10/07/2015

TEMPO PERDIDO/ CAPÍTULO X

Um pesadelo. O pior de todos eles, que estava apenas começando. Celine, muito nervosa, conseguiu sair do carro. Correu em direção ao caminhão que nos atingiu, e viu o motorista quase desmaiando de tão bêbado.
-Alguém me ajuda... Alguém ajuda... – dizia, quase sem voz.
Do hospital, vinha correndo o doutor Ronaldo Andrade, que cuidava do caso do meu irmão.
-O que houve aqui?
-Acho que ele bebeu, Doutor... Ariela?- ao se lembrar de mim, correu para o carro, e me viu desmaiada e ensanguentada- Ariela, fala comigo! Acorda, Ariela! Por favor!
Ronaldo se aproximou da minha janela e pôs a mão no meu pescoço.
-Vou chamar a ambulância- começou a discar o número- Por favor, eu preciso de uma ambulância na avenida do Hospital Miranda Couto. Isso, a poucos minutos do ambulatório. Acidente de carro com duas vítimas, e um caminhão. Certo, vou ficar aguardando. A senhora tá bem? Não fraturou nada?
-Como é que eu posso estar bem? É minha enteada, doutor! Tira ela daí de dentro, por favor!
-Tem que deixar sua enteada imobilizada, minha senhora! Ela pode ter quebrado alguma coisa! A senhora tava no carro também?
-No banco de trás. Mas eu não tô machucada, não... Por favor, Doutor, salva a vida da minha enteada, a mãe dela tá lá dentro também...
-Foi a mãe dela que tava dirigindo?
-O rapaz do caminhão que bateu na gente, devia ter bebido cerveja, não sei! Por favor, Doutor! Ela pode morrer!
-Fica calma! Já tem gente vindo pra fazer o resgate, eu vou pedir pra elas serem atendidas aqui, fique tranquila- ele a abraçou enquanto ela soluçava bastante devido ao susto.

/////

Acordei na tarde do dia seguinte. Meu pai estava ao meu lado, me olhando e segurando na minha mão, chorando muito.
-Onde é que eu tô?
-Filha... Graças a Deus que você acordou!
-Onde é que eu tô, pai?
-Você tava vindo pra cá com Celine e sua mãe. Um motorista bêbado avançou o sinal a bateu no carro que vocês tavam.
-Um acidente?- tentei me levantar, mas a minha cabeça, que estava enfaixada, doía muito. Meu pai me segurou.
-Por favor, minha filha, não se mexe. Eu vou avisar o Doutor que você já acordou, pra ele te dar o outro remédio.
-E elas? Onde é que elas tão?
-Celine saiu do carro na mesma hora. Correu e pediu ajuda. Não tem nenhum arranhão.
-Minha mãe?
-A Vilma, ela... Tá no quarto ao lado.
-Ela vai morrer?
-Ariela, os médicos tão tentando de tudo pra salvar sua mãe. Mas eles disseram que... A gente não pode mais ter esperança.
-E Bento? Você disse pra ele que ela vinha pra cá?
-Finalmente conheceu a mãe, como você quis que acontecesse. Só que Vilma não acordou. O médico disse que ela só tá esperando a hora.
-Por que você tá assim, desse jeito? Por que tá chorando, pai?
-Ele passou mal depois que tentou falar com Vilma e ela não abriu os olhos. Doutor Ronaldo disse que ele tem que se operar o quanto antes, mas ainda não acharam um doador. Bento tá morrendo, Ariela.
Aquilo me desesperou. Tudo parecia estar sendo em vão. Não havia forma de encontrar a luz no túnel que eu tanto procurava. A presença da Vilma, antes tida como um trunfo para lidarmos com a doença de Bento, virou uma tormenta ainda maior.

