11/08/2016

DIÁRIO DE LUTA/ CAPÍTULO 9: SORAIA


Assustada, Talita vê Beto sangrar pela boca após ser atingido pelo disparo. O rapaz cai da cama, desmaiado. Em choque, a filha caçula de César levanta da cama e abraça a irmã, mesmo estando suja com o sangue do agressor. Ambas choram desesperadamente.
-Que barulho foi esse?- César vê as filhas amedrontadas.
-Ai, meu Deus!- Fátima grita ao ver Beto ensanguentado no chão. César vê que Luiza está com o revólver na mão.
-O que foi que você fez, Luiza?
-Eu fui... Fui defender a Talita...
-Defender de quê? De quem? Você atirou no Beto! Ficou louca?
-Será que você não tá vendo o estado da Talita, Pai?
Fátima se abaixa para verificar a pulsação de Beto.
-Ele está vivo, Fátima?
-Ainda, César. Eu vou chamar a ambulância.
-Não. Não pode chamar ninguém.
-César, esse rapaz pode morrer aqui dentro!
-Leva ele pro hospital, Pai! Tira ele daqui, por favor!
-Se eu fizer isso, Talita, a sua irmã vai parar no reformatório! Calma... – diz, ofegante- Eu vou cuidar de tudo, vou tratar do Alberto aqui dentro de casa.
-Mas ele pode morrer, César!
-Eu sei o que eu estou fazendo, para de me pressionar!- César grita com a irmã- Você segura ele pelo braço e coloca ele na cama, de bruços. Eu vou segurar o Beto pelas pernas.
-Isso pode ser perigoso, César. A gente não pode mexer nele, pode ser pior ainda!
-Nós não temos paramédicos pra nos auxiliar! Vamos logo com isso!- César posiciona o corpo de Beto sobre a cama, enquanto Talita e Luiza continuam abraçadas uma à outra, chorando muito.
-Dr. César!- Nuno bate à porta, aos gritos.
-É o Nuno!- constata Luiza.
-Ele vai descobrir tudo, Luiza... – Talita fica mais nervosa.
-Não, não vai. Eu vou colocar esse moleque pra fora daqui.
-Mas e o Beto, César?
-Já sei: você, Fátima, vai até o meu quarto e pega minha maleta com meus instrumentos médicos, mas sem fazer barulho. Quanto a vocês, as duas vão ficar no quarto, até o tempo de eu dispensar o Nuno.
-Mas ele tá perdendo muito sangue, Pai...
-Fiquem quietas no quarto. As duas. Eu vou dispensar o Nuno. Agora, vai, Fátima. Sem fazer barulho.
-Dr. César!
-Já vai! Quietas, as três!- César sai do quarto e vai atender à porta- O que é que você quer?
-Que barulho foi esse?
-Barulho? Eu não ouvi nada, garoto.
-Ouviu, sim. Todo mundo ouviu. Os vizinhos até abriram as portas. Pensaram que fosse um tiro.
-Na minha casa é que não foi.
-Cadê a Luiza? Ela tá bem?
-Já entendi... Você tentou arrumar um pretexto pra ficar perto da minha filha de novo, não foi?
-César, não é nada disso. Eu fiquei com medo depois do que aconteceu com o Beto e a minha irmã.
-Os problemas da sua irmã não me interessam. Agora, dá o fora.
-Eu quero saber se a Luiza tá bem.
-As minhas filhas não estão aqui. Saíram com a Fátima. Será que agora eu posso trancar a minha porta e dormir em paz?
-Ouve só uma coisa: não deixa o Beto entrar nessa casa.
-O Beto, mesmo sendo assíduo frequentador do seu apartamento, não é da mesma laia que você. Portanto, não ouse difamá-lo porque não vai conquistar a minha confiança.
-Se eu tô falando que o Beto é perigoso é porque a minha irmã pode confirmar. Ele não é de confiança.
-Você também não. Mas, por sorte, Nuno, eu não acredito em nada do que venha da sua família.
-Talita tá correndo perigo namorando esse cara. O senhor tem que afastar...
-Tenho que tirar você da minha porta. Sai daqui! Anda!
-Toma cuidado. O Beto não é o que o senhor pensa que é. Pergunta à Dona Fátima, ela vai te explicar. Pelo menos, eu fico mais tranquilo de saber que não foi nada com as meninas. Com licença...
O ginecologista fecha a porta de vez e corre para o quarto. Encontra Fátima com a maleta de primeiros socorros.
-Deixa eu ver se tudo está aqui dentro...
-Vadia... - Beto acorda, sussurrando e gemendo de dor- Eu vou acabar com você...
-Eu devia ter atirado de novo, pra te matar de vez, seu vagabundo!
-Cala essa boca, Luiza! Quer que todo mundo saiba do que você fez?
-Não tô arrependida!
-César, ele não para de sangrar...
-Eu sei, Fátima! Eu não sou cego! Se pelo menos essa bala tivesse atingido de raspão... Mesmo se eu controlar a hemorragia, ele vai continuar em estado grave se eu não conseguir retirar a bala. E o pior é que eu não tenho todos os instrumentos aqui, alguns eu deixei na clínica...
-E se eu fosse até a clínica e pegasse o que está faltando?
-Perderíamos muito tempo. Ele poderia morrer antes que você voltasse, Fátima... Já sei- César pega a peça de roupa que Beto chegou a arrancar de Talita- Segura essa blusa, Fátima. Talita, pega a caixa de fósforos e uma garrafa de uísque. Luiza, vai com ela e me traz a peixeira.
-O que você vai fazer, Pai?
-Consertar a lambança que a sua irmã fez! Vão logo, as duas!
Luiza e Talita o obedecem e pegam os utensílios na cozinha do apartamento. Correm de volta para o quarto.
-Tá aqui, Pai!- Luiza entrega o objeto ao pai, e Talita repete a ação.
-Pra quê tudo isso, César?
-Toma- abre a garrafa de uísque e entrega à irmã- Dá pra ele ir bebendo. Assim ele vai aguentar a dor.
-Isso não vai dar certo, César.
-Tem que funcionar! Eu não tenho anestésico aqui! Vai ser a ponto cru e dê-se por satisfeita!
-Toma, Beto. Bebe- Fátima faz o rapaz ingerir a bebida aos poucos.
-Engoliu pouco ainda. Bebe mais. Vai, anda!
Fátima obedece ao irmão.
-Como é que o senhor vai fazer?
-Pega a blusa que eu entreguei à sua tia e amordaça a boca do Beto.
-Não. Eu não vou chegar perto dele de jeito nenhum- Talita se afasta um pouco, temendo que o agressor volte a reagir.
-Nem pra isso vocês servem, que droga!- César toma a blusa e amarra a boca do universitário com ela.
-Não precisa dar mais de beber a ele?
-Por enquanto, não, Fátima- o médico risca um dos palitos de fósforo e aquece a lâmina da faca que pediu à Luiza.
-O que é que o senhor vai fazer com isso?
-Retirar a bala. Segurem os braços dele, as três! Rápido!
Fátima, Talita e Luiza abrem os braços de Beto na cama e o seguram com bastante força. Por meio minuto, César esquenta a faca. Aproxima-se do rapaz e se põe sobre uma das pernas do moço, inserindo o objeto cortante na abertura causada pelo projétil. Beto grita de dor, sendo que o som é abafado pela blusa que serviu de mordaça. Talita procura virar o rosto. Por alguns minutos, César busca extrair a bala, o que consegue com êxito. Ao acabar a ação, põe a faca e a bala sobre o criado-mudo do quarto das meninas e fecha o ferimento com alguns materiais que trazia na maleta. Devido à dor que sentiu, Beto se encontra desmaiado.
Vasculhando a tal maleta que Fátima trouxe, o médico retira um frasco de soro e insere na veia do estudante, assim que as filhas o soltam.
-Isso é um pesadelo... César, esse menino pode morrer a qualquer momento...
-Não vai morrer. Não vai morrer porque eu vou salvar o Beto. Vou fazer o impossível. Mas a Luiza não vai pra cadeia. Isso eu posso garantir.

