Deu lugar angústia
à soberba. Por um momento, Karen se sentiu humilhada por ter Juliano como o confidente
de sua insana agonia. Para ela, o rapaz era inferior, e incapaz de entender o
que se passava. Aos soluços, bradou:
-O que é que tá me
olhando?
Juliano entendeu
que não valia a pena perguntar, sequer por educação, o que havia acontecido.
Karen continuou caminhando e, ao se afastar, foi alvo de novos olhares. Mesmo
longe, não deixou de causar uma sensação ruim ao jovem.
Cícero sai do
prédio e procura o filho na praia, imaginando que ele não está muito longe.
-Sabia que você
tinha vindo pra cá. Não vai comer nada, não, Juliano? Juliano, tá me ouvindo?
-Que foi, Painho?
-“Que foi” pergunto
eu. Você tá longe...
-Eu vivo longe, se
esqueceu?
-Toma, filho. Come
isso daqui- entrega-lhe um prato com o almoço.
-Não precisava ter
vindo.
-Sabe que vou até o
fim do mundo pela minha família.
-Que estranho.
-O que tem de
estranho?
-A gente ter todo
esse amor um pelo outro e o resto do mundo se acabando por coisas tão...
-Por que você tá
falando isso?
-Eu vi uma moça
chorando. Ela parece ter uma vida melhor que a nossa. Melhor no sentido de “não
faltar dinheiro”, “poder comer todo dia”, “ter no que gastar”. A gente não tem
quase nada e tem tudo.
-É por isso que eu
gosto tanto de conversar com você.
-Quando eu falo
também, o que é bem difícil.
-Juliano...
-Painho, é meu
jeito. Vai ser assim toda a vida.
-Quem disse que a
gente não gosta de você assim?
-E os outros? Os
que falam de mim? Que me chamam de “retardado”?
-Deixe eles pra lá.
Você não precisa deles.
-Todo mundo precisa
de alguém.
-Pra amar, pra ser
amado. Isso a sua família te dá de sobra.
-Mas e se eu
começar a gostar de alguém?
-Filho, você... Tá
apaixonado?
-Nem poderia. Quem
vai gostar de mim? E outra: eu não puxo assunto, não consigo conversar.
-Mas ninguém te
chama a atenção? Nenhuma moça?
-Eu olho, sim.
Olhar não tira pedaço. Mas pra chegar perto, dizer meu nome... Vai ver eu tenho
que passar a vida sozinho mesmo.
-Um dia, você vai
conhecer alguém. Vá por mim: ninguém deixa passar uma pessoa tão especial como
você.
-É. No meu caso,
ser especial cansa.
Juliano começa a
almoçar, e Cícero não volta a tocar no assunto, por entender que foi um momento
raro do filho e que isso demoraria demasiadamente para acontecer outra vez.
/////
São doze e meia do
dia seguinte. Com o celular na mão, Toni procura o número de Homero.
-A paz do Senhor,
Pastor.
-Amém, Toni. Tá
tudo bem?
-Tá, sim, pra honra
e glória de Jesus. Queria só confirmar se o senhor voltou das visitas.
-Sim, acabei de
chegar. Ainda vou cuidar do almoço.
-Então, eu espero
mais um pouco.
-Não, pode vir.
Venha que eu tô lhe esperando.
-Pronto. Sim, tenho
mais uma coisa pra lhe dizer: depois de tanto tempo, o mecânico descobriu qual
era o problema da minha moto!
-Já trouxe pra
casa?
-Trouxe hoje. A
demora pra chegar aí é só do trânsito, porque é horário de almoço. Mas já, já
chego.
-Venha, meu filho.
Eu tô lhe esperando. Até daqui a pouco.
/////
De um lado para o
outro, Karen confere no celular as atualizações públicas de Danilo numa rede
social. Ao olhá-las, com um rosto incrédulo, é surpreendida com a campainha
tocando.
-O porteiro não
interfonou de novo? Já posso até dizer quem é... – abre a porta e encontra
Lívia.
-Posso falar com
você?
-Pode, sim. Eu ia
mesmo te procurar. Conversou com a sua mãe?
-Ainda não. Nem
toquei no assunto.
-Você tem que falar
com ela, não vai dar pra ficar escondendo essa gravidez por mais tempo.
-Antes eu preferi
passar aqui, pra te pedir desculpa pela bofetada que eu dei ontem. Fiquei muito
mal com o que eu fiz.
