04/07/2015

TEMPO PERDIDO/ CAPÍTULO IV

-O que foi que a senhora ficou muda de repente?
-Posso saber o que você quer aqui?
-Quem eu quero encontrar aqui, você quer dizer?
-Desculpa, mas você não tava procurando Seu Norberto?- Gustavo não percebeu a tensão existente entre mim e Vilma.
-Pode ser com ela mesmo, moço.
-É que essa moça... Ela é filha de um dos nossos fornecedores de bebidas, Gustavo, já visitou nossa casa algumas vezes.
-Tá aí. Até que eu tava com vontade de dar uma passadinha lá, tirou as palavras da minha boca.
-Não é preciso. O assunto é comigo. Vamos lá pra fora.
-Como assim? A senhora não vai levar ela pro escritório?
-O assunto vai ser rápido, dá pra gente resolver lá fora.
-Prometo que não quero tomar o tempo da senhora.
-Se o Norberto perguntar por mim, diga que eu não demoro pra voltar.
-Sim, senhora.
Vilma parecia gentil até me fazer dobrar para a primeira rua à direita. Segurou meu braço com muita força, pensei até que ia me bater.
-Tá pensando que vai fazer o quê, menina? Pretende o quê vindo me procurar na boate do meu marido?
-Desculpa ter vindo até aqui. Pensei em ir até sua casa pra ver se a senhora...
-Minha casa? O que é isso, menina? Você anda fuçando minha vida pra saber onde eu moro, onde o meu marido trabalha, o que ele faz? Eu não tenho contato com vocês há muitos anos, não tenho assunto nenhum pra tratar. Portanto, pare de tentar ser minha sombra!
-Dona Vilma, por favor, eu não tinha vindo pra cá se a coisa não fosse muito séria. Tem a ver com meu irmão.
-Tudo que tem a ver com você ou com seu irmão e seu pai não me interessa mais. Já entendi: é dinheiro que vocês querem, não é? Tudo bem, tudo bem. Me diz quanto é que eu pago.
-Peraí, é isso mesmo? A senhora tá querendo comprar Bento e eu também? Por quê? Por acaso o seu marido não sabe que a gente existe?
-Não sabe e nem vai saber. Vocês são a página do meu passado que eu rasguei. E você não tinha nada que ter vindo até aqui pra falar comigo. Eu deixei bem claro que não queria ter nada que me amarrasse àquela casa, àquele lugar...
-A senhora já falou demais, não acha, não?
-Escuta aqui, menina, eu só...
-Ariela! Será que até isso você odeia em mim, que não consegue dizer meu nome?
-Como eu posso te explicar?- impaciente, fez uma pequena pausa- Eu não quis você e seu irmão quando eram pequenos, não quis seu pai, e agora eu quero menos ainda.
-Quem se interessa pelo que a senhora quer não sou eu. Não fique achando que eu saí da minha casa só pra escutar o que você acha ou deixa de achar.
-Então, pra quê veio até aqui? Não vai me dizer que não veio sozinha?
-Se a senhora tá preocupada que meu irmão e meu pai vieram comigo pra atrapalhar seu casamento, fique calma. Eu vim com outra pessoa.
-Fala logo de uma vez. O que você quer?
-Eu preciso conversar com a senhora, mas não aqui- tirei do bolso o endereço do hotel- Pode me procurar nesse endereço.
-Não sei se eu vou poder ir...
-Vai, sim.
-Olha aqui, eu não quero acertar supostas contas com você e com seu irmão. Os dois fazem parte do meu passado, passado esse que eu fiz questão de descartar.
-Se eu fosse a senhora, tratava de aparecer no hotel até amanhã. Eu não quero ter que procurar a senhora na sua casa e dar de cara com Seu Norberto. O que é que eu vou dizer pra ele quando ele perguntar quem eu sou? Que eu sou enteada dele? Um dos enteados, inclusive?
-Deixa eu ver se eu entendi: você está me chantageando?
-Se a senhora chama isso de chantagem, então tanto faz. Mas uma coisa eu garanto pra senhora: o assunto é muito urgente. É caso de vida ou morte, por favor!
-E se eu não quiser ir?
-Mas vai. Agora, é melhor a senhora voltar pra sala do seu marido, ele pode sentir sua falta. Se bem que... Um a mais sentindo falta ou um a menos não faz diferença, não é?- fui em direção a um táxi.
-Volta aqui... Ariela, volta aqui!- tentou me chamar sem despertar a atenção dos que passavam pela rua, e eu a ignorei.

