06/04/2015

LEVE-ME DAQUI/ CAPÍTULO 6: DENTRO DO AVIÃO

Deu lugar angústia à soberba. Por um momento, Karen se sentiu humilhada por ter Juliano como o confidente de sua insana agonia. Para ela, o rapaz era inferior, e incapaz de entender o que se passava. Aos soluços, bradou:
-O que é que tá me olhando?
Juliano entendeu que não valia a pena perguntar, sequer por educação, o que havia acontecido. Karen continuou caminhando e, ao se afastar, foi alvo de novos olhares. Mesmo longe, não deixou de causar uma sensação ruim ao jovem.
Cícero sai do prédio e procura o filho na praia, imaginando que ele não está muito longe.
-Sabia que você tinha vindo pra cá. Não vai comer nada, não, Juliano? Juliano, tá me ouvindo?
-Que foi, Painho?
-“Que foi” pergunto eu. Você tá longe...
-Eu vivo longe, se esqueceu?
-Toma, filho. Come isso daqui- entrega-lhe um prato com o almoço.
-Não precisava ter vindo.
-Sabe que vou até o fim do mundo pela minha família.
-Que estranho.
-O que tem de estranho?
-A gente ter todo esse amor um pelo outro e o resto do mundo se acabando por coisas tão...
-Por que você tá falando isso?
-Eu vi uma moça chorando. Ela parece ter uma vida melhor que a nossa. Melhor no sentido de “não faltar dinheiro”, “poder comer todo dia”, “ter no que gastar”. A gente não tem quase nada e tem tudo.
-É por isso que eu gosto tanto de conversar com você.
-Quando eu falo também, o que é bem difícil.
-Juliano...
-Painho, é meu jeito. Vai ser assim toda a vida.
-Quem disse que a gente não gosta de você assim?
-E os outros? Os que falam de mim? Que me chamam de “retardado”?
-Deixe eles pra lá. Você não precisa deles.
-Todo mundo precisa de alguém.
-Pra amar, pra ser amado. Isso a sua família te dá de sobra.
-Mas e se eu começar a gostar de alguém?
-Filho, você... Tá apaixonado?
-Nem poderia. Quem vai gostar de mim? E outra: eu não puxo assunto, não consigo conversar.
-Mas ninguém te chama a atenção? Nenhuma moça?
-Eu olho, sim. Olhar não tira pedaço. Mas pra chegar perto, dizer meu nome... Vai ver eu tenho que passar a vida sozinho mesmo.
-Um dia, você vai conhecer alguém. Vá por mim: ninguém deixa passar uma pessoa tão especial como você.
-É. No meu caso, ser especial cansa.
Juliano começa a almoçar, e Cícero não volta a tocar no assunto, por entender que foi um momento raro do filho e que isso demoraria demasiadamente para acontecer outra vez.

/////

São doze e meia do dia seguinte. Com o celular na mão, Toni procura o número de Homero.
-A paz do Senhor, Pastor.
-Amém, Toni. Tá tudo bem?
-Tá, sim, pra honra e glória de Jesus. Queria só confirmar se o senhor voltou das visitas.
-Sim, acabei de chegar. Ainda vou cuidar do almoço.
-Então, eu espero mais um pouco.
-Não, pode vir. Venha que eu tô lhe esperando.
-Pronto. Sim, tenho mais uma coisa pra lhe dizer: depois de tanto tempo, o mecânico descobriu qual era o problema da minha moto!
-Já trouxe pra casa?
-Trouxe hoje. A demora pra chegar aí é só do trânsito, porque é horário de almoço. Mas já, já chego.
-Venha, meu filho. Eu tô lhe esperando. Até daqui a pouco.

