02/07/2015

TEMPO PERDIDO/ CAPÍTULO II

Aquele silêncio parecia a morte. Depois que meu irmão pediu aquilo, nós não tivemos reação nenhuma. Mas eu sabia que meu pai deveria falar alguma coisa ao Bento. Talvez ele não tivesse dito porque ele estava doente. Só que me veio à cabeça que, se meu irmão tivesse tocado naquele assunto em qualquer circunstância, a reação dos dois seria a mesma. O que mais estranhei é que sempre achei Celine alheia a tudo o que houve antes de sua chegada à nossa casa. Agora, ela parecia saber tanto quanto meu pai.
Sem conseguirmos dizer nada depois daquele pedido inesperado, saímos. Bento ficou sozinho no quarto, e eu acompanhei Celine e o meu pai até a saída do hospital, onde ele desabou em lágrimas. Só sabia se perguntar por que aquilo acontecia como Bento, e não com ele. Mesmo diante daquela dor, que também me consumia um pouco, a ansiedade de perguntar o que havia acontecido era enorme. Por sorte, Celine, sem perceber o meu nervosismo, chegou bem perto de mim e pediu:
-Fica com Bento. Eu tenho que levar Jayme pra casa.
-Tá certo.
-Eu não demoro. Vem, meu amor. Vem- o meu pai era amparado pelos braços da esposa, sendo levado até o carro.
Enquanto a Celine tentava fazer meu pai descansar em casa, eu tinha que ir ao quarto do Bento. Sentia como se fosse uma inútil: o que eu iria falar pra ele? Nem eu conseguia acreditar no que o médico tinha nos dito. Fiquei receosa em ter que voltar àquele espaço. Completamente desprotegida... Era a segunda vez que eu me sentia dessa forma. Por mais difícil que fosse, eu tinha que me colocar no lugar do meu irmão. E lembrei que, tirando a parte física, a dor era a mesma. Entrei lá, e não o encontrei chorando. Só vi um adolescente de catorze anos fazendo força pra manter os olhos fechados; afinal, havia o medo de abrir e se deparar com pessoas que o olhavam com dúvida, com o mesmo desespero dele. Antes que isso ele fizesse, toquei a sua mão. Mesmo não sabendo de quem se tratava, Bento me segurou e chorou. Eu só o abracei, como se estivesse mais frágil que ele. A solidão foi embora. Sabia que nunca estaria sozinha. E minha missão era não deixá-lo sozinho. Nunca.
Esperei até dar meio-dia. Desci até a cantina do hospital e me lembro de ter pedido alguma coisa, não lembro o quê. Não demorei nada, não queria deixar Bento sozinho. Peguei o elevador e, assim que ele abriu a porta, dei de cara com Celine e o meu pai, prestes a entrar no quarto.
-Como está seu irmão?- ele me perguntou.
-Acho que ele se acalmou mais. O médico passou no quarto, ele já tava dormindo.
-Ele voltou pra dizer alguma coisa, Ariela?
-Nada, Celine. A enfermeira até achou melhor dar um remédio pra ele se acalmar, tava agitado demais.
-Eu vou procurar o doutor.
-Eu vou com você, meu amor.
-Antes disso- interrompi- vocês têm que conversar comigo.
-Sobre o quê, minha filha?
-Sobre esse pedido do Bento, de conhecer a nossa mãe.
-Um absurdo!- ele logo falou.
-Só que eu quero entender por que vocês dois ficaram quietos na hora.
-O que você queria que a gente dissesse, Ariela?
-Que sabem mais do que a gente imagina.
-Sabemos?
-Sem teatro, Celine. Alguma coisa meu pai deve ter te falado.
-O que sabemos da sua mãe é o mesmo que você e seu irmão sabem: que ela foi embora, abandonou o lar...
-Não é só isso.
-Pelo amor de Deus, Ariela, aonde você quer chegar com essa conversa?
-Eu vi vocês dois se olhando quando o Bento pediu pra o senhor procurar minha mãe. Alguma coisa você sabe sobre ela. Sabe onde ela está, por que fugiu da gente. Se não ficou sabendo no dia em que ela foi embora, soube depois. E tenho certeza de que o senhor contou tudo pra Celine.
-Bom, Jayme, eu acho melhor nós dois abrirmos o jogo.
-Celine, por favor. Pare de alimentar os delírios de Ariela.
-Sua filha tem esse direito.
-De que direito tão falando?
-Nenhum, Ariela. Eu não quero que você volte a tocar nesse assunto, e muito menos na frente de seu irmão.
