10/07/2015

TEMPO PERDIDO/ CAPÍTULO X

Um pesadelo. O pior de todos eles, que estava apenas começando. Celine, muito nervosa, conseguiu sair do carro. Correu em direção ao caminhão que nos atingiu, e viu o motorista quase desmaiando de tão bêbado.
-Alguém me ajuda... Alguém ajuda... – dizia, quase sem voz.
Do hospital, vinha correndo o doutor Ronaldo Andrade, que cuidava do caso do meu irmão.
-O que houve aqui?
-Acho que ele bebeu, Doutor... Ariela?- ao se lembrar de mim, correu para o carro, e me viu desmaiada e ensanguentada- Ariela, fala comigo! Acorda, Ariela! Por favor!
Ronaldo se aproximou da minha janela e pôs a mão no meu pescoço.
-Vou chamar a ambulância- começou a discar o número- Por favor, eu preciso de uma ambulância na avenida do Hospital Miranda Couto. Isso, a poucos minutos do ambulatório. Acidente de carro com duas vítimas, e um caminhão. Certo, vou ficar aguardando. A senhora tá bem? Não fraturou nada?
-Como é que eu posso estar bem? É minha enteada, doutor! Tira ela daí de dentro, por favor!
-Tem que deixar sua enteada imobilizada, minha senhora! Ela pode ter quebrado alguma coisa! A senhora tava no carro também?
-No banco de trás. Mas eu não tô machucada, não... Por favor, Doutor, salva a vida da minha enteada, a mãe dela tá lá dentro também...
-Foi a mãe dela que tava dirigindo?
-O rapaz do caminhão que bateu na gente, devia ter bebido cerveja, não sei! Por favor, Doutor! Ela pode morrer!
-Fica calma! Já tem gente vindo pra fazer o resgate, eu vou pedir pra elas serem atendidas aqui, fique tranquila- ele a abraçou enquanto ela soluçava bastante devido ao susto.

/////

Acordei na tarde do dia seguinte. Meu pai estava ao meu lado, me olhando e segurando na minha mão, chorando muito.
-Onde é que eu tô?
-Filha... Graças a Deus que você acordou!
-Onde é que eu tô, pai?
-Você tava vindo pra cá com Celine e sua mãe. Um motorista bêbado avançou o sinal a bateu no carro que vocês tavam.
-Um acidente?- tentei me levantar, mas a minha cabeça, que estava enfaixada, doía muito. Meu pai me segurou.
-Por favor, minha filha, não se mexe. Eu vou avisar o Doutor que você já acordou, pra ele te dar o outro remédio.
-E elas? Onde é que elas tão?
-Celine saiu do carro na mesma hora. Correu e pediu ajuda. Não tem nenhum arranhão.
-Minha mãe?
-A Vilma, ela... Tá no quarto ao lado.
-Ela vai morrer?
-Ariela, os médicos tão tentando de tudo pra salvar sua mãe. Mas eles disseram que... A gente não pode mais ter esperança.
-E Bento? Você disse pra ele que ela vinha pra cá?
-Finalmente conheceu a mãe, como você quis que acontecesse. Só que Vilma não acordou. O médico disse que ela só tá esperando a hora.
-Por que você tá assim, desse jeito? Por que tá chorando, pai?
-Ele passou mal depois que tentou falar com Vilma e ela não abriu os olhos. Doutor Ronaldo disse que ele tem que se operar o quanto antes, mas ainda não acharam um doador. Bento tá morrendo, Ariela.
Aquilo me desesperou. Tudo parecia estar sendo em vão. Não havia forma de encontrar a luz no túnel que eu tanto procurava. A presença da Vilma, antes tida como um trunfo para lidarmos com a doença de Bento, virou uma tormenta ainda maior.

/////

Paralelo a toda essa tragédia, Rique conversou com o advogado de Norberto para saber qual era a real situação do pai.
-Não vai ser fácil conseguir a liberdade do seu pai, Henrique. Nem mesmo apelando pra um habeas corpus.
-Por quê?
-A polícia andou vasculhando as contas de Norberto e acabou descobrindo detalhes que vão tornar essa soltura praticamente impossível.
-E que detalhes são esses?
-Pra começar: ele hipotecou a mansão onde vocês moravam. Tudo pra conseguir dinheiro e pagar homens que aliciavam menores de idade. Eles enganavam meninas de onze, doze anos, prometendo um trabalho que durasse meio período, que elas pudessem conciliar os estudos com a carreira de modelo, procuravam essas adolescentes até em outros estados... E quando elas chegavam aqui, eram espancadas, colocadas em motéis de beira de estrada, e mandavam cartas pra famílias mentindo que estavam tudo bem.
-E o pior é que eu não me assusto com nada disso. Vi muito isso durante minha vida. Meu pai tratando menina mais nova que eu como se fosse mercadoria.
-Se você ainda não se surpreendeu, vou te dizer que existe mais por trás dessa estória. O testamento que sua mãe deixou antes de morrer foi falsificado.
-Como assim?
-A leitura feita há vinte e dois anos dizia que você, Henrique, poderia herdar tudo o que ela deixou aos vinte e cinco anos, e que até lá seu pai seria seu representante legal.
-Sim, o que é que tem isso?
-Era pra você ter herdado tudo há um ano atrás! Seu pai falsificou o testamento pra que você não assumisse a fortuna, e assim ele poderia administrar tudo que é seu de direito.
-Não, meu pai não fez uma coisa dessas...
-Mas fez, Henrique. Fez. Com o dinheiro, ele abriu uma conta no nome dele, e movimentava todo o montante. Não sobrou quase nada do dinheiro. Pra piorar, já passou do prazo de pagamento da hipoteca da mansão.
-Quer dizer que eu tô na rua?
-Quer dizer que o pouco que sobrou desse dinheiro herdado da sua mãe vai dar pra você recomeçar sua vida. Só que isso vai ser em outro lugar, porque nem você nem seu pai, se conseguir sair da prisão, terão onde ficar.