/////

Contei tudo à minha madrasta sobre o primeiro encontro que tive com Vilma depois de tantos anos. Celine não gostou nada quando eu contei sobre a decisão de ter ido procurar minha mãe. No dia seguinte, ela voltou a bater naquela tecla, e me recriminar.
-Mas por que você não esperou que eu acordasse, Ariela? Eu teria ido com você... Aliás, eu tinha que ter ido com você! Você nunca veio pra Recife, não conhece essa cidade... Já imaginou se te acontece alguma coisa, o que eu vou dizer pro seu pai?
-Já não tava mais aguentando, Celine. Uma hora, a gente tinha que se encontrar.
-Mas do jeito que você falou, a Vilma foi colocada contra a parede. O que te garante que, do jeito que você se dirigiu a sua mãe, ela vai vir te procurar?
-Só se for pelo medo, Celine. O tal Norberto nem desconfia da minha existência, nem da de Bento.
-Ainda assim, eu acho que eu devia ter procurado a sua mãe. Ou, pelo menos, intermediado uma primeira conversa entre vocês duas.
-A gente não veio aqui pra imitar comercial de margarina, não, Celine. Não me interessa se ela é a Madalena arrependida ou se vai bancar Pilatos. Eu só quero que ela vá ver Bento e pronto.
-Como é que ela tava quando vocês se viram?
-Mais arrumada que nas fotos antigas dos álbuns lá de casa. Também, casada com um empresário da noite...
-Esse tal empresário é outro motivo pra você se afastar de briga. Se ele for mesmo o bandido que sai no jornal, dizendo que é explorador de mulher e tudo mais? Ariela, a vida da gente tá em perigo!
-A vida da gente eu não sei, mas o casamento dela com certeza. Isso se eu contar pro Norberto da antiga vida que ela tinha...
-Você tá se mordendo pra fazer isso, não é? Fala a verdade.
-Só se ela disser que não vai com a gente ver Bento. Mas ela tem até hoje pra me dar uma resposta.
-E depois? Vai se sentir vingada por tudo que ela fez a vocês e a seu pai?
-Isso não vai passar nunca.
-Pensa bem no que vai fazer, Ariela. Antes indiferença do que ódio dela.
-Quer ser mais clara, Celine?
-Não provoque sua mãe. Se ela se sentir acuada, ela pode não vir com a gente pra rever Bento.
-Mas ela tem que vir!
-Tem porque uma mãe afastada é capaz de fazer isso. Só que Vilma não é uma mulher qualquer. Abandonou os filhos e o marido. Meu anjo, quem faz essa maldade com a própria família é capaz de qualquer coisa.
-Com licença- uma camareira bateu à porta do nosso quarto- É aqui que tá dormindo Ariela Ramos?
-Sou eu, por quê?
-Pediram pra anunciar que tem uma senhora chamada Vilma Ramos esperando por você no restaurante do hotel.
-Tem certeza?- fiquei incrédula.
-Eu mesma vi, ela já chegou.
-É melhor eu descer com você.
-Vai depois, Celine. É melhor eu preparar o terreno, quem sabe o que ela vai dizer?
-Tudo bem. Eu me arrumo e depois eu desço. Cuidado com o que vai falar, Ariela.

/////

Ela já estava mesmo me esperando no restaurante. Sentei em frente à minha mãe. Um garçom se aproximava.
-Boa tarde. Desejam alguma coisa?
-Sim, me veja um suco de laranja.
-U-hum. E você, moça?
-Um copo d’água, por favor.
-Está bem. Com licença.
-Espero que seja interessantíssimo o que você tem pra me dizer.
-Pensei que a senhora não vinha, que tinha se desfeito do meu endereço.
-Vontade não me faltou de rasgar aquele cartão. Mas... O que eu não sou capaz de fazer pra salvar meu casamento, não é?
-É só com isso que a senhora tá preocupada? Com o seu casamento?
-Tem mais algum motivo que possa me preocupar?- disse, com muito desprezo, enquanto o garçom trazia os nossos pedidos.
-Tem, sim. Seu outro filho.
-Menina, para de me enrolar e diz de uma vez: qual é o problema com Bento? Já disse que se for dinheiro, eu pago o que for preciso.
-Ele quer te conhecer.
-Desculpe, eu acho que não entendi direito.
-Ele quer conhecer a senhora.
-Vem cá, quantos anos ele tem? Cinco? Sete? Porque eu não acredito nessa carência repentina que bateu nele! Já passou da hora de pensar em me ter ao lado. Aliás, passou pra você também. O que é que Jayme fez? Criou a ilusão de que eu fiz uma viagem e tenho data marcada pra voltar?
-Bento sabe que a senhora não vai ocupar lugar nenhum lá em casa. Até porque meu pai arranjou uma mulher e se casou de novo.
-Se amigou, não é? Porque, legalmente, nós dois ainda somos marido e mulher.
-Por que a senhora não pediu pra se separar dele?
-Ele não me daria o divórcio. Era completamente doido por mim. Não ia aceitar perder a mulher que ele tanto amava, e a mãe dos dois filhos. Só que eu queria minha liberdade.
-E por isso fugiu de casa?
-Foi! Mas acho que nós estamos nos desviando do foco da conversa. Bento pediu pra você me procurar?
-Bento nem sabe que eu estou aqui. Pra falar a verdade, ele não sabe nem que você mora aqui em Pernambuco. Vim te procurar sozinha.
-E você aproveitou essa súbita curiosidade de seu irmão para cobrar explicações desse sumiço de catorze anos?
-Não, senhora. Não foi por acaso que ele quis lhe ver de novo. Bento tá doente.
-Doente de quê?
-Tá com um negócio no coração, alguma coisa de “miopatia”, “cardiopatia”... Não sei.
-E... Ele já procurou alguma opinião médica?
-O médico disse que ele só vai se curar se fizer um transplante. Transplante de coração.
-Isso pode demorar anos.
-Bento sabe disso. Mas insiste em querer lhe conhecer. Pediu a Painho pra lhe procurar.
-Lógico que Jayme não se rebaixaria a tanto.
-Mas eu sim. O meu irmão pode morrer a qualquer momento, e eu vou realizar o último sonho dele, que é te ver de novo. Foi por isso que eu vim até aqui: pra te buscar, pra te levar até Salvador.
-Sinto muito por ele e por você, Ariela.
-Sente?


-Eu não vou a lugar nenhum. Se a sua intenção é querer que eu volte, não perca seu tempo. Eu não vou com você pra Salvador.

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