-Não se preocupe.
Eu também errei muito, quando falei todas aquelas coisas. Queria que você me
desculpasse.
-Aconteceu alguma
coisa de ontem pra hoje?
-Tava vendo o
Danilo pela internet. Pelas noitadas, raves, bares, luaus, festas... Sempre
alegre, sem se importar com o que eu sinto, com a minha dor. Não acho justo pôr
a culpa em você. Nem no seu bebê. Me desculpa, por favor.
-Karen, eu juro que
eu nunca quis nada com ele. Ele era seu namorado, não tinha porquê.
-Fui uma idiota.
Tanto tempo pra entender que eu não sou nada na vida dele... E quase perdi
minha melhor amiga por causa daquele...
-Não, deixa...
Deixa disso. Não importa mais. O que me interessa é que você acredita em mim
agora, e sabe o quanto que eu te considero.
-Desculpa, Lívia.
Me desculpa, por favor.
As duas amigas, aos
prantos, se permitem dar um longo abraço. Ao que parece, dar-se-á uma trégua
entre as moças, completamente devastadas com a atitude de Danilo.
/////
No apartamento do
Pastor Homero, o senhor de cinquenta e cinco anos conversa com Toni.
-Já decidiu quais
são as músicas que eu tenho que tocar lá na festa da congregação?
-Fiz uma lista de
dez músicas. Tomei a liberdade de elaborar com o pastor de lá, porque nós já
imaginávamos que você aceitaria ir pra lá. Mas fique à vontade se quiser pôr
uma música de seu gosto.
-Tava escutando uma
nessa semana, não tô me lembrando do nome. Diz assim: “a noite vem, já não vou
me importar, hoje eu quero me deixar levar, em tua graça eu vou mergulhar,
sobre as ondas eu vou poder andar”... O nome era “Tua graça”, se eu não me
engano.
-Viu como acertei
em indicar você pra tocar em Teresina?
-Mas, Pastor, eu
não tenho como acertar o dinheiro da passagem com o senhor nesse mês.
-Não se preocupe,
eu sei que você não é de ficar devendo nada. Depois, a gente acerta.
-Bom- ambos se
levantam- Então, deixa eu ir pra arrumar minhas coisas e avisar à Mainha, senão
ela é capaz de enfiar na mala um casaco pra usar em Teresina... – afirma Toni,
aos risos.
-Espera. Tem uma
mensagem pra você.
-De quem?
-Uma revelação.
Você se sente sozinho, sem alguém pra te acompanhar nas lutas.
-Que é isso,
Pastor? Eu tenho minha família...
-Não, eu falo de
uma companheira. Mas Ele manda te dizer que ela vai chegar, e pode estar mais
perto do que você pensa. Permaneça no caminho, continue sendo o bom irmão, o
bom filho e o bom rapaz que é, pois o Senhor vai abrir as portas do coração de
alguém pra você poder entrar. E essa varoa vai ter que ser moldada.
-Moldada? Como
assim?
-Como um vaso
quebrado, que tem de ser restaurado. Só assim essa varoa poderá amar você sem
reservas. Continue orando, perseverante. E verá a obra se realizar em sua vida.
/////
Assim que Toni sai
do prédio, o seu celular toca.
-Fala, Mainha.
-Toni, tu tá aonde?
-Tô indo pra casa
agora, saindo do apartamento do pastor.
-Filho, eu queria
te pedir um favor. Tem como você voltar lá e perguntar como é que tá a irmã
Nelinha?
-O que é que ela
tem?
-Foi internada na
semana passada pra fazer hemodiálise. Sabe como é, o rim que tanto se queixa. O
marido dela tá de acompanhante e não deu mais nenhuma notícia. Achei que o pastor
deve saber.
-Certo, eu vou
perguntar a ele. Me retorna daqui a pouco?
-Ligo depois. Obrigado,
meu anjo. Daqui a pouco, eu dou um toque- Iolanda desliga, e Toni volta para o
prédio, apertando o botão do elevador.
Assim que abre a
porta, fica estarrecido ao ver Lívia, pálida e com as mãos sobre a barriga,
demonstrando uma dor decorrente de um sangramento vindo de sua calça.
-Lívia? Lívia, o
que é que você tem?
Antes de sair do
elevador, a universitária desmaia. Toni tira a moça do local e grita por ajuda.
Nenhum comentário:
Postar um comentário