/////

O último dia do ano havia chegado. Com ele, os meus dezoito anos. Começava a caminhar pelo hospital, com a ajuda do meu pai e a de Celine. Transitava por entre os quartos: num, Bento estava sedado; noutro, Vilma em situação irreversível, com graves lesões corporais. Parecia que toda a minha luta acabaria ali. “Se Bento fosse realmente nos deixar, que ao menos nos deixasse com a alegria que havia recuperado recentemente, em decorrência do retorno da nossa mãe” era o meu pensamento. Mas eu voltei a me sentir culpada como há anos atrás e, novamente, por algo que não era de minha responsabilidade. Pensei que ter trazido Vilma contribuiu para o estado lamentável que meu irmão se encontrava.
Em uma única semana, eu consegui me sentir a pior pessoa do mundo. Cada vez mais eu me castigava por ter deflagrado toda aquela agonia... Eu me imaginava voltando pra casa, abraçando minha família. Só que, naquele dia, não havia espaço para felicidade. Vez ou outra, eu passava no quarto de Vilma para vê-la. Conversava, pedia perdão, implorava para que ela acordasse. Tudo em vão. Na maior parte do tempo, ficava ao lado do meu pai, que permanecia com as mãos sobre meu irmão. Celine ficava distante, devido à revelação que meu pai tinha feito, mas sofria por Bento também.
O que me fez desabar foi estar, junto à Celine, ao lado da janela do quarto, e vendo aquela multidão de pessoas se divertindo e comemorando a chegada de 2012. Meu pai continuava lá, velando o sono de Bento. E chorava, mas silenciosamente. A emoção se intensificou quando passamos a ouvir a contagem regressiva.
Os fogos de artifício que eram soltos naquele momento puderam abafar o “eu te amo” que ele repetia diversas vezes para Bento. Era uma das piores coisas que eu já tinha visto. Caminhei pelo hospital e decidi ir até o quarto de Vilma. Celine foi atrás de mim, com medo de que eu tomasse alguma atitude impensada devido ao meu desespero.
Ao chegar lá, duas enfermeiras entraram com o médico. Ele fez a massagem cardíaca e ligou o desfibrilador, na tentativa de reanimá-la. Vi o doutor cobrindo o rosto dela, vindo em seguida na nossa direção.
-Nós fizemos todo o possível. Eu sinto muito, mas...
Abracei Celine, mais uma vez.
-O que eu vou dizer pra Bento se ele acordar e perguntar dela?- comecei a chorar.
-Desabafa, meu amor. Chora! A gente vai encontrar a solução junto.
-Foi culpa minha, Celine! Eu sou a culpada! Vilma morreu por minha culpa!
-Não fala isso! Você só quis ver sua família unida de novo! Foi um acidente, Ariela! Um acidente!
As enfermeiras colocaram o corpo numa maca e o retiraram do quarto. Celine e o médico tentavam me tirar de lá a todo custo, mas eu não queria sair. Tudo parecia apontar para um único caminho: a aceitação de que a minha jornada toda foi em vão.

/////

Seguindo por uma interminável madrugada, estive sentada com Celine num banco que ficava entre os dois quartos. Meu pai deixou Bento sozinho por uns instantes assim que a esposa o avisou da morte de Vilma. Ele não precisou me dizer uma única palavra- apenas chorou comigo e me abraçou forte. Celine o olhava fixamente, e tinha certeza de que não era apenas um simples gesto de solidariedade que ele tinha para comigo: era a dor de quem perdeu a mulher que verdadeiramente amava, mas que preferia sofrer em silêncio, mascarando aquele sentimento diante do meu sofrimento.
Minha madrasta- que àquela altura, já conseguira provar que não estava disposta a carregar a imagem estereotipada de uma- ficou no quarto de Bento, atenta caso ele precisasse de alguma coisa. O longo abraço, que pretendia trocar com meu pai pela morte de Vilma, foi interrompido quando o médico que a atendeu veio falar conosco.
-Com licença. Desculpe interromper, mas qual de vocês é parente de Vilma Ramos de Oliveira?
-Ela é filha de Vilma, doutor.
-U-hum. E o senhor?
-Eu... – pigarreou- Fui casado com ela, embora a gente não tenha se separado pela lei.
-Desculpe ter de tocar nesse assunto, seu...
-Jayme. Jayme Oliveira.
-É que nós temos que dar entrada na papelada pra liberação do corpo e... Enfim, é doloroso, mas vamos ter que tocar no assunto. O senhor sabe se ela tinha família?
-Só os meus dois filhos, Doutor. Mas por que a pergunta?
-Porque nós queríamos saber se havia algum parente de Dona Vilma que pudesse autorizar ou não a liberação dos órgãos de sua esposa pra transplante.
-Mas o acidente que ela sofreu... Será que dá pra aproveitar alguma coisa?
-Seu Jayme, o que levou sua esposa... Sua ex-esposa a óbito foi um dano cerebral, provocado pelo acidente. Mas não há impedimento nenhum, mesmo porque Dona Vilma tinha quarenta anos, e não havia nenhum histórico de doença.
-Sinceramente, eu não sei o que dizer, Doutor. Acho que a gente deveria respeitar a vontade dela. Conhecendo a Vilma como eu conheci, eu acho impossível que ela manifestasse uma vontade desse tipo.
-Pai... A última coisa que ela fez na vida foi vim ver Bento. Isso não quer te dizer nada?
-Ariela, eu não tô entendendo.
-Eu autorizo, Doutor…
-Autoriza? Mas você é menor de idade, não?
-Não. Eu completei dezoito anos ontem. E eu acompanhei todo o sofrimento da minha mãe, que quis rever meu irmão. Doutor, ele tá muito mal, precisando de um coração novo. E os dois não conseguiram se ver, se falar, nada... Depois de tudo que eles passaram pra que esse encontro acontecesse, acho que merecem alguma coisa boa, mesmo sendo tão tarde.
-Filha, você quer doar o coração da sua mãe pra Bento?
-Podem ser os outros órgãos também, Doutor. Eu sei que essas coisas demoram, mas o senhor tem que ajudar. Não só o meu irmão, mas também os outros, que ficam esperando tanto tempo por uma operação.
-Se é assim... Vou falar com Dr. Ronaldo, que cuida do caso de seu irmão. Depois, eu trago a papelada pra você assinar. Tem certeza de que quer fazer isso, Ariela?
-Depois de tudo que me aconteceu na semana passada, Doutor, eu tenho certeza de que se eu não consegui realizar o último pedido de Bento é porque não era o último.
-Tudo bem. Eu vou procurar Ronaldo antes de largar do meu plantão. Mas ainda acho que você tem que maturar essa decisão, Ariela.
-Minha filha sofreu muito pra tomar essa atitude, Doutor.
-Tudo que Vilma queria era não ver Bento... Nesse estado. E vai ser por causa dela que ele vai sair daqui, Doutor. Com vida.

/////

Passaram-se uns dias até a data da operação. Nesse ínterim, Bento acordou, perguntou por Vilma e meu pai escondeu sobre sua despedida, pra que ele não chegasse a piorar. No entanto, vimos o quão fraco meu irmão estava. Chegamos a duvidar que ele saísse vivo da cirurgia. Lógico que não tecemos comentários sobre isso, não queríamos desesperar uns aos outros. Aquela cirurgia durou dez horas, mas parecia estar revivendo daquela semana infeliz.
Abordamos o Dr. Ronaldo assim que ele saiu do centro:
-Cadê Bento, Doutor?
-A operação foi tranquila, embora bastante cansativa. Nós vamos levá-lo para a sala de recuperação.
-A gente pode entrar pra ver ele?- perguntei animada.
-Só não pode demorar muito. Vem comigo.
-Ele vai se salvar, Celine. Meu filho vai conseguir se salvar!- disse meu pai para a esposa, seguido de um abraço emocionado.
Assim que entrei, ele abriu os olhos.
-Não demore muito, porque ele tem que repousar.
-Tudo bem. Já, já, eu saio- fui até a maca na qual ele estava deitado- Vai ficar tudo bem agora.
-Ariela... Desculpa.
-Desculpa por que, Bento?
-Por ter pedido que minha mãe viesse aqui. Eu sei que você tá triste. E sei que...
-Por favor, não fala nada, Bento. Você tem que descansar.
-Não. Me deixa falar. Painho falou que ela não quis saber da gente.
-Isso ficou lá trás.
-Só que eu não consigo esquecer. Eu fingia que tava dormindo... E escutava Celine contando pra Painho que... Você lutou muito, e ela não queria vir... Que só veio porque tinha medo do marido. Não veio por minha causa.
-Mas ela veio. E vai continuar entre a gente, mesmo que a gente não veja.
-Do que adianta? Se ela vier, vai continuar tudo igual. Esqueceu que ela não tem coração?
-Tem, sim. Bate em você, inclusive- coloquei a mão sobre ele.
-Como... Peraí, do que você tá falando?
-Mainha já te deu a vida duas vezes, Bento. Vai mesmo desistir de viver por causa dela?- consegui me fazer entender para ele, mas vi que estava abalado pela minha revelação. Não falamos mais nada.
-Ariela, eu vou ter que levá-lo ao quarto. Você pode dar licença?
-Pode ir, Doutor.
Nosso pai havia optado pelo silêncio durante anos. Resolvemos usar a mesma tática para o resto da vida, e nunca mais Bento e eu conversamos sobre Vilma. Não havia forma de substituí-la. Ele até tentou, reconhecendo todo o esforço de Celine e passou a tratá-la como uma mãe- ainda que distante, já que ela decidiu se separar. Cansamos do sofrimento que não acontecia por acaso, e sim porque nós nos sentíamos confortáveis em derramar lágrimas, em clamar por compaixão e dar a tudo uma dimensão gigante. Tudo que justificasse o nosso sofrimento. E por que nos vitimizávamos? Confesso não ter essa resposta até hoje. Só sei que não faz mais parte de nós. E nos sentimos melhores por isso.