-Quer dizer que aí tem coisa? Pois muito bem: se nenhum dos dois me contar, eu vou fuçar e acabo descobrindo sozinha. O senhor me conhece, sabe que eu sou teimosa!
-Você está proibida de mexer nessa história.
-A minha história, que fique bem claro.
-Filha, esse momento não é adequado pra tratarmos desse assunto. Bento tá doente, e não sabemos ao certo em que condições ele se encontra.
-Se Bento tivesse vendendo saúde, ainda assim o senhor ia esconder. É melhor o senhor me falar, me contar tudo de uma vez.
-Eu não vou admitir que você nos coloque contra a parede. E muito menos ponha seu irmão contra mim.
-Jayme, para de tratar Ariela como se fosse um bebê de colo. Uma hora, ela vai ter que saber. E é melhor que seja pela sua boca.
-Não se intromete nisso, Celine. Esse assunto é entre mim e a minha filha.
-Alto lá! É entre o meu marido, a minha enteada e eu. Porque mesmo que os seus filhos me rejeitem, eu sou parte dessa família, e a respeito. Chega de tratar esses meninos como crianças. Eles têm que crescer, e só vão conseguir fazer isso com a sua permissão. Você tá coberta de razão, Ariela. Ele sabe de alguma coisa sobre sua mãe e eu também. Aliás, sabemos de tudo sobre ela.
-Você vai parar com isso ou eu vou ter que parar por vocês duas?
-Chega, Pai. Me deixa saber da verdade... Fala, Celine.
-Ariela, você sabe que seu pai e eu resolvemos trabalhar juntos e... A nossa vida mudou pra melhor... Pelo menos no sentido econômico da palavra.
-Pula essa parte da história que eu já sei.
-Essa é a história, Ariela- meu pai tomou a palavra novamente- Eu imaginei que vocês me cobrariam uma explicação pelo sumiço da Vilma, e eu tinha que falar alguma coisa. Mas a única coisa que ela me deixou foi aquele bilhete, dizendo que não aguentava a pobreza e... A felicidade de ter uma família pra chamar de sua. Ela detestava isso... Quer dizer, passou a detestar com o passar do tempo.
-Disse isso no bilhete que o senhor leu quando ela fugiu de casa?
-Isso mesmo, filha. Quando Celine e eu começamos a  ter condições de pagar as contas, fazer um pé de meia, descansar um pouco, resolvemos contratar um detetive particular.
-Mas deve ter sido difícil de saber alguma coisa, já que ela sumiu no mundo.
-Não tão difícil assim, querida. Vilma se separou de Jayme, mas não oficialmente. Pela lei, ela ainda é a mulher do seu pai.
-Quer dizer que o detetive descobriu onde ela tá?
-Em Pernambuco, minha filha. Sua mãe se mudou pra lá.
-Sozinha?
-Foi. Mas pra formar uma nova família.
-Nova família? Que família é essa?
-Ela é a mulher de um empresário da noite chamado Norberto Nunes, dono de uma boate. Vez ou outra, ele aparece no jornal. Parece que se envolveu num esquema de prostituição.
-Eles têm filhos?
-Não. Ele tem um filho de outro relacionamento, o rapaz já deve ter uns vinte e dois anos.
-Vocês têm certeza disso?
-Foi o que dizia o dossiê que o detetive nos entregou, Ariela.
-Quando foi que vocês descobriram onde ela tava?
-Há uns dois ou três anos, minha filha.
-Bom, se vocês sabem onde minha mãe se meteu, é muito simples de resolver a situação: o senhor tem que ir até Pernambuco e buscar...
-Buscar quem? A sua mãe? E pra quê eu vou fazer isso?
-O meu irmão quer realizar o último desejo dele.
-Não vai ser o último desejo do seu irmão. Bento não vai morrer! Tire isso da cabeça! Esqueça também que pode existir alguma aproximação entre mim e sua mãe.
-Isso você não pode garantir. E não pode me impedir também de conhecer a minha mãe.
-O que é isso? Um complô contra mim? Será possível que você não entende que sua mãe não foi obrigada a se afastar de vocês? Ela foi embora porque quis ir!
-Mas vai ter que voltar. Porque meu irmão merece consideração. Será que o senhor não pode fazer isso por ele? Por ele, Painho?
-Me rebaixar pra aquela mulher? Pedir pra voltar?
-Meu amor, não tem nada a ver com o casal que vocês foram no passado. É a vida de Bento que está em jogo.