/////

De um lado para o outro, Karen confere no celular as atualizações públicas de Danilo numa rede social. Ao olhá-las, com um rosto incrédulo, é surpreendida com a campainha tocando.
-O porteiro não interfonou de novo? Já posso até dizer quem é... – abre a porta e encontra Lívia.
-Posso falar com você?
-Pode, sim. Eu ia mesmo te procurar. Conversou com a sua mãe?
-Ainda não. Nem toquei no assunto.
-Você tem que falar com ela, não vai dar pra ficar escondendo essa gravidez por mais tempo.
-Antes eu preferi passar aqui, pra te pedir desculpa pela bofetada que eu dei ontem. Fiquei muito mal com o que eu fiz.
-Não se preocupe. Eu também errei muito, quando falei todas aquelas coisas. Queria que você me desculpasse.
-Aconteceu alguma coisa de ontem pra hoje?
-Tava vendo o Danilo pela internet. Pelas noitadas, raves, bares, luaus, festas... Sempre alegre, sem se importar com o que eu sinto, com a minha dor. Não acho justo pôr a culpa em você. Nem no seu bebê. Me desculpa, por favor.
-Karen, eu juro que eu nunca quis nada com ele. Ele era seu namorado, não tinha porquê.
-Fui uma idiota. Tanto tempo pra entender que eu não sou nada na vida dele... E quase perdi minha melhor amiga por causa daquele...
-Não, deixa... Deixa disso. Não importa mais. O que me interessa é que você acredita em mim agora, e sabe o quanto que eu te considero.
-Desculpa, Lívia. Me desculpa, por favor.
As duas amigas, aos prantos, se permitem dar um longo abraço. Ao que parece, dar-se-á uma trégua entre as moças, completamente devastadas com a atitude de Danilo.

/////

No apartamento do Pastor Homero, o senhor de cinquenta e cinco anos conversa com Toni.
-Já decidiu quais são as músicas que eu tenho que tocar lá na festa da congregação?
-Fiz uma lista de dez músicas. Tomei a liberdade de elaborar com o pastor de lá, porque nós já imaginávamos que você aceitaria ir pra lá. Mas fique à vontade se quiser pôr uma música de seu gosto.
-Tava escutando uma nessa semana, não tô me lembrando do nome. Diz assim: “a noite vem, já não vou me importar, hoje eu quero me deixar levar, em tua graça eu vou mergulhar, sobre as ondas eu vou poder andar”... O nome era “Tua graça”, se eu não me engano.
-Viu como acertei em indicar você pra tocar em Teresina?
-Mas, Pastor, eu não tenho como acertar o dinheiro da passagem com o senhor nesse mês.
-Não se preocupe, eu sei que você não é de ficar devendo nada. Depois, a gente acerta.
-Bom- ambos se levantam- Então, deixa eu ir pra arrumar minhas coisas e avisar à Mainha, senão ela é capaz de enfiar na mala um casaco pra usar em Teresina... – afirma Toni, aos risos.
-Espera. Tem uma mensagem pra você.
-De quem?
-Uma revelação. Você se sente sozinho, sem alguém pra te acompanhar nas lutas.
-Que é isso, Pastor? Eu tenho minha família...
-Não, eu falo de uma companheira. Mas Ele manda te dizer que ela vai chegar, e pode estar mais perto do que você pensa. Permaneça no caminho, continue sendo o bom irmão, o bom filho e o bom rapaz que é, pois o Senhor vai abrir as portas do coração de alguém pra você poder entrar. E essa varoa vai ter que ser moldada.
-Moldada? Como assim?
-Como um vaso quebrado, que tem de ser restaurado. Só assim essa varoa poderá amar você sem reservas. Continue orando, perseverante. E verá a obra se realizar em sua vida.

/////

Assim que Toni sai do prédio, o seu celular toca.
-Fala, Mainha.
-Toni, tu tá aonde?
-Tô indo pra casa agora, saindo do apartamento do pastor.
-Filho, eu queria te pedir um favor. Tem como você voltar lá e perguntar como é que tá a irmã Nelinha?
-O que é que ela tem?
-Foi internada na semana passada pra fazer hemodiálise. Sabe como é, o rim que tanto se queixa. O marido dela tá de acompanhante e não deu mais nenhuma notícia. Achei que o pastor deve saber.
-Certo, eu vou perguntar a ele. Me retorna daqui a pouco?
-Ligo depois. Obrigado, meu anjo. Daqui a pouco, eu dou um toque- Iolanda desliga, e Toni volta para o prédio, apertando o botão do elevador.
Assim que abre a porta, fica estarrecido ao ver Lívia, pálida e com as mãos sobre a barriga, demonstrando uma dor decorrente de um sangramento vindo de sua calça.
-Lívia? Lívia, o que é que você tem?

Antes de sair do elevador, a universitária desmaia. Toni tira a moça do local e grita por ajuda.

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