/////

Não me tornei nenhuma pessoa especial depois de tudo o que aconteceu, não mudei, não amadureci. Sou a mesma. Só não continuei estacionada no tempo, como fiz durante catorze anos.
Dias depois, eu fiquei sabendo que havia sido aprovada no vestibular de Jornalismo. Como a cirurgia de Bento era algo recente, até cogitei a ideia de não cursar. No entanto, isso decepcionaria meu pai, e eu acabei me matriculando. No decorrer dessa graduação, nada de novo. Era uma vida monótona, só que bem melhor que toda aquela tensão que tomava conta de mim nos anos anteriores.
Um ano antes de terminá-lo, decidi adiantar a produção da minha monografia. Assim que marquei a data da minha defesa, chamei apenas a minha família: Bento (com a cabeça raspada por ter passado no vestibular de Medicina), o meu pai (todo orgulhoso) e Celine. Na banca, o orientador e o professor arguidor. Dentro do auditório, as pessoas que, além de Bento, foram beneficiadas com os transplantes de órgãos da minha mãe.
Tive quinze minutos para tratar sobre o problema, que era “O comportamento da mídia baiana acerca do investimento em obras decorrentes da Copa do Mundo”. Assim que a apresentação terminou, comecei a anotar as considerações que os professores fizeram, quando me dei conta de que você estava lá. Deixou o cabelo crescer e adotou uma barba. A roupa também não condizia com quem você era. Mas aquele jeito obstinado de me olhar entregava quem era, apesar dos três anos que se passaram desde a última vez que havíamos nos visto. Minha reação foi ficar extasiada, mas pude disfarçar. Celine percebeu e olhou para trás: te viu na primeira fila e entendeu que você não fazia parte do meu passado.
Confesso que depois disso, pouco assimilei sobre do que os professores gostariam que eu acrescentasse no texto. Quando ambos findaram a proposição de sugestões, o orientador voltou a tomar a palavra.
-Bom, eu vou pedir a todos que se retirem da sala por um instante, para que possamos chegar a um consenso sobre a apresentação e o texto da orientanda Ariela Ramos de Oliveira. Dentro de alguns minutos, nós vamos chamá-los e faremos, então, a leitura do resultado.
Pronto... Bastou que ele me chamasse de “orientanda” pra eu ficar em pânico (ou, pelo menos, que nele eu me mantivesse). Bento, meu pai e Celine- já do lado de fora do auditório- me parabenizaram pela apresentação. Difícil foi dar atenção aos demais que a acompanharam, todos querendo me abraçar e apertar a minha mão...
Ao mesmo tempo, meu pai tentava uma última aproximação com Celine.
-Você andou faltando esses dias ao restaurante... – notando que a conversa era particular, Bento voltou a ficar perto de mim.
-É que... Eu tenho ido ao médico.
-Tá doente? De quê?
-Não, muito pelo contrário. Eu tô ótima. Cada vez melhor. O que acontece é que... Já faz um tempinho que eu tenho lido umas coisas sobre inseminação artificial.
-Inseminação? Por quê?
-Não é lógico, Jayme? Pois é... Amanhã, eu vou fazer a primeira tentativa.
-Você quer ter um filho de um homem que você nem conhece?
-O problema não é o pai. Mesmo porque não saber quem é esse pai vai ser bom pra mim. Inclusive, eu pedi que não me dessem dados sobre o doador. Não quero imaginar como ele é. Só de saber que eu vou poder gerar um filho, eu me sinto feliz.
-E depois, Celine? O que você vai dizer? Quando seu filho crescer, ele vai querer saber que pai é esse...
-Ele vai. Eu não. Pra quê se preocupar com isso agora?
-Mas... Se você se interessar por alguém? Não era melhor você ter um filho de alguém que você ama?
-Aí é que tá, Jayme: eu não vou amar mais ninguém. Você foi o último. É melhor assim.
-Melhor pra quem? Pra você?
-Lembra que você disse uma vez que, assim que teve aquele problema de ter que criar seus filhos sozinho, não queria mais se apegar a ninguém, porque ficou com medo de sofrer? Entendi que você tem razão.
-Volta pra casa, Celine. Bento e Ariela amam você, sentem sua falta. Como eu também sinto.
-Um dia, eles vão crescer, Jayme. A madrasta vai ser uma figura que vai ficar no passado. E eu acho melhor que você comece a pensar em deixar as coisas ruins no passado, já que comigo você não conseguiu ser feliz. Eu torço, de coração, pra que você encontre uma mulher que aceite suas falhas, seus erros... Que seja mais compreensiva do que eu.
Quando todos se afastaram, fui na sua direção, mas o orientador avisou que nós poderíamos entrar. O arguidor leu que eu havia sido aprovada com a nota nove e que teria dez dias para fazer as poucas alterações necessárias. Minha cara de alívio coincidia com a festa que todos fizeram, com mais felicitações e muitas fotos. E eu, que me preparava para este momento por dois semestres, me via completamente despreparada pra ter de encarar você, a quem eu esperava há três anos, desde que eu deixei aquele hotel no Recife.
-O que você tá fazendo aqui?
-Somos colegas de curso, sabia?
-Como assim, cara?
-Também fiz vestibular pra Jornalismo, lá na UFPE. Aproveitei que meu semestre terminou um pouquinho antes do seu e vim te ver.
-Mas como foi que você entrou aqui?
-Teu orientador, Carlos Arantes, é amigo do meu chefe. Faz um tempo que eu tô cobrindo umas matérias num jornal de lá de Pernambuco.
-Quem diria que você ia tomar jeito na vida?
-É. Parece que meu pai aprendeu a lição de me ensinar as lições dele.
-Onde que ele tá?
-Só foi o tempo de vocês saírem do hotel que a polícia prendeu ele. Descobriu uma coisa pior dele, que ele tava me enganando, enfim... Eu fiquei sabendo o que houve com Vilma. Meus sentimentos.
-Pois é, Rique- as lágrimas me vieram aos olhos- Mas esquece. Hoje é dia de comemorar! Ainda tô besta como foi que você me achou.
-Google, Ariela. Joguei seu nome e descobri o seu curso.
-E você veio a Salvador só pra me ver?
-Principalmente pra isso. Só que minha visita é a trabalho.
-Hum... Quer fazer uma matéria comigo?
-Uma matéria, não. Um livro.
-Livro?
-A editora do jornal tá pedindo pra gente colher depoimentos, histórias que sejam bem emocionantes, pra lançar em livros, só pra assinantes. Foi quando lembrei daquela menina atacada que ficava cercando a mãe e o padrasto. Tudo pra realizar o desejo do irmão... Como é que ele tá?
-Vivo. Mais vivo que antes, totalmente curado.
-Eu queria conhecer ele. Claro, depois que a gente sair pra tomar um café.
-Vai ser difícil. Não tomo café desde que eu tinha uns... Três anos? Mas tudo bem. Por você, eu faço um esforço.
-OK, a gente procura outro programa pra fazer... Você continua linda.
-Olha que eu tenho muito pra contar, viu, seu Henrique?
-Henrique, não. Gabriel. Uso um pseudônimo pra escrever no jornal. E também porque você sabe, a mídia queria cair em cima de mim, querendo informação sobre meu pai.
-Que esquisito... Logo você, sendo filho de quem é, trabalhando na imprensa?
-Pra me distanciar do que eu vou ser pra sempre. Mas não de tudo, nem de todos... De todas.
-Pega um notebook e bota pra recarregar. Depois que eu entrei naquele carro, eu consegui muita coisa pra contar. Vai se cansar.
-Não de você. Nunca. Definitivamente, você veio pra me provar que ter viajado até Salvador foi a melhor coisa da minha vida.
-Isso é cedo pra dizer. Mas faço questão de te provar que é verdade.
-Então, me dá seu telefone. A gente marca de se encontrar- e você discou seu número no meu celular, para depois salvá-lo.
-Quando a gente se vê?
-Deixa que eu te ligo.
-Promete?
-Juro, juro que te ligo.
-Então... Vou ficar te esperando- deu-me um beijo no rosto, e saiu da universidade.
Seu celular tocou em trinta segundos. Você não conhecia o número, e nem sonhava que uma história de amor finalmente deslancharia após atender aquela ligação.
-Então, Gabriel...
-Ariela?- riu, sem graça por ter me achado um tanto fria durante o desfecho da conversa.
-Quanto tempo a gente tem pra tomar aquele café? Se depender de mim, todo o tempo do mundo...