/////

Paralelo a toda essa tragédia, Rique conversou com o advogado de Norberto para saber qual era a real situação do pai.
-Não vai ser fácil conseguir a liberdade do seu pai, Henrique. Nem mesmo apelando pra um habeas corpus.
-Por quê?
-A polícia andou vasculhando as contas de Norberto e acabou descobrindo detalhes que vão tornar essa soltura praticamente impossível.
-E que detalhes são esses?
-Pra começar: ele hipotecou a mansão onde vocês moravam. Tudo pra conseguir dinheiro e pagar homens que aliciavam menores de idade. Eles enganavam meninas de onze, doze anos, prometendo um trabalho que durasse meio período, que elas pudessem conciliar os estudos com a carreira de modelo, procuravam essas adolescentes até em outros estados... E quando elas chegavam aqui, eram espancadas, colocadas em motéis de beira de estrada, e mandavam cartas pra famílias mentindo que estavam tudo bem.
-E o pior é que eu não me assusto com nada disso. Vi muito isso durante minha vida. Meu pai tratando menina mais nova que eu como se fosse mercadoria.
-Se você ainda não se surpreendeu, vou te dizer que existe mais por trás dessa estória. O testamento que sua mãe deixou antes de morrer foi falsificado.
-Como assim?
-A leitura feita há vinte e dois anos dizia que você, Henrique, poderia herdar tudo o que ela deixou aos vinte e cinco anos, e que até lá seu pai seria seu representante legal.
-Sim, o que é que tem isso?
-Era pra você ter herdado tudo há um ano atrás! Seu pai falsificou o testamento pra que você não assumisse a fortuna, e assim ele poderia administrar tudo que é seu de direito.
-Não, meu pai não fez uma coisa dessas...
-Mas fez, Henrique. Fez. Com o dinheiro, ele abriu uma conta no nome dele, e movimentava todo o montante. Não sobrou quase nada do dinheiro. Pra piorar, já passou do prazo de pagamento da hipoteca da mansão.
-Quer dizer que eu tô na rua?
-Quer dizer que o pouco que sobrou desse dinheiro herdado da sua mãe vai dar pra você recomeçar sua vida. Só que isso vai ser em outro lugar, porque nem você nem seu pai, se conseguir sair da prisão, terão onde ficar.

/////

O último dia do ano havia chegado. Com ele, os meus dezoito anos. Começava a caminhar pelo hospital, com a ajuda do meu pai e a de Celine. Transitava por entre os quartos: num, Bento estava sedado; noutro, Vilma em situação irreversível, com graves lesões corporais. Parecia que toda a minha luta acabaria ali. “Se Bento fosse realmente nos deixar, que ao menos nos deixasse com a alegria que havia recuperado recentemente, em decorrência do retorno da nossa mãe” era o meu pensamento. Mas eu voltei a me sentir culpada como há anos atrás e, novamente, por algo que não era de minha responsabilidade. Pensei que ter trazido Vilma contribuiu para o estado lamentável que meu irmão se encontrava.
Em uma única semana, eu consegui me sentir a pior pessoa do mundo. Cada vez mais eu me castigava por ter deflagrado toda aquela agonia... Eu me imaginava voltando pra casa, abraçando minha família. Só que, naquele dia, não havia espaço para felicidade. Vez ou outra, eu passava no quarto de Vilma para vê-la. Conversava, pedia perdão, implorava para que ela acordasse. Tudo em vão. Na maior parte do tempo, ficava ao lado do meu pai, que permanecia com as mãos sobre meu irmão. Celine ficava distante, devido à revelação que meu pai tinha feito, mas sofria por Bento também.
O que me fez desabar foi estar, junto à Celine, ao lado da janela do quarto, e vendo aquela multidão de pessoas se divertindo e comemorando a chegada de 2012. Meu pai continuava lá, velando o sono de Bento. E chorava, mas silenciosamente. A emoção se intensificou quando passamos a ouvir a contagem regressiva.
Os fogos de artifício que eram soltos naquele momento puderam abafar o “eu te amo” que ele repetia diversas vezes para Bento. Era uma das piores coisas que eu já tinha visto. Caminhei pelo hospital e decidi ir até o quarto de Vilma. Celine foi atrás de mim, com medo de que eu tomasse alguma atitude impensada devido ao meu desespero.
Ao chegar lá, duas enfermeiras entraram com o médico. Ele fez a massagem cardíaca e ligou o desfibrilador, na tentativa de reanimá-la. Vi o doutor cobrindo o rosto dela, vindo em seguida na nossa direção.
-Nós fizemos todo o possível. Eu sinto muito, mas...
Abracei Celine, mais uma vez.
-O que eu vou dizer pra Bento se ele acordar e perguntar dela?- comecei a chorar.
-Desabafa, meu amor. Chora! A gente vai encontrar a solução junto.
-Foi culpa minha, Celine! Eu sou a culpada! Vilma morreu por minha culpa!
-Não fala isso! Você só quis ver sua família unida de novo! Foi um acidente, Ariela! Um acidente!
As enfermeiras colocaram o corpo numa maca e o retiraram do quarto. Celine e o médico tentavam me tirar de lá a todo custo, mas eu não queria sair. Tudo parecia apontar para um único caminho: a aceitação de que a minha jornada toda foi em vão.