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No dia seguinte, as duas irmãs dormiram na sala. Fátima volta da clínica com alguns antibióticos. Talita ouve a porta destrancando e pergunta:
-Tia? Cadê o Beto, Tia?
-Passou a noite no quarto. Seu pai pediu pra trazer alguns antibióticos e soros, pra evitar a infecção e a desidratação.
-Mas por que não levaram ele pro hospital?
-Pra poupar você, Luiza- César volta do quarto- Por sorte, o único lugar que tem câmera no prédio é o elevador, que está com defeito. Logo, o Beto não foi oficialmente visto por ninguém, a não ser por nós quatro.
-O senhor devia ter chamado uma ambulância...
-O Beto foi ferido por uma arma de fogo, e foi você quem provocou isso, Luiza. Um ferimento desse tipo faz a polícia abrir um inquérito. Por isso que eu tive que fazer o possível pra salvar o Beto aqui em casa.
-Eu não pensei que um dia você fosse fazer isso por mim. Obrigada, Pai.
-Agora só nos resta esperar pra ver se ele vai denunciar você.
-Não. Eu não acho que ele faça isso. Muito pior do que eu ele já fez.
-Por que é que você atirou nele, Luiza?
-Porque ele é um monstro. Antes de eu acertar ele, ele me empurrou. Eu bati com a cabeça e fui me defender. Defender a Talita também.
-Sinceramente, eu me recuso a acreditar como você foi capaz de descer tão baixo. Atentar contra o Beto? Eu devia ter combatido seu cinismo, seu sarcasmo. Desde que eu dei permissão pra ele namorar sua irmã você fez questão de mostrar que não simpatizava com ele. Eu tenho vergonha de você.
-César!
-Pode deixar, Tia. Eu também não morro de amores por você. Tomara mesmo que ele morra, porque assim eu vou pro reformatório e você se livra de mim- Luiza vai para o quarto, sendo seguida de Talita.
-Isso era tudo que ela não precisava ouvir, Pai.
-O que a sua irmã fez foi um crime.
-O que a minha irmã fez foi salvar a minha vida!
-Salvar de quê? Pensa que eu não reparei em você seminua no quarto quando Fátima e eu entramos? Na certa, você deve ter tentado alguma coisa com o Beto. Por influência da Luiza.
-Pensa o que você quiser, Pai. Eu não vou me defender. Eu não quero me defender, e se essa história vazar, eu vou mentir pra proteger a minha irmã. Tirando a Luiza, a única pessoa que lutou um dia pra nos defender foi a minha mãe. Só que eu não sabia que ela queria me defender de você- Talita também vai para o quarto.
-Viu? Mais um pouco e ela vai me peitar, como faz a mais velha.
-Como ele está agora?
-Um pouco febril. O quadro é instável, não há muito o que fazer.
-Acha mesmo que o Beto vai escapar com vida?
-Tomara, Fátima. Porque a Luiza está em maus lençóis.

