03/04/2015

LEVE-ME DAQUI/ CAPÍTULO 3: UMA ILHA?

Chegou a sexta-feira. Toni está no computador, de maneira silenciosa, procurando as músicas que farão parte da próxima festa da igreja da qual ele faz parte. Juliano, que dorme no mesmo quarto, acorda e observa o irmão, que se vira para o caçula ao notá-lo.
-Era contigo mesmo que eu queria falar. Mas eu cheguei e você tava dormindo.
-Cansado. Cansado demais, ontem a gente ficou no serviço até umas dez horas.
-Queria te entregar uma coisa- pega um envelope que está junto da impressora e entrega ao irmão- O pastor adiantou uma parte do dinheiro da Teen Gospel.
-Tá me dando isso por quê?
-Pra você comprar apostila e voltar a estudar, pagar um cursinho... Não sei, você vai saber o que fazer com a grana.
-Fica com o dinheiro, Toni. Eu não quero.
-Eu não tô te dando porque você quer receber. Te dei pra você usar mesmo.
-A gente já bateu um papo sobre isso. Não quero. Não posso.
-Juliano... Eu vou falar com Mainha. Ela vem falar com você, e vai botar o dinheiro na sua mão. Se ela inventar de falar com painho, ele vai fazer a mesma coisa. Você tem que estudar, subir na vida. Tô dizendo isso também porque é isso que você quer.
-Não adianta. Eu subo, e as pessoas continuam sem ver meus olhos. Sem querer olhar pra minha cara.
-Os outros... Não interessam. Você pode, e eu confio em você.
-Toni... Guarda esse dinheiro. Eu não quero, e é do seu trabalho.
-Depois, eu consigo mais. Deus me manda mais. Pô, Juliano... Parasse os estudos, não voltasse mais pra escola, tem dia que tu fica mais tempo dentro da construção que Painho...
-Eu não levanto a cabeça e não vejo o jeito que os outros olham pra mim. Mas alguma coisa... Me diz que ninguém gosta de mim. Que todo mundo me acha esquisito.
-Ei! Eu sou sua família. A sua família te ama! Não é pra se importar com os outros, nem com a gente. Faz por você, cara. Eu sei que você pode.
-Toni, eu vou... Eu vou... Vou tomar café, Painho tá me esperando- Juliano, ainda com a roupa de dormir, deixa Toni sozinho no quarto.

/////

Rafael e Patrícia, pais de Danilo, tomam café da manhã juntos. O médico, após alguns minutos, nota a ausência do único filho.
-E ele? Não vai descer?
-Danilo foi a uma festa com a Karen. Mas parece que discutiram e...
-Ele exagerou na bebida.
-Não sei. Não vi quando ele chegou- Patrícia disfarça- Passei no quarto, e ele estava dormindo. Jogado na cama.
-Bom, pelo menos sabemos que dessa vez ele não foi parado por uma blitz da Lei Seca.
-Eu não entendi esse seu comentário, Rafael.
-Não quis entender.
-Olha, meu amor, tá muito cedo pra gente falar sobre a educação de um filho maior de idade, vacinado e que sabe muito bem o que fazer da própria vida.
-Então, você adotou um garoto de nove anos e não me contou nada. Porque “saber o que fazer” não é característica do Danilo. Ele vive enrolando Karen, trai ela com várias mulheres...
-Isso não é verdade...
-É, sim, patrícia. Eu vejo, eu não sou cego, eu não tampo o sol com a peneira, nem passo a mão na cabeça dele, como você faz. Vai ver que é por isso que ele age assim. Você dá carta branca pra ele agir do jeito que quiser, sem se importar com as consequências.
-Olha, o que você quer que ele faça? Que passe a vida toda procurando maneiras de te agradar?
-Não. Só não precisa ser tão promíscuo, tão inconsequente, sempre achando que está acima do bem e do mal.
-Ao contrário, Rafael. Acima do bem e do mal está você, com esses valores ultrapassados, de que um homem pode passar toda uma vida gostando de uma única mulher.
-E pode! Ou você acha que eu tenho outra?
-Viu só? Você se coloca como um pilar de boa conduta! Adora fazer isso!
-Patrícia, eu estou muito longe de ser um homem perfeito. Mas ter caráter é obrigação. De todo mundo. E enquanto Danilo achar que é mais importante que os outros porque tem quem o banque, ele não vai ser homem- levanta-se da mesa, usando o guardanapo- Se precisar de mim, pode me ligar lá na policlínica. Chego à noite.
-Já posso recolher a mesa, senhora?- pergunta Aurélia, a empregada da casa.
-Pode quando eu sair daqui, Aurélia. Agora, me deixa sozinha.
-Desculpe, senhora. Com licença.

/////

Ao sair da faculdade, Lívia recebe um telefonema. Fica com receio de atender, mas cede ao chamado.
-Fala, Karen.
-Nossa, eu já ia chamar a polícia.
-Polícia... Pra quê?
-Quatro chamadas e você não me atendeu? O que foi que houve?
-Tava no silencioso.
-Tá tudo bem.
-Tá. Quer dizer... Tá tudo péssimo!
-Problema com a matrícula?
-É, tive que vir pra faculdade, pra resolver.
-Mas é só isso mesmo?
-Muita cara de pau a sua me ligar, depois de ter me deixado sozinha ontem!
-É porque você não viu o que aconteceu depois. Danilo veio atrás de mim, me falou umas coisas que...
-Karen, desculpa, mas eu não quero saber. Já falei muito disso com você, e não quer me ouvir. Não vai demorar uma semana, e você vai atrás dele de novo.
-Eu?
-Ah, Karen, eu tô cansada, esgotada, não tô me sentindo bem... Depois a gente se fala, tá? Eu vou desligar, que eu tô na parada e o ônibus já vem.
-Mas me conta: você não ficou na festa até o final?
-Karen, depois! Depois, tá? Tchau!- desliga o celular, bastante nervosa.

/////

Já são duas horas da tarde. Heloísa está varrendo a casa, quando Lívia chega.
-Ué, não foi trabalhar hoje.
-A patroa me deu folga, minha filha. E você? O que houve?
-Vim da faculdade, não tava conseguindo fazer a matrícula pelo computador.
-A gente não se falou da manhã, eu saí cedo pra trabalhar. Mas a demora mesmo foi do trânsito...
-O que foi?
-Passei no seu quarto pra te dar um beijo antes de sair. Encontrei a porta trancada.
-Foi. Tranquei assim que voltei pra casa.
-Quando você fecha a porta, é porque alguma coisa ruim aconteceu.
-Não foi nada, não, Mainha.
-Lívia, eu voltei pra casa de dez horas. Tu ficou esse tempo todo resolvendo o problema da matrícula.
-Não, eu fui dar uma volta. Fiquei conversando com o pessoal da faculdade.
-Só isso?
-Como assim “só isso”?

-Minha filha, você chegou da festa sem fazer barulho, ficou isolada no quarto, passou muito tempo sem dar notícia... Quer me dizer alguma coisa?

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