-Só mesmo ela distante que eu pude entender o tipo de mulher com quem me casei. Não é seu irmão que precisa de um coração novo, é ela.
-Ela não é vidente, Pai! Não sabe o que tá acontecendo com ele. Você tem que ir atrás dela e contar tudo sobre Bento, que ele quer conhecer a mãe.
-Nunca vou fazer isso, Ariela.
-Se é assim, eu vou!
-Como? Sozinha?
-Não. Celine vai comigo.
-Eu?
-Se isso te deixa mais tranquilo...
-Filha, isso não tem cabimento nenhum.
-Por que não? Eu tô de férias, posso muito bem ir e voltar com Celine.
-Você não vai pra canto nenhum!
-Então, quem vai é o senhor. Vai querer encarar a minha mãe? A mulher que abandonou o senhor por outro homem, mesmo que seja por causa do meu irmão?
-Eu... Eu não posso.
-Pois pronto. Vou pra casa fazer as malas.
-Ariela, tira essa ideia da cabeça. Você não sabe como sua mãe vai te receber.
-Mais um motivo pra procurar essa mulher. Quero ver o que ela vai dar como desculpa por ter saído de casa, da vida da gente.
-Jayme, querendo ou não, é um direito que Ariela tem.
-Sabe que eu não posso ir com você... Nem poderia, acho que isso é uma loucura.
-O senhor tem que cuidar de Bento, não pode deixar ele sozinho. Deixa Celine ir comigo, a demora é só de fazer a mala e de comprar a passagem.
-Já tô vendo que nada do que eu diga vai tirar sua ideia da cabeça, não é?
-É a filha que o senhor tem. Independente do que ela vai me dizer ou fazer, eu não vou deixar de ajudar meu irmão. Se é a vontade dele, alguém tem que se mexer pra fazer.
-Sou eu, Ariela, seu pai, que tá te pedindo. Não vá procurar essa mulher.
-Eu não tô procurando tua ex-mulher, não tô procurando a minha mãe. Eu só preciso encontrar a mãe de Bento. É isso que o senhor precisa entender... – fiz uma pausa longa e suspirei- Vou fazer as malas.
Não me despedi do meu irmão. Preferi arrumar tudo e embarcar o quanto antes. Foi um dia inteiro de silêncio. Celine estava interessada em me ajudar, prontificou-se a me levar. Jantei com ela e meu pai ficou com Bento no hospital. Mas na segunda-feira ele voltou pra casa e nos levou até o aeroporto. O olhar que ele fazia era de reprovação, como se pudesse me convencer na última hora. Tive que ser irredutível. E hoje, apesar de tudo o que aconteceu, sei que agiria da mesma forma. Beijou minha cabeça, e senti que ele desejava que eu ficasse com Deus, embora previsse que eu me decepcionaria.
Celine e eu embarcamos às onze da manhã. Não demorou muito pra chegarmos ao Aeroporto Internacional do Recife. Ela ainda ligou para avisar que estávamos a caminho do hotel, e perguntou como Bento estava. Mas eu continuava calada, e marcada pelo cansaço daquele dia anterior, que me fez não dormir. Minha obstinação era o que realmente me importava. Claro que dar o que eu considerava a última alegria pro meu irmão era minha motivação, mas pensei que a vida fazia aquilo comigo pra que eu tivesse a chance de ter as respostas que tanto precisava. Eram catorze anos me recusando a crer que Vilma havia nos abandonado e que, caso estivesse conosco naquela época, estaria há dezessete anos infeliz.
Pegar um táxi que nos levasse ao hotel e me fizesse tomar um banho e me jogar numa cama ainda não era suficiente pra que eu me mantivesse animada. A impressão que se tinha era a de que eu estava esperando por algo impactante, forte. Alguma coisa que me fizesse reagir diante da doença de Bento e da indiferença daquela mulher. Nem precisei procurá-la para ser vítima de um novo choque.
Aconteceu no sinal fechado que, aliás, estava demorando demais. Por um momento, quase cochilei no táxi. Até que Celine gritasse ao meu lado, assustada pela pancada que o carro sofreu. Ao seguir com o carro, o motorista atropelou um cara que vinha em alta velocidade sobre uma moto. Não tive outra reação senão descer do táxi e correr para vê-lo.
-Tá tudo bem?- perguntei enquanto o rosto dele estava virado para o chão, e com a moto sobre uma de suas pernas. Quando eu o toquei, se virou pra mim. Por um momento, ele se esqueceu da dor e, ainda que disfarçadamente, sorriu pra mim. E eu esqueci da minha.

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