/////

Seguindo por uma interminável madrugada, estive sentada com Celine num banco que ficava entre os dois quartos. Meu pai deixou Bento sozinho por uns instantes assim que a esposa o avisou da morte de Vilma. Ele não precisou me dizer uma única palavra- apenas chorou comigo e me abraçou forte. Celine o olhava fixamente, e tinha certeza de que não era apenas um simples gesto de solidariedade que ele tinha para comigo: era a dor de quem perdeu a mulher que verdadeiramente amava, mas que preferia sofrer em silêncio, mascarando aquele sentimento diante do meu sofrimento.
Minha madrasta- que àquela altura, já conseguira provar que não estava disposta a carregar a imagem estereotipada de uma- ficou no quarto de Bento, atenta caso ele precisasse de alguma coisa. O longo abraço, que pretendia trocar com meu pai pela morte de Vilma, foi interrompido quando o médico que a atendeu veio falar conosco.
-Com licença. Desculpe interromper, mas qual de vocês é parente de Vilma Ramos de Oliveira?
-Ela é filha de Vilma, doutor.
-U-hum. E o senhor?
-Eu... – pigarreou- Fui casado com ela, embora a gente não tenha se separado pela lei.
-Desculpe ter de tocar nesse assunto, seu...
-Jayme. Jayme Oliveira.
-É que nós temos que dar entrada na papelada pra liberação do corpo e... Enfim, é doloroso, mas vamos ter que tocar no assunto. O senhor sabe se ela tinha família?
-Só os meus dois filhos, Doutor. Mas por que a pergunta?
-Porque nós queríamos saber se havia algum parente de Dona Vilma que pudesse autorizar ou não a liberação dos órgãos de sua esposa pra transplante.
-Mas o acidente que ela sofreu... Será que dá pra aproveitar alguma coisa?
-Seu Jayme, o que levou sua esposa... Sua ex-esposa a óbito foi um dano cerebral, provocado pelo acidente. Mas não há impedimento nenhum, mesmo porque Dona Vilma tinha quarenta anos, e não havia nenhum histórico de doença.
-Sinceramente, eu não sei o que dizer, Doutor. Acho que a gente deveria respeitar a vontade dela. Conhecendo a Vilma como eu conheci, eu acho impossível que ela manifestasse uma vontade desse tipo.
-Pai... A última coisa que ela fez na vida foi vim ver Bento. Isso não quer te dizer nada?
-Ariela, eu não tô entendendo.
-Eu autorizo, Doutor…
-Autoriza? Mas você é menor de idade, não?
-Não. Eu completei dezoito anos ontem. E eu acompanhei todo o sofrimento da minha mãe, que quis rever meu irmão. Doutor, ele tá muito mal, precisando de um coração novo. E os dois não conseguiram se ver, se falar, nada... Depois de tudo que eles passaram pra que esse encontro acontecesse, acho que merecem alguma coisa boa, mesmo sendo tão tarde.
-Filha, você quer doar o coração da sua mãe pra Bento?
-Podem ser os outros órgãos também, Doutor. Eu sei que essas coisas demoram, mas o senhor tem que ajudar. Não só o meu irmão, mas também os outros, que ficam esperando tanto tempo por uma operação.
-Se é assim... Vou falar com Dr. Ronaldo, que cuida do caso de seu irmão. Depois, eu trago a papelada pra você assinar. Tem certeza de que quer fazer isso, Ariela?
-Depois de tudo que me aconteceu na semana passada, Doutor, eu tenho certeza de que se eu não consegui realizar o último pedido de Bento é porque não era o último.
-Tudo bem. Eu vou procurar Ronaldo antes de largar do meu plantão. Mas ainda acho que você tem que maturar essa decisão, Ariela.
-Minha filha sofreu muito pra tomar essa atitude, Doutor.
-Tudo que Vilma queria era não ver Bento... Nesse estado. E vai ser por causa dela que ele vai sair daqui, Doutor. Com vida.