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Hugo bate à porta do quarto de Júlia. A garota abre, demonstrando desprezo por ser ele a sua visita.
-Na certa, Nuno deve ter te contado tudo que me aconteceu. Mas se você pensa que, sei lá, que eu quero me abrir sobre isso, se enganou. Já pode sair.
-Então, eu posso me abrir pra você?- Hugo surpreende ao falar com Júlia sem usar a Libras, demonstrando a voz como um pouco fanha.
-Desde quando você fala?
-Desde sempre- o videomaker senta numa cadeira situada no quarto, de costas para Júlia- Mas eu preferi me calar, Júlia. Fingir pra todo mundo que eu nunca tive voz.
-Por que você mentiu?
-Porque passei o mesmo que o Beto fez com você.
-Você... Foi violentado?
-Quando pequeno ainda. Eu não entendia bem o que tava acontecendo, tinha uns dois ou três anos. Mas eu me lembro do olhar de medo que ela, a minha babá, fazia quando meus pais chegavam "em" casa. Sempre me dizia que a gente ia brincar, mas que eu nunca podia repetir isso com ninguém, que não contasse nada. Teve um tempo que ela me prendeu num quarto escuro da casa onde eu morava e abaixou a calça que eu usava. Ela me molestou  de novo e eu fiquei com medo. Meus pais perceberam que tinha algo errado quando eu fui perdendo a minha fala.
-Mas você nunca tentou contar a verdade?
-Só de imaginar eu descrevendo tudo que ela fazia comigo, me dava nojo! Quando eles desconfiaram, tiraram a prova: colocaram uma câmera escondida no meu quarto e fingiram que iam sair. Pelo circuito interno, eles viram as imagens dela me...
-Eu nunca imaginei que você tivesse vivido isso... O Nuno sabe?
-Não. Você foi a única.
-Por que você revelou isso só pra mim?
-Pra que você não pensasse que é culpada do que aconteceu. Procura a polícia e denuncia o Beto.
-Você nunca gostou dele, não é?
-Sempre soube que ele gostava de você.
-Aquele miserável não gosta de ninguém.
-Mas eu sim. Do mesmo jeito que ele, eu também escondi que era apaixonado por você. Só que chega uma hora que a gente não pode mais esconder, nem acreditar que a gente é responsável pelos erros dos outros.
-Eu não posso contar nada à polícia... Eu tenho vergonha.
-Você vai ter que expor. Vai se expor. O Beto não vai mais fazer mal a ninguém se você não deixar. Pensa na Júlia que você mostra pra todo mundo, na moça forte e decidida que todo mundo acha que você é. Mostra que você não é só uma personagem.
Comovida, Júlia se deixa abraçar por Hugo, que finalmente se sentiu livre para admitir o que sentia.

