07/11/2014

MENTES/ CAPÍTULO 20: NÃO SE ASSUSTE COM AS VERDADES QUE EU DISSER


Felipe mede a temperatura de Bruno. Retira o termômetro debaixo da axila do rapaz.

-Trinta e sete e meio. Ainda com febre, mas pra vista do que estava, melhorou bastante. E a perna?
-Ainda doendo, mas aliviou mais depois do remédio que o senhor me deu.
-Bruno, ontem você... Ontem, você falou umas coisas, quando a sua febre estava muito alta. Confesso que fiquei preocupado, apesar de entender que você estava tendo alucinações.
-O que foi que eu falei?
-Que tinha uma moça que estava fazendo de tudo pra te colocar na cadeia. Inclusive, que ela roubou um explosivo da sua sala e botou no carro de alguém.
-Está enganado se pensa que foi um delírio. Tudo verdade.
-Mas... – levanta-se da cama- Por que você não foi à polícia contar isso?
-Vontade não me falta, só que eu preciso comprovar o que digo. Só tenho o testemunho da minha nova secretária, o que não vale muita coisa.
-Não?
-Ela era amiga da Virna, a moça que morreu. Não vai querer denunciar a irmã dela, não é?
-Bruno, eu queria muito te ajudar, mas não sei como.
-Já está ajudando.
-Como? Quanto mais você fala, mais eu fico em dúvida se devo te manter aqui.
-Mesmo que você não me deixe aqui, eu só te peço pra não me mandar pra cadeia.
-Só que eu não sei tanto sobre você pra dar tanta confiança.
-Então é isso? Você quer saber de tudo sobre a minha vida? Pega a pipoca, padre. Prometo que vai ser muito divertido.
-Sem ironias.
-Tudo bem. Então, eu vou contar tudo. Começando pela parte mais dramática, que nem de longe é essa.
-Como assim? Seja mais claro.
-Até os doze anos, eu tinha uma vida normal. Quer dizer, depende muito do que chamamos de “normal”, não é?
-O que aconteceu?
-Minha mãe desconfiava que o meu pai, o famoso arqueólogo Plínio Reinchenbach, tinha uma amante.
-Nunca teve certeza?
-Um dia, ela teve uma viagem marcada pra Belo Horizonte, a trabalho. Lembro que ela falava disso o tempo todo, e eu não entendia por quê. Era dia 07 de novembro de 2002, uma quinta-feira. Minha escola inventou de fazer um passeio, e eu pedi pra ir.
-E depois?
-O Plínio, meu pai, inventou de trazer a amante dele lá pra minha casa, depois do alarde que minha mãe fez sobre a viagem. Ainda mais eu no passeio da escola- conta tudo com frieza de detalhes- Ele não sabia que era uma armadilha.
-Da sua mãe?
-Ela imaginou que ele fosse escapar de casa naquele dia pra se encontrar com alguém, e cancelou a viagem, que estava marcada. Entrou em casa, sem fazer barulho. Pé ante pé. A casa foi tomada por um aroma insuportável, vagabundo. Da sala ela sentia o cheiro.
-Espera, você não estava em casa... Quem te contou isso?
-Liguei da excursão lá pra casa, pra pedir a bênção ao meu pai. Era meio-dia, hora do almoço. Tinha esse costume. Quem me atendeu ao telefone foi a Noêmia, minha governanta.
-Residência da Família Reinchenbach.
-Noêmia? Sou eu, Bruno. Passa pro pai, por favor.
A porta da mansão se abre. Trata-se de Helena, a mãe do então garoto.
-Dona Helena? O que a senhora está fazendo aqui?
-A minha mãe “tá” aí?- pergunta Bruno, do outro lado da linha.
-Você consegue sentir?- Helena aponta para a escada- O cheiro do perfume barato que o Plínio chega no colarinho todas as noites! Com quem o Plínio está em lá em cima, Noêmia?
-Eu não vi ninguém com ele, senhora...
-Mas eu vou ver!- sobe até o quarto.
Noêmia, preocupada, segue a patroa.
-Alô? Noêmia, você “tá” aí ainda? Mãe?
Ao chegarem ao quarto, Helena e Noêmia encontram as roupas de Plínio e Letícia jogadas ao chão. A bolsa da amante está aberta e, junto a ela, o vidro do perfume que ela costuma usar. Um frasco vermelho, que Helena toma em suas mãos.
-“The Colour Of The Risk”... Até o nome é tão vagabundo quanto os dois... – Helena abre o perfume e confirma o aroma que sentia em Plínio. Passos adiante, ela os vê abraçados e nus em sua cama. Deixa o recipiente cair, fazendo-os despertar.
