu dou um murro na
tua cara ou se eu parto a minha, pra ser de ser tão burro!- abre a porta do
apartamento.
-Não, Raffael! Não sai assim! Me deixa falar
com você- encosta a mão no ombro dele.
-Tira a mão de mim! Encosta no próximo
imbecil que você levar pra cama. O que pra você não vai ser muito difícil-
Raffael pega o elevador.
Alice deixa a porta aberta e senta no chão,
aos prantos, enquanto o rapaz sai desnorteado, sem acreditar na intenção
inicial de Alice.
...
Chegou o dia da alta do filho de Lucas e
Carolina. Joaquim coloca o recém-nascido nos braços do pai pela primeira vez.
Osmar não contém a emoção.
-Eu não pensei que ia estar vivo pra ver essa
cena.
-Né isso? O avô mais jovem que eu conheço-
brinca Lucas.
-Bom, estão liberados. Só que eu fiquei com
uma dúvida. Nesses dias todos, você não disse que nome quer dar pra ele.
-Carol até brincava. Dizia que se a gente
tivesse um filho, tinha que ser um nome comum. O irmão dela é Raffael com dois "f",
a irmã se chama Yanna. A normalzinha da família era ela.
-Pensou em que nome, filho?
-Joaquim.
-Vai batizar com meu nome?
-É a melhor opção- Lucas sorri de orelha a
orelha com o bebê nos braços- Obrigado por tudo, Doutor.
-Não precisa me agradecer. Sejam felizes.
Vocês merecem.
-Vamos ser, sim. Ele é o motivo pra lutar por
essa felicidade. E eu sei que Carol lá de cima vai me ajudar nisso.
-Vamos pegar o ônibus, Lucas?
-Bora. Fica com Deus, Doutor.
-Fiquem com Ele também.
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