/////

Passaram-se uns dias até a data da operação. Nesse ínterim, Bento acordou, perguntou por Vilma e meu pai escondeu sobre sua despedida, pra que ele não chegasse a piorar. No entanto, vimos o quão fraco meu irmão estava. Chegamos a duvidar que ele saísse vivo da cirurgia. Lógico que não tecemos comentários sobre isso, não queríamos desesperar uns aos outros. Aquela cirurgia durou dez horas, mas parecia estar revivendo daquela semana infeliz.
Abordamos o Dr. Ronaldo assim que ele saiu do centro:
-Cadê Bento, Doutor?
-A operação foi tranquila, embora bastante cansativa. Nós vamos levá-lo para a sala de recuperação.
-A gente pode entrar pra ver ele?- perguntei animada.
-Só não pode demorar muito. Vem comigo.
-Ele vai se salvar, Celine. Meu filho vai conseguir se salvar!- disse meu pai para a esposa, seguido de um abraço emocionado.
Assim que entrei, ele abriu os olhos.
-Não demore muito, porque ele tem que repousar.
-Tudo bem. Já, já, eu saio- fui até a maca na qual ele estava deitado- Vai ficar tudo bem agora.
-Ariela... Desculpa.
-Desculpa por que, Bento?
-Por ter pedido que minha mãe viesse aqui. Eu sei que você tá triste. E sei que...
-Por favor, não fala nada, Bento. Você tem que descansar.
-Não. Me deixa falar. Painho falou que ela não quis saber da gente.
-Isso ficou lá trás.
-Só que eu não consigo esquecer. Eu fingia que tava dormindo... E escutava Celine contando pra Painho que... Você lutou muito, e ela não queria vir... Que só veio porque tinha medo do marido. Não veio por minha causa.
-Mas ela veio. E vai continuar entre a gente, mesmo que a gente não veja.
-Do que adianta? Se ela vier, vai continuar tudo igual. Esqueceu que ela não tem coração?
-Tem, sim. Bate em você, inclusive- coloquei a mão sobre ele.
-Como... Peraí, do que você tá falando?
-Mainha já te deu a vida duas vezes, Bento. Vai mesmo desistir de viver por causa dela?- consegui me fazer entender para ele, mas vi que estava abalado pela minha revelação. Não falamos mais nada.
-Ariela, eu vou ter que levá-lo ao quarto. Você pode dar licença?
-Pode ir, Doutor.
Nosso pai havia optado pelo silêncio durante anos. Resolvemos usar a mesma tática para o resto da vida, e nunca mais Bento e eu conversamos sobre Vilma. Não havia forma de substituí-la. Ele até tentou, reconhecendo todo o esforço de Celine e passou a tratá-la como uma mãe- ainda que distante, já que ela decidiu se separar. Cansamos do sofrimento que não acontecia por acaso, e sim porque nós nos sentíamos confortáveis em derramar lágrimas, em clamar por compaixão e dar a tudo uma dimensão gigante. Tudo que justificasse o nosso sofrimento. E por que nos vitimizávamos? Confesso não ter essa resposta até hoje. Só sei que não faz mais parte de nós. E nos sentimos melhores por isso.

/////

Não me tornei nenhuma pessoa especial depois de tudo o que aconteceu, não mudei, não amadureci. Sou a mesma. Só não continuei estacionada no tempo, como fiz durante catorze anos.
Dias depois, eu fiquei sabendo que havia sido aprovada no vestibular de Jornalismo. Como a cirurgia de Bento era algo recente, até cogitei a ideia de não cursar. No entanto, isso decepcionaria meu pai, e eu acabei me matriculando. No decorrer dessa graduação, nada de novo. Era uma vida monótona, só que bem melhor que toda aquela tensão que tomava conta de mim nos anos anteriores.
Um ano antes de terminá-lo, decidi adiantar a produção da minha monografia. Assim que marquei a data da minha defesa, chamei apenas a minha família: Bento (com a cabeça raspada por ter passado no vestibular de Medicina), o meu pai (todo orgulhoso) e Celine. Na banca, o orientador e o professor arguidor. Dentro do auditório, as pessoas que, além de Bento, foram beneficiadas com os transplantes de órgãos da minha mãe.
Tive quinze minutos para tratar sobre o problema, que era “O comportamento da mídia baiana acerca do investimento em obras decorrentes da Copa do Mundo”. Assim que a apresentação terminou, comecei a anotar as considerações que os professores fizeram, quando me dei conta de que você estava lá. Deixou o cabelo crescer e adotou uma barba. A roupa também não condizia com quem você era. Mas aquele jeito obstinado de me olhar entregava quem era, apesar dos três anos que se passaram desde a última vez que havíamos nos visto. Minha reação foi ficar extasiada, mas pude disfarçar. Celine percebeu e olhou para trás: te viu na primeira fila e entendeu que você não fazia parte do meu passado.
Confesso que depois disso, pouco assimilei sobre do que os professores gostariam que eu acrescentasse no texto. Quando ambos findaram a proposição de sugestões, o orientador voltou a tomar a palavra.
-Bom, eu vou pedir a todos que se retirem da sala por um instante, para que possamos chegar a um consenso sobre a apresentação e o texto da orientanda Ariela Ramos de Oliveira. Dentro de alguns minutos, nós vamos chamá-los e faremos, então, a leitura do resultado.
Pronto... Bastou que ele me chamasse de “orientanda” pra eu ficar em pânico (ou, pelo menos, que nele eu me mantivesse). Bento, meu pai e Celine- já do lado de fora do auditório- me parabenizaram pela apresentação. Difícil foi dar atenção aos demais que a acompanharam, todos querendo me abraçar e apertar a minha mão...
Ao mesmo tempo, meu pai tentava uma última aproximação com Celine.
-Você andou faltando esses dias ao restaurante... – notando que a conversa era particular, Bento voltou a ficar perto de mim.
-É que... Eu tenho ido ao médico.
-Tá doente? De quê?
-Não, muito pelo contrário. Eu tô ótima. Cada vez melhor. O que acontece é que... Já faz um tempinho que eu tenho lido umas coisas sobre inseminação artificial.
-Inseminação? Por quê?
-Não é lógico, Jayme? Pois é... Amanhã, eu vou fazer a primeira tentativa.
-Você quer ter um filho de um homem que você nem conhece?
-O problema não é o pai. Mesmo porque não saber quem é esse pai vai ser bom pra mim. Inclusive, eu pedi que não me dessem dados sobre o doador. Não quero imaginar como ele é. Só de saber que eu vou poder gerar um filho, eu me sinto feliz.
-E depois, Celine? O que você vai dizer? Quando seu filho crescer, ele vai querer saber que pai é esse...
-Ele vai. Eu não. Pra quê se preocupar com isso agora?
-Mas... Se você se interessar por alguém? Não era melhor você ter um filho de alguém que você ama?
-Aí é que tá, Jayme: eu não vou amar mais ninguém. Você foi o último. É melhor assim.
-Melhor pra quem? Pra você?
-Lembra que você disse uma vez que, assim que teve aquele problema de ter que criar seus filhos sozinho, não queria mais se apegar a ninguém, porque ficou com medo de sofrer? Entendi que você tem razão.
-Volta pra casa, Celine. Bento e Ariela amam você, sentem sua falta. Como eu também sinto.