09/07/2015

TEMPO PERDIDO/ CAPÍTULO IX

Rique escutava tudo pela porta da frente, sem ter entrado.
-Fala alguma coisa, Vilma. Detesto ter que jogar as coisas na cara dos outros. Só quando seu filho morresse é que eu ia saber da verdade?
-Norberto, você bebeu? Que loucura é essa que você tá falando?
-Deixou a mala cair por quê? Medo de mim?
-Deixei porque não tem sentido isso que você tá falando! Filhos? Eu não tenho filho nenhum!
-Talvez eu possa resolver toda essa situação dando um simples telefonema. Eu ligo em seu nome para o hospital, digo a Bento ou pro pai dele que você não vai vê-lo e pronto. Claro que... Ariela vai fazer um escândalo. Inclusive, ela disse que vem aqui pra tentar negociar conosco. Caso contrário, ela vai procurar a Folha pra contar tudo. A esposa de Norberto Nunes, em vez de acompanhar o marido em festas e delegacias, agora é protagonista de outro problema. O que você acha que podemos fazer nesse caso?
Ambos ficaram calados por um tempo. Ela desceu às escadas, e ele a seguiu.
-Muito bem. Ela não vai precisar vir. Ontem mesmo, quando eu a tirei daqui, pensei em ir viajar, aproveitar essa nossa crise e fazer o que ela quer. Tudo pra não te decepcionar. Só que... Agora eu vou ter que ir de todo jeito. Vou evitar expor seu nome... – toma um susto quando Norberto a empurra no chão. Rique ouve a queda e entra.
-Sua filha não me disse nada! Eu nem cheguei a falar com ela...
-Quer dizer que...
-Eu joguei um verde, Vilma! Só tinha desconfiado, mas não tinha certeza. Ou melhor, não queria ter certeza... Como é que você teve coragem de fazer isso com seu filho? Você só ia viajar pra essa tal de Ariela não me contar nada?
-O meu passado não te interessava! Você nunca quis saber o que eu tinha deixado pra trás... Por que essa crise de consciência agora?
-Porque uma pessoa tá morrendo! Um adolescente tá numa cama de hospital, querendo te ver!
-Desde quando você se importa com alguém? Quantas meninas, da idade dele, você tirou de casa, e jogou na rua pra se venderem? Hein? Agora quer ser o padrasto zeloso? Conta outra, Norberto!
-Pelo menino, eu não me importo. Agora, eu penso em mim. No que isso poderia causar à minha imagem. Você e a sua filha rejeitada me expuseram aqui em casa, na boate... Depois, ainda inventou de querer sair daqui como se fosse uma criminosa, uma bandida...
-É isso que ela é, Painho. Mulher que deixa os filhos pequenos, pra mim, não presta!
-Foi você, não foi? Você que encheu a cabeça do seu pai com essa ideia de ir atrás da minha vida antiga!
-Se fosse comigo, você ia fazer a mesma coisa, né, Vivinha? Mas não foi por você, não. Aliás, perder tempo contigo não dá! Fiz pela tua filha. A garota veio da Bahia atrás de você, e foi ignorada. Até por prostituta se fez passar pra você mudar de ideia. Quer saber? Foi bom mesmo ela não ter tido a mãe do lado esses anos todos. Ela tem mais dignidade do que você, que tem o dobro da idade dela.
-Parece que seu plano de me tirar dessa casa finalmente deu certo. Agora seu pai só vai ter de dar conta de um vagabundo só pra sustentar.
-Até que enfim, né? Não aguentava dividir espaço com você, outra vagabunda!
-Escuta aqui, seu moleque...
-Ninguém vai sair daqui! Tudo continua do jeito que está!
-Como é que é?
-Rique, pega o carro. Nós vamos sair. E você vem com a gente.
-Norberto, o que você vai fazer?
-Eu não vou fazer. Você vai! Dá a chave do seu carro pra ele.
-Pra quê, Norberto?
-Não parece que você está em condições de me fazer pergunta agora. Dá a chave do teu carro pra Rique, vai! Eu não tenho o dia todo- obedeceu ao marido- Ótimo, podemos ir.
-Me diz o que você vai fazer, Norberto...
-Fica tranquila, eu não vou mandar te matar. Só se você não vier comigo.
-Então, o que você quer? Me humilhar? Dizer que eu não presto? Me bater?
-Já que eu não pretendo te constranger na frente dos outros... Toma- abriu a carteira e deu algumas notas de cem reais- É pra você?
-Pra quê esse dinheiro?
-Você não precisa levar nada, Vilma. Tudo o que você pensou em levar vai ficar aqui.
-É isso? Acabou nosso casamento? Tá me expulsando só com a roupa do corpo?
-Vilma, menos. Nosso casamento, ou aquilo que a gente chama de casamento, continua. Só que hoje você não dorme aqui.
-Peraí, Pai... Dá pra explicar?
-Só o que vocês têm que saber é que vão ter de fazer o que eu mandar. E você vai fazer, Vilma, pra não perder o que tanto trabalho deu pra conquistar tudo o que tem- continuou irônico- Ela não deu a chave pra você ficar segurando, Henrique... Liga de uma vez o carro dela!- saiu logo na frente- E leva a gente pra onde eu falei!

/////

-A sua irmã volta pra cá hoje, pra te ver.
-Vai trazer minha mãe?
-Isso eu não sei, Bento. Falei com Celine e ela me disse que as duas vão chegar hoje. Vão pegar o avião da tarde.
-Ela te disse alguma coisa pro senhor ficar com essa cara?
-Não. Quem disse foi você.
-Eu?
-Aquele negócio de não ter mais segredo. Revelei um pra Celine. Ela não me disse nada, mas eu sei que ela ficou magoada.
-Pelo menos o senhor teve coragem. Só falta ter comigo.
-Como assim, Bento?
-Me conta por que Mainha saiu de casa.
-Filho, você não tem condição de ouvir nada sobre isso.
-Das duas uma: ou vocês brigaram ou ela quis deixar a gente.
-O que você acha que aconteceu?
-Só pode ter sido a primeira. Uma mãe não ia deixar os filhos. Eu nem um ano tinha... Ou foi isso?- meu pai não queria ter que dar explicações, até que Bento gritou- Para de me fazer de besta e fala!
-Não faz isso comigo... Não faz isso com você, você tá doente, Bento.
-Tá estranhando que até agora o médico não veio me ver? Ele foi atender um senhor de cinquenta anos, que tem o mesmo problema que eu. Tava na minha frente pro transplante; era o único, e esperou dois anos. O cara morreu, sabia? Agora, Dr. Ronaldo tá no consultório, tentando dar a notícia pra família dele.
-Por que você tá me contando isso?
-Pra saber se o senhor vai esperar que eu piore pra contar o que houve com Mainha.
-Sua mãe não tava feliz. Ela tinha um marido, dois filhos e uma casa. Mas parece que ela cansou. Uns dois dias depois do Natal, ela foi embora quando a gente tinha ido dormir.
-Fugiu com outro homem?
-Não. Foi viver com ele. Mas ele não sabe dessa família antiga.
-Quando foi que o senhor ficou sabendo disso tudo?
-Muitos anos depois, filho. Ariela soube no domingo passado, porque eu tive que contar, pra ver se ela conseguia achar sua mãe.
-Achou?
-Achou. Só não sei se ela vem. Bento, deixa a sua irmã chegar. Ela e Celine vão te explicar tudo com calma.
-Tô entendendo por que tanto segredo...
-Bento, meu filho... Eu quero que você responda uma coisa pra mim, mas eu quero toda a sua sinceridade.
-Fala.
-Quem é que você ama, mais que tudo nesse mundo?
-O senhor, a Ariela...
-É pela gente que você tem que lutar, Bento. Sabe por quê? Porque você não ama sozinho. Ainda tem gente que ama você- deixou-se emocionar- E cada dia a menos pra você é uma morte pra nós. Sobreviva por você, meu filho, pelo seu pai e pela sua irmã. Nós não vamos conseguir continuar se você não quiser ir em frente.
Eles trocaram, naquele momento, o abraço emocionado que eu queria estar presente para também receber. Oportunidades surgiriam.

/////

Enquanto isso, eu estava no quarto de Celine, tentando descobrir o que meu pai tinha dito pra deixá-la tão abalada.
-Você não vai falar nada, não? Celine, se for com Bento, me fala de uma vez. Eu não aguento mais esse nervoso.
-O problema é comigo, Ariela. Foi uma coisa que seu pai me contou. Só tem a ver com a gente.
-Não fica assim. Daqui a pouco, a gente volta pra casa e você se acerta com ele.
-Minha vontade é de te deixar em casa, e eu voltar pra cá. Ou ir pra qualquer lugar, onde eu não tenha que cruzar com ele.
-Nossa, foi tão grave assim?
-Se eu não respeitasse você e Bento, eu já tinha voado pra cima dele. Mas não adianta falar. O meu ódio não vai passar, nem apagar o que ele fez.
-Quer dizer de uma vez?
Bateram a porta.
-Você chamou alguém do serviço de quarto?
-Eu não.
-Atende e diz que não quer mais nada, que nós vamos fechar a conta daqui a meia hora, quando o táxi chegar- abri a porta e dei de cara com Norberto.
-O que o senhor tá fazendo aqui?
-Acha que eu não vim cobrar aquilo que você ficou me devendo de madrugada?- num impulso, eu tentei fechar a porta, e Celine estranhou aquilo tudo. Norberto acabou sendo mais forte e a empurrou contra mim.
-Sai daqui! Eu vou chamar a segurança!
-Que segurança? A que foi comprada por mim, pra me deixar entrar? Chega de jogo, de ameaça, de entrelinha... Vamos ao que interessa: a verdade- voltou-se para a porta- Entra, Henrique- e ele veio, acompanhado da minha mãe.
-O que essa mulher tá fazendo aqui?- Celine bradava, com rispidez.
-Ué, o que vocês queriam que ela fizesse: ir com vocês.
-Você contou pro seu pai?
-Ele tinha que saber, Ariela. Se eu não contasse, ela não ia nunca.
-Mas são mesmo mãe e filha. Uma esconde, a outra mente.
-O senhor quer o quê? Recriminar Ariela por ela ter procurado a mãe? E se ela dissesse a verdade, ia fazer o quê?- Celine não colocava panos quentes na situação.
-Parece que eu vou ter que pôr as cartas na mesa, porque vocês duas são lentas de raciocínio. Vilma não só vai com vocês, como tem que ir.
-Tem que ir? Por quê? Começou a pensar em Bento?
-Só estou fazendo isso pelo meu marido. Não quero comprometer a imagem dele.
-Mas é mesmo uma cínica...
-Vê lá como você fala comigo, sua...
-Para! Para com isso!- fiquei entre Vilma e Celine, tentando evitar uma briga- Tem certeza de que a senhora quer ir, já que disse tanto que não ia viajar com a gente?
-Melhor do que isso, Ariela. Vivinha vai levar você e sua madrasta.
-Levar como, Norberto? Eu não sei pilotar seu jatinho.
-Estou falando do seu carro. Foi por isso que disse pra você entregar a chave a Henrique. Daqui, vocês seguem viagem.
-Norberto, elas moram em Salvador!
-Disso eu também já fui informado, Vivinha. Foi exatamente por isso que te dei aquelas notas de cem. Se a gasolina acabar ou o pneu furar, vocês estarão precavidas. E se algum guarda te parar na rodovia e atrasar a viagem, já é dinheiro suficiente pra você molhar a mão dele. Se quiser, eu empresto meu talão de cheques.
-Espera, eu comprei as passagens. As malas já estão prontas, eu já chamei o táxi pra...
-Cancele, minha senhora. Não vão ter mais que pagar nenhum centavo pra voltar à Bahia. Aliás, podem fazer a conta de tudo o que vocês gastaram durante esses dias aqui em Recife. Minha esposa irá reembolsá-las.
-Até quando você pretende ficar me humilhando, e me expondo ao ridículo dessa forma?
-Até me cansar! E elas não poderão dizer nada pra te defender. Talvez estejam com o mesmo nojo que eu. Além disso, elas sabem que não é seu amor de mãe que tá te levando pra Bahia de novo. Fique tranquila, Vilma. Nada do que você tem será perdido.
-Está bem, Norberto. Eu vou fazer como você quiser.
-A senhora... Já trouxe sua bagagem? Tá no carro?
-A bagagem da Vilma está no corpo dela. É só disso que ela precisa.
-Seu Norberto, o senhor não acha que tá passando dos limites com ela?
-Eu até entenderia o fato de você defender sua mãe, menina. O que eu não entendo é você, depois de tudo o que tá acontecendo, tentar livrar a cara dessa mulher- foi em direção à Celine- Vamos à recepção. Eu quero pagar a última diária.
-Olha, Norberto, eu mesma pago. Passei por tudo isso pelo amor que tenho pela minha enteada, não vou deixar que outra pessoa arque com as despesas. Não faça questão disso também.
-Tudo bem. Eu lhe acompanho até a recepção. Henrique e Vilma: aguardem até que alguém venha buscar as malas. Nos encontramos lá embaixo- abriu a porta para Celine, que desconfiava cada vez mais das intenções de Norberto. Cheguei perto de Rique.
-Posso falar com você rapidinho? Lá fora?
-Não precisa fazer segredinho com ele, não. Foi ele que contou pro pai que eu tinha uma família. E certamente foi você quem abriu o jogo.
-Quem me contou foi a madrasta dela. E sabe que foi bom, Vivinha? A essa hora, você já teria dado um cano em todo mundo, procurando um velho que tivesse mais grana que meu pai.
-Eu tava embarcando pra lá, seu imbecil! Ia ver Bento sem seu pai saber! Mas como sempre, você estragando tudo. Matar a sua mãe não foi suficiente?- olhei para ele assustada, pois pouco sabia sobre ele, e o pai já não me inspirava confiança.
-Sempre que você me colocava de castigo, dizia isso. Graças a você, Vilma, eu descobri hoje que eu tenho caráter. Finalmente, eu consegui superar você- pôs a mão em meu ombro e me levou pra fora do quarto. Conversamos no corredor.
-Eu queria te agradecer por ter falado com seu pai.
-Era o mínimo. Depois do que eu fiz hoje de manhã... Eu fui um idiota.
-Você não tinha como saber que eu não era quem você tava pensando... Por que ela te chamou de assassino?
-Eu não conheci minha mãe. Ela morreu no meu parto.
-Caramba...
-Sabe quando uma coisa foge do teu controle, e você se culpa por aquilo ter acontecido, mesmo sabendo que a culpa não é sua?
-Sei bem. Pensei que Vilma tinha se irritado comigo e fugido de casa por isso. Só tinha três anos.
-Pois é. Sempre me achei o pior cara do mundo, que não presta pra nada, que acaba com tudo o que toca. Vilma contribuiu bastante pra eu pensar isso, pra que eu me sentisse essa bosta de homem!
-Então, por que tá me ajudando?
-Porque talvez seu irmão, que tá doente, mude Vilma. Ele pode não conseguir, mas não custa nada tentar. E também porque eu gosto de você. Gosto desde o primeiro dia, quando seu táxi acabou com minha moto.
-Uma pena que a gente tenha se conhecido assim.
-Quem sabe um dia, a gente se encontra e... Começa uma coisa mais bacana, feliz... Sem forçar nada, sem atropelamentos, sem madrasta pra atrapalhar?
-Parece que a nossa amizade começou muito troncha...
-A amizade, sim. O que vem depois é que eu não sei...
Um camareiro chegou ao quarto para pegar as malas, e nós só sabíamos nos olhar.
-Vai que você não demora pra me procurar na Bahia...
-Não vai dar, pelo menos por enquanto. Tenho que ficar do lado do meu pai. Parece que agora a coisa descambou de vez- explicou, se referindo ao escândalo de exploração sexual.
Vilma saiu do quarto com o camareiro.
-Já podemos ir pro carro. Sua madrasta acertou a conta com o hotel. Vamos logo com isso.

/////

O camareiro colocou todas as malas no carro de Vilma. Dei um abraço apertado em Rique, agradecida por ele ter me entendido. Não falamos mais nada, apenas alimentamos o desejo de nos reencontrarmos numa situação melhor. Tentei cumprimentar Norberto, mas ele me ignorou; direcionava muitos olhares de reprovação à esposa, que colocava o cinto, louca para terminar o pesadelo que, para ela, acabava de começar. Entrei no carro ao lado de Celine. Assim que fomos embora, naquela despedida silenciosa, pai e filho pegaram um táxi e foram pra casa.
Dentro do táxi, ambos conversavam sobre o futuro daquele casamento.
-Vai aceitar a Vilma depois que ela voltar de Salvador?
-É minha mulher, Henrique. Querendo ou não, eu já me habituei a ela.
-Sei, não, hein? Se ela resolve abandonar o senhor também...
-Não fala besteira. Ela não vai fazer isso. Não enquanto eu tiver dinheiro, e der uma vida boa pra ela.
-E o senhor vai se prestar a isso por quê? Gosta dela?
-Olha pra mim, Henrique. Se alguém se interessa por mim, é pelo que eu tenho.
-Fica orgulhoso disso?
-Henrique, eu sei muito bem o que eu construí.
-Eu perguntei se o senhor gosta dela.
-Olha, eu vou dizer pra você uma coisa: não pense que um homem fica preso a uma única mulher toda a vida. Existem necessidades que nem sempre são supridas pela mulher que é sua companheira.
-Já deu pra perceber pela quantidade de prostituta que você levou pra fazer programa em casa. Eu só quero saber se você vai dar um pé na bunda da Vilma ou não- o táxi chegou à mansão.
-Bom, se eu estou te enrolando o caminho todo com essa resposta, é porque eu não quero falar sobre esse assunto, deu pra entender?- pagou o motorista e desceu do táxi. Quando Rique abriu a porta, viu seu pai ser surpreendido por policiais.
-Sr. Norberto Figueira Nunes?
-O que foi agora? Outro mandado de busca e apreensão? Ou será uma daquelas intimações para depor durante horas? Isso já está ficando monótono...
-O senhor está detido por exploração sexual de menores.
-Eu? Preso? Sem falar com meu advogado, eu não vou pra lugar nenhum.
-Não seja por isso. Nós já localizamos seu advogado. Está na delegacia, que é pra onde o senhor vai- enquanto um dos policiais algema Norberto, o filho assiste à cena que sempre temeu que fosse acontecer.

/////


Já eram três horas da manhã da quinta-feira, 29 de dezembro de 2011. Nós só havíamos parado por vinte minutos durante a noite anterior, para comer. Celine já se sentia estafada da viagem quando, numa tentativa de construir diálogo com Vilma, perguntou se ela também sentia fome. Sinalizou com a cabeça que nada queria, para depois soltar:
-Não vejo a hora de chegar nesse hospital de uma vez.
Por muitas horas, essa foi a única frase que ela pronunciou. Celine acabou adormecendo. Quando chegamos à avenida na qual ficava o hospital particular no qual Bento havia se internado, até cheguei a propor:
-Você não quer ir pra casa?
-Pra sua casa? Fazer o quê lá?
-Já é de madrugada, Vilma. Dá pra gente dormir, tomar um banho, descansar... Sei lá. Não é melhor, não?
-Prefiro chegar lá o quanto antes.
-Que pressa é essa? Só você vai visitar Bento numa hora dessa.
-Por isso mesmo. Ninguém pra atrapalhar, nem interromper a farsa que vamos protagonizar. Não precisamos de plateia pra isso.
-Você fala como se Bento não gostasse de você, como se ele tivesse me mandado pra Recife só pra acabar com sua vida.
-Olha, eu não duvido do amor que ele possa sentir por mim. A farsa da qual estou falando é esse amor que eu vou simular por ele quando der de cara com ele.
-Meu Deus do céu, é tão difícil assim sentir alguma coisa? É seu filho!
-Disso você me lembra a cada quinze minutos. Mas eu não consigo. Simplesmente não consigo. Talvez essa falta de amor pela minha família seja a minha única falha. Mas quer saber? Eu não me sinto culpada por isso, nem um pouco. Por mais que apontem o dedo na minha cara, me condenem, eu não me arrependo do que sou, do que me tornei com o passar do tempo. E já que eu vou ter que fingir que tipo de mãe eu sou pros meus filhos, ou pelo menos pra um deles, paciência...
-Por que é que você tá vindo com a gente, então?
-Pra não perder Norberto. A resposta soa meio óbvia, nem precisava ter me perguntado isso, Ariela.
-E acha que ele vai querer você de volta? Ele não deixou nem que você trouxesse roupa pra vir até aqui, te deixou sem dinheiro. Só com esse carro, e ainda por cima pra trazer a gente.
-Não dizem que a gente pode vencer alguém pelo cansaço? Pois é. Vou usar sua estratégia, Ariela. Não funcionou comigo porque a fofoqueira da sua madrasta desembuchou tudo pra Henrique. Mas deixe estar. Vou voltar ainda mais revigorada, sabendo como seduzir aquele homem. E vou continuar levando a vida que sempre tive, e fiz questão de levar durante esses anos todos.
-Impressionante... Sabendo que tipo de homem é ele... Vem cá, a senhora não sente medo do que ele pode fazer?- ela riu, pela primeira vez desde que nos revimos.
-Norberto pode ter rabo preso, sim, mas pior do que isso é não saber a hora de ficar calado. Escutei muita coisa da boca dele, Ariela. Duvido muito que ele me expulse de casa. Também não acho que chantageando meu marido ele se atreva a me atirar morta numa vala.
-Quanto mais você fala, mais eu me arrependo de te lutado tanto pra você ver Bento.
-Ah, não me diga...
-Pelo que eu tô vendo, foi perda de tempo.
-É mesmo? Por que, filha amada?
-Porque ele não merece ser seu filho. Como eu também não mereço.
-Claro, agora vai apelar pra chantagem sentimental! Eu sou a mãe desnaturada, a triste, a infeliz que não merece um pingo de consideração- começou a levantar o tom de voz, acordando Celine, que estava dormindo no banco de trás- Só que ninguém pensa que essas “pobres crianças desprotegidas” destruíram a minha vida! Ninguém olha pro meu lado, e vê que eu não abandonei os meus filhos, e sim deixei pra trás uma família que nunca existiu! Se depender de vocês, eu que me dane! O importante é a felicidade de todo mundo, até do meu ex-marido carente! Menos a minha! Eu posso mentir, eu posso manipular, eu posso distorcer a verdade e ser conveniente pra vocês, mas uma coisa vocês vão ter que engolir: eu não me arrependo de nada! E vou ser assim até o dia da minha...
-Cuidado!- apavorada, Celine viu um caminhão desgovernado que acertou o carro em que estávamos, e que deslizou onze metros na pista.