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Fátima aparenta estar brava, e espera por notícias de Beto no corredor. César sai do quarto, um pouco empalidecido. Luiza está na sala, mas não é vista pelos familiares.
-E então, César? Como é que ele está agora?
-Eu... Não tenho boas notícias, Fátima.
-Por quê? O Beto piorou?
Luiza se aproxima sem ser percebida.
-Infelizmente, ele não resistiu- César admite com certo pesar, deixando Luiza em pânico.
-Como é que você deixou isso acontecer?
-Fiz tudo o que era clinicamente possível, Fátima, mas não deu. Apesar de ter controlado a hemorragia dele, ele estava fraco demais.
Desnorteada, Luiza abre a porta e sai do apartamento, sendo que Fátima e César não atentam para isso por estarem em choque com a morte de Beto.
-E agora? O que você vai fazer? A gente não pode deixar esse corpo aqui.
-Eu vou dar meu jeito. Vou falar com um rapaz do IML pra ele levar o corpo até lá e comunicar à família.
-Só que certamente vão querer explicações sobre a causa da morte, César.
-Disso eu sei, Fátima. Mas talvez seja o caso de eu conseguir um laudo que indique outra causa mortis pra ele. Um acidente, talvez.
-Coitada da Luiza. Primeiro, a morte da Soraia, e agora isso...
-A minha filha não vai ser presa, Fátima. Pra todos os efeitos, foi apenas um acidente casual que tirou a vida do Alberto.
-Sua passividade diante de tudo isso me assusta, César...
-O que você quer? Que eu entre em desespero por ter um cadáver na cama das minhas filhas? E que ele foi morto aqui dentro? Tudo tem que ser feito pra poupar a Luiza. Ela é quem me preocupa.

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Nuno está num banco da praia, ainda chateado pelo que aconteceu à Júlia. O celular começa a tocar e se trata justamente da sua irmã.
-Júlia?
-Você tá podendo falar, Nuno?
-Tô. O que foi?
-Eu pensei melhor e... Vou pra delegacia prestar queixa contra o Beto. Você pode ir comigo?
-Claro que eu posso. Me espera que eu já tô indo pra casa e te pego.
-Tá bom, tchau.
-Tchau- Nuno desliga o celular e encontra Luiza caminhando na areia da praia, desesperada.
A garota passa a lembrar do dia que em que jogou as cinzas da mãe na água do mar, sem andar muitos passos pelo fato de não saber nadar. Dessa vez, ela entra na água com o intuito suicida.
Ao perceber que depois do mergulho Luiza não apareceu  novamente, Nuno presume que a moça está se afogando, levantando-se do banco.

DEPOIMENTO

"O que é que a minha história tem de diferente das outras que contaram aqui? Eu não sei. Eu também ouvi tudo que não precisava ouvir, pois era vítima, e não agressora. Mas quando eu era adolescente, aconteceu de ficar quatro dias preso no sótão da minha casa. Tudo começou depois de uma discussão com a minha mãe, e o meu padrasto negou tudo aquilo que ela acusava ele de ter feito. Ele prometeu ir embora da vida dela, mas me levou também. Já tinha notado que ele me lançava uns olhares, e não entendi que a minha mãe estava cada vez mais desconfiada. Nesses quatro dias, eu só pensava no que ele ia fazer comigo. Não sei se por medo, mas não aconteceu nada. A polícia conseguiu descobrir pra onde ele tinha me levado e me resgatou. Mas, desde então, a relação com minha mãe não foi mais a mesma. Até exame de corpo de delito eu tive que fazer pra provar que não houve nada, mas nem  isso foi o suficiente. Na cabeça dela, eu dei motivo pro comportamento dele. Meu nome é Daniela e reconstruir uma relação arranhada é a minha luta diária."

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