-Um dia, eles vão crescer, Jayme. A madrasta vai ser uma figura que vai ficar no passado. E eu acho melhor que você comece a pensar em deixar as coisas ruins no passado, já que comigo você não conseguiu ser feliz. Eu torço, de coração, pra que você encontre uma mulher que aceite suas falhas, seus erros... Que seja mais compreensiva do que eu.
Quando todos se afastaram, fui na sua direção, mas o orientador avisou que nós poderíamos entrar. O arguidor leu que eu havia sido aprovada com a nota nove e que teria dez dias para fazer as poucas alterações necessárias. Minha cara de alívio coincidia com a festa que todos fizeram, com mais felicitações e muitas fotos. E eu, que me preparava para este momento por dois semestres, me via completamente despreparada pra ter de encarar você, a quem eu esperava há três anos, desde que eu deixei aquele hotel no Recife.
-O que você tá fazendo aqui?
-Somos colegas de curso, sabia?
-Como assim, cara?
-Também fiz vestibular pra Jornalismo, lá na UFPE. Aproveitei que meu semestre terminou um pouquinho antes do seu e vim te ver.
-Mas como foi que você entrou aqui?
-Teu orientador, Carlos Arantes, é amigo do meu chefe. Faz um tempo que eu tô cobrindo umas matérias num jornal de lá de Pernambuco.
-Quem diria que você ia tomar jeito na vida?
-É. Parece que meu pai aprendeu a lição de me ensinar as lições dele.
-Onde que ele tá?
-Só foi o tempo de vocês saírem do hotel que a polícia prendeu ele. Descobriu uma coisa pior dele, que ele tava me enganando, enfim... Eu fiquei sabendo o que houve com Vilma. Meus sentimentos.
-Pois é, Rique- as lágrimas me vieram aos olhos- Mas esquece. Hoje é dia de comemorar! Ainda tô besta como foi que você me achou.
-Google, Ariela. Joguei seu nome e descobri o seu curso.
-E você veio a Salvador só pra me ver?
-Principalmente pra isso. Só que minha visita é a trabalho.
-Hum... Quer fazer uma matéria comigo?
-Uma matéria, não. Um livro.
-Livro?
-A editora do jornal tá pedindo pra gente colher depoimentos, histórias que sejam bem emocionantes, pra lançar em livros, só pra assinantes. Foi quando lembrei daquela menina atacada que ficava cercando a mãe e o padrasto. Tudo pra realizar o desejo do irmão... Como é que ele tá?
-Vivo. Mais vivo que antes, totalmente curado.
-Eu queria conhecer ele. Claro, depois que a gente sair pra tomar um café.
-Vai ser difícil. Não tomo café desde que eu tinha uns... Três anos? Mas tudo bem. Por você, eu faço um esforço.
-OK, a gente procura outro programa pra fazer... Você continua linda.
-Olha que eu tenho muito pra contar, viu, seu Henrique?
-Henrique, não. Gabriel. Uso um pseudônimo pra escrever no jornal. E também porque você sabe, a mídia queria cair em cima de mim, querendo informação sobre meu pai.
-Que esquisito... Logo você, sendo filho de quem é, trabalhando na imprensa?
-Pra me distanciar do que eu vou ser pra sempre. Mas não de tudo, nem de todos... De todas.
-Pega um notebook e bota pra recarregar. Depois que eu entrei naquele carro, eu consegui muita coisa pra contar. Vai se cansar.
-Não de você. Nunca. Definitivamente, você veio pra me provar que ter viajado até Salvador foi a melhor coisa da minha vida.
-Isso é cedo pra dizer. Mas faço questão de te provar que é verdade.
-Então, me dá seu telefone. A gente marca de se encontrar- e você discou seu número no meu celular, para depois salvá-lo.
-Quando a gente se vê?
-Deixa que eu te ligo.
-Promete?
-Juro, juro que te ligo.
-Então... Vou ficar te esperando- deu-me um beijo no rosto, e saiu da universidade.
Seu celular tocou em trinta segundos. Você não conhecia o número, e nem sonhava que uma história de amor finalmente deslancharia após atender aquela ligação.
-Então, Gabriel...
-Ariela?- riu, sem graça por ter me achado um tanto fria durante o desfecho da conversa.
-Quanto tempo a gente tem pra tomar aquele café? Se depender de mim, todo o tempo do mundo...

Nenhum comentário:

Postar um comentário