25/08/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 12


Valente não se contém e surpreende com um beijo apaixonado, aparecendo atrás de Cissa quando ela pinta o próprio quarto com uma tinta verde-limão. O varão valoroso continua a todo vapor, revezando suas noites entre Recifeeling e Comportas do Céu. Obviamente, o beijo não contém nada além do que ele tem como permitido. Mas Cissa adora.
-Como é bom ficar contigo hoje, ajudando-me na reforma do quarto.
-Falei com o Hélio e ele liberou a mim. Não te deixarias fazer essa pintura sozinha.
-Ainda bem que tu estás aqui. Se eu dependesse do meu irmão para comprar uma lata de tinta, seria capaz de aparecer aqui com um frasco de guache!
-Ah, não fales assim do Michel. Tudo bem que ele é um tanto doidivanas, mas ele te ama, Cissa.
-Disto, eu tenho certeza. Como também do teu amor... – suspira fortemente.
-Que carinha é esta?
-Quatro anos vivendo o sonho de estar ao teu lado. Às vezes eu tenho medo de que tudo acabe.
-Vai depender de ti, Clarissa. Queres que tudo acabe?
-Nunca- beija o saxofonista.
-Todo melado... Preciso é de um bom banho.
-Tomes aqui mesmo.
-Não precisa, Cissa.
-Qual o problema? Eu não vou espiar pela porta do banheiro.
-Amor, eu não disse isto- fica envergonhado.
-Brincadeira, querido!- ri bastante- Se tu conseguisses ver a tua cara quando eu falei em tomar banho aqui...
-Apesar de a minha roupa estar lamentável, a solução é sair assim mesmo- corre para a cozinha, onde lava o rosto salpicado de tinta- Tenho que ir.
-Fiques mais um poucochinho, Valente...
-Ensaio, meu amor. Aproveitar que o Recifeeling está com um movimento tranquilo a esta hora e vou escolher o repertório. Fiques com Deus- beija a namorada, sorridente.
-Amém. Mais tarde eu passo lá para te ver.
Beatriz aparece à porta quando Valente a abre.
-Oi, Beatriz. A paz do Senhor para ti.
-Oi, Valente, tudo bem?- cumprimenta o saxofonista com um beijo no rosto.
-Tudo. Tenho que ir. Tchau, amor!- acena para Clissa.
-Beijo, lindo.
-Teu namorado não perde a mania de tentar evangelizar a mim... Atrapalhei alguma cousa?
-Por que a pergunta?
-Tua cara de insatisfação.
-Beatriz, eu adoro o Valente. Juro, eu amo mesmo. Mas este modo correto de portar-se, às vezes, me enoja.
-Tens aguentado o comportamento imutável do teu namorado há quatro anos, qual é o problema?
-Amiga, ser certinho não é sinônimo de gente interessante.
-Hum, parece que um casal que eu conheço acabou de cair na rotina...
-O Valente parece apaixonar-se por mim a cada dia. Disso eu não tenho dúvidas.
-A questão, Clarissa, é que ele não tem nada de você. Fica inacreditável até de ver o relacionamento dos dois durar tanto.
-Justamente. Eu investi nesse namoro porque ele nada tinha a ver comigo. O que eu achava que tinha a ver comigo não dava certo. Sinal de que eu estava errada, e envolvida com quem não acrescentava em nada a minha vida.
-Uma curiosidade que eu sempre quis perguntar, mas nunca tive a audácia: como ele é... Naquelas ocasiões?
-Beatriz, estás falando de quê? De sexo? Queres saber se transamos?
-Transam???
-Claro que não, não é? Não vamos ter nada até o nosso casamento.
-Imaginei que fosse assim. Mas, Cissa, é difícil de engolir.
-O quê?
-Meu bem, se tu fosses uma virgenzinha desamparada, eu até entendo que sexo não fosse lá uma questão fundamental para o namoro, mas não. Tu tens uma vida sexual.
-Tinha. Abdiquei dela, por enquanto.
-Voto de castidade? Agora conseguiste surpreender-me!
-Qual o problema, Beatriz? É a minha natureza.
-É uma imposição que te fizeram, colocaram para ti um modelo de regras. E o Valente fica alimentando isto.
-Alimenta, sim, e eu agradeço por isso.
-E como tu consegues? Não sentes falta?
-Beatriz, isto não é pergunta que se faça.
-Faço, sim. Sou tua amiga, quero saber.
-Bem, eu... Sinto, sim. E mais do que isso: sinto vontade de ir para a cama com ele o quanto antes.
-O que te impede?
-O casamento.
-Mas vocês ainda nem são noivos, podem ter que esperar mais ainda.
-Vamos suportar essa provação, então.
-Francamente, eu não entendo. Quer dizer, até compreendo que tu e Valente queiram casar, mas sem sexo é demais.