-Helena?
-Não quero explicação nenhuma, Plínio.
-Calma, meu amor. Eu posso explicar.
-Quem precisa manter a calma é você. Aliás, tem que ter muita calma pra colocar uma vadia dessa na cama onde você dorme com a sua mulher todas as noites! Que você fizesse isso fora daqui, já seria difícil de perdoar... Mas colocar ela na minha cama, se aproveitando da ausência do seu filho?
-Helena, por favor, você tem que me escutar.
-Você também vai ter que me escutar, Plínio... Na audiência de divórcio, porque lá será quando vamos nos falar de novo... Eu vou pra Belo Horizonte. E quando eu voltar, eu não quero encontrar nem mesmo um lenço de papel seu nessa casa! Fica longe de mim, e do nosso filho.
-Helena, me espera! Helena!- Plínio veste a roupa e segue a esposa, a toda velocidade no carro.
Helena estaciona o seu automóvel no heliporto e pilota a própria aeronave. Plínio tenta alcançá-la, mas ela decola. Ele encontra outro helicóptero, desta vez com um piloto.
-Segue aquele helicóptero!
-O quê? Quem é o senhor?
-Eu pago o que for, mas segue aquele helicóptero! Rápido! Antes que ela faça alguma besteira!
-E ele foi atrás da minha mãe. Cheio de remorso, cheio de culpa. Isso só veio a aumentar quando...
-Por favor, continua...
-Quando ela perdeu o controle do helicóptero e caiu ao mar.
-Virgem Santíssima. Quer dizer que você é...
-Órfão de mãe. Mas passei a me considerar órfão de pai também, Padre.
-Não diga isso.
-Digo, porque não acabei de contar a estória toda.
-E tem mais?
-“Tá” com pressa pra exorcizar alguém, por acaso?
-Já disse pra deixar de ser irônico.
-Tudo bem, desculpe. Ela engravidou dele, e os dois se casaram. Coisa de semanas. A amante foi promovida. Tentou se dar bem comigo, bancar a mãe... E eu alimentava o ódio que eu sentia, com mais gosto ainda.
-E esse bebê que ela teve?
-Morou conosco até que eu me mudasse, por causa do meu casamento. É por isso que eu o odeio. Basta eu pôr o olho nele que a cara daquela mulher me vem à cabeça.
-Não diga tolices. Esse garoto é inocente em meio a toda essa estória.
-Tão inocente que é isso que meu pai gosta nele. William é o filho preferido porque guarda boas lembranças da mamãezinha dele. Eu não. Sempre fui o problemático, o que nunca se conformou com o destino, que nunca quis viver com o que sobrou da família. Por isso, o Plínio gosta mais dele.
-Ele, então, não sabe que, antes de ser concebido, a mãe era amante do pai?
-Não. Mesmo porque nosso pai teria algo a mais pra contar.
-Sinceramente, eu compreendo cada vez menos...
-A Letícia, a amante promovida, ela... Enfrentou uma depressão pós-parto após a gravidez. Ficou fria, distante do meu pai. O apetite sexual dela diminuiu consideravelmente, exceto pelo psiquiatra.
-O que ele tem a ver com isso?
-Tudo. Bastou que ele a diagnosticasse com depressão pós-parto que o relacionamento dela com o Plínio esfriou de vez. O psiquiatra vinha, passava alguns medicamentos, perguntava como ela estava... Muito atencioso. Até demais.
-Por favor... Você não está sugerindo que a sua madrasta e o médico tinha um...
-Um bom momento, padre. Um bom momento para dar o troco naquilo que o Plínio fez com a minha mãe. Eu me escondia atrás da porta, escutava tudo. E aí, eu preparei, com meus treze anos, aquela surpresa...
-Pai, vem comigo.
-O que houve, Bruno? Aconteceu alguma coisa com o bebê?
-Fala baixo, não aconteceu nada com ele. Vem comigo- Bruno abre a porta do quarto e encontra Letícia e o médico particular aos beijos. Ela abre os olhos e repele o psiquiatra.
-“Taí”. A mulher com quem você traiu minha mãe.
-Dá o fora daqui.
-Plínio, não é nada disso que você está pensando- o médico é interrompido por um soco.
-Vai sair por conta própria ou quer que eu mesmo tire, inclusive fazendo o mesmo com ela?- grita, apavorando o homem, que sai às pressas- Como é que você teve coragem de fazer isso comigo?
-Você não me ama mais. Nunca me amou! A única coisa que interessava pra você era o prazer carnal. Eu sou um lixo pra você!
-Não fala bobagem! Eu destruí meu casamento, minha vida sólida, regrada, pra viver uma aventura! Agora você se aproveita só porque o seu estado de saúde é frágil pra botar um homem aqui dentro de casa?
-Como você queria que eu ficasse? Não queria mais saber de mim, não me tocava, me tratava como se fosse a Helena!
-A Helena tinha dignidade. Você não! Faz as suas malas. Você não fica um minuto mais aqui.
-Plínio, não faz isso comigo! Se você me deixar, eu sou capaz de fazer uma loucura!
-Faça a loucura que quiser, mas com seu médico particular. Eu vou acionar meu advogado e vou impedir que você veja de novo o William, além de não arrancar qualquer centavo meu- dirige-se à porta do quarto, até que Letícia ameaça engolir vários comprimidos de um frasco branco.
-Você não vai me deixar. Eu sei que não vai.
-Agora vai me ameaçar?
-Sabe que eu sou capaz de cumprir aquilo que prometo.
-Isso é mentira. Você me prometeu fidelidade. Esqueça que um dia esteve na minha vida. Vou lutar pela guarda do William, e os meus dois filhos vão ficar comigo.
Letícia ingere todos os comprimidos de uma vez, aos prantos. Rapidamente, começa a se sentir mal.
-Pai, olha o que ela fez!- ambos olhando para Letícia, que sua frio e começa a empalidecer, sentindo vertigens.
-Letícia! Letícia, o que você tem?
-Chama um médico! Plínio, por favor, chama um médico... – cai ao chão, agonizando. O marido corre e chega perto do seu rosto- Eu vou morrer, Plínio... Me ajuda... Por favor, me ajuda... eu estou morrendo...
-Nossa, mas “tá” demorando pra caramba, não é, não?- provoca Bruno.
-Calma, meu amor! Não vai acontecer nada! Eu vou te proteger, eu prometo- corre para pegar o telefone.
-Você não vai!
-O quê? Bruno, saia da minha frente...
-Deixa ela morrer!
-Você ficou maluco? Saia da minha frente agora, Bruno!
-Quer esquecer o que ela te fez? O casamento que você jogou fora? Olha pro que o senhor viu agora! Ela beijando outro, te enchendo de chifre! Já pensou se o bebê nem é seu?
-Plínio, me ajuda- aos poucos, Letícia perde as forças.
-Vai, Plínio. Deixa ela viver, e ela te engana com outro de novo! Acredita nela agora!
-Chega! Chega!- grita desesperado. Os suspiros de agonia de Letícia param- Letícia? Não... Não, Letícia!- desespera-se novamente, agora com culpa pela morte da segunda esposa.
-Você induziu seu pai a deixá-la morrer?
-Que falta aquela vagabunda faz no mundo? E outra: o assassino é ele, não eu.
-Bruno, você nunca pensou na dor desse seu irmão? Ele também se tornou um órfão, como você!
-Sou muito light com ele, padre! Mais do que eu gostaria, porque eu odeio aquele imbecil mirim! E ele ainda vive numa bolha, não é? Não faz ideia de nada disso. Mas a minha vontade é de contar tudo, pra ver se ele começa a odiar o paizinho querido dele.
-Nem mais uma palavra! Você não se atreva a... A macular, a ousar destruir a inocência do seu irmão!
-Controle meu ímpeto, então! Se bem que... Seria bacana se eu acabasse com essa inocência toda... Finalmente, eu ensinaria algo de útil ao meu irmão.
-Útil?
-É, padre. O bom de destruir a inocência das pessoas é fazê-las perceber, finalmente, que ela tiveram inocência algum dia.
-Você é um monstro!
-Fique sabendo que não é o primeiro e não será o último a dizer isso.
-Definitivamente, você não merece nada de mim. Não merece nada de bom de ninguém.
-Talvez por isso tenha sido castigados pelos céus quando a minha mulher perdeu o bebê graças a mim... Então, pega o telefone e me denuncia, padreco. Quer o meu nome? Bruno Reinchenbach! Diz quem eu sou, os meus “crimes” da década passada, tudo que eu falei agora! Me joga no manicômio, ou na cadeia! Mas acaba com essa tormenta de uma vez! Se você me destruir, vai ser um favor que faz à humanidade e a mim também.
Felipe anda para trás, completamente estarrecido com tudo o que ouviu, e Bruno afunda em sua própria amargura. O padre vai ao templo da igreja, e ajoelha diante de uma imagem religiosa.
-Me guie... Me dê uma direção para o que devo fazer, minha Virgem. Não me desampare nessa hora tão difícil. Nem a esse rapaz, apesar de tudo. Envie um sinal, é só o que te rogo. Um sinal do que devo fazer.

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