-Quem não entende as tuas neuras com o assunto sou eu.
-Dizem que se guardam um para o outro. Se é assim, melhor seria transar de uma vez.
-Enlouqueceste?
-O que fiz eu agora? Só estou usando a lógica. Tu pretendes manter relações apenas com ele; então, transes. Ninguém está a trair-se.
-Se fosse tão fácil assim...
-Qual a tua dificuldade?
-Atende pelo nome de Valente Valença. Mesmo eu sabendo que ele também deseja a mim, e que não está interessado em nenhuma outra pessoa, ele nunca aceitaria.
-Vamos analisar friamente os fatos: insististe bastante para ter ao seu lado um gajo que não tinha nada a ver contigo, mas que segundo a tua concepção de desiludida romântica, completava-te.
-E...
-E acho que depois de quatro anos, um casal tem cumplicidade o suficiente para falar abertamente sobre sexo. A cama para a qual queres levar teu namorado não vai receber ninguém além dele. Só não faças o papel da hipócrita.
-Acho curiosos os valores que ele tem... Passou boa parte da vida num orfanato, mas é como se tivesse sido criado dentro de uma igreja o tempo todo.
-O que prova por A mais B que teu saxofonista tem mais vocação para padre do que para qualquer outro ofício. Mas Valente não namora sozinho, e sim você. Se estás insatisfeita, fales com ele.
-Sabes o pior de tudo? É manter um relacionamento com um homem tão lindo quanto ele... E não poder usufruir.
-Caso ele faça objeção, amiga, melhor trocar.
-Beatriz, não vou tratar ninguém feito objeto.
-Credo, falas cada vez mais parecida com a Olívia.
-Porque ela tem razão. E quanto mais o tempo passa, mais eu fico arrependida das vezes que não dei ouvidos à tua irmã.
-Vamos ver até quando a tua fantasia de convertida consegue divertir-te.
Beatriz não crê nem um pouco na aceitação do evangelho por parte de Cissa, e continua sua amiga porque entendia o interesse escuso na conversão da moça: a conquista de Valente. Em algum momento, ela espera pela revelação de um caráter que em nada foi modificado. Se a moça realmente não sofreu mudanças, o tempo dirá.
A bem da verdade, a passagem de tempo somente serviu para mostrar que tudo, ainda que provisoriamente, permanecia igual. Todos seguiam acreditando que a vida que levavam estava próxima do que foi por eles idealizado. Olívia, por exemplo, foi se apaixonando mais e mais pela graduação que escolheu, e agora estava formada. Depois de toda a emoção vivida em sua colação de grau, bastam poucos dias apara que ela reencontre o caridoso professor, que tanto lhe deu incentivo, nos corredores da Universidade de Lisboa. Cumprimentam-se com um abraço.
-Como é que o senhor está?
-Abarrotado de trabalho, Olívia. E tu estás fazendo o quê na universidade?
-Vim à coordenação pegar o diploma provisório. Disseram-me que eu deveria esperar cinco dias úteis.
-Agora é desfrutar das férias, depois de tanto tempo.
-Ou procurar emprego, que é o que a realidade reserva a mim.
-Desististe de fazer uma pós-graduação no exterior?
-O senhor falou disso há um tempo. Mas eu não sei...
-Penses na sua área, no que tu tens vontade de investir. Acredito em você, na sua capacidade. Além do mais, mesmo que depois tu se canses e não sintas mais interesse na área, poderás se dedicar a tempo de obter um título de mestre. Isto conta bastante num currículo, Olívia. As chances de emprego aumentam consideravelmente quando o teu histórico é visto.
Segura de si na maioria das vezes, Olívia foi tomada de dúvidas devido à proposta do professor. Protelaria sua procura por emprego, o item mais procurado dos últimos tempos? Pouco demoraria para a graduada em Medicina dar uma resposta ao ilustre docente. Só que, enquanto ela pensa, outros dilemas vão acontecendo, e até mais graves do que a opção por um mestrado no exterior. É o caso de Michel, o irmão de Cissa, que mal sabe o que de tão grave acarretará, já que a sua vida será uma das menos afetadas. Futuro cunhado de Valente, e já cunhado em decorrência da consideração de um casamento sonhado por quem conhece o casal, de valoroso este não tem nada, exceto o afeto sincero pela irmã.
Voltando ao seu bagunçado apartamento após tocar em uma boate- por conta da pintura realizada por Cissa e Valente- ele se atira contra o sofá cinza da sala de estar e retira o celular do bolso. Liga para Tato, com o intento de marcar um encontro, mas como o telefone deste está em modo silencioso, e ele está prestes a sair com Dora num automóvel que havia ganhado de Kleber há quase dois anos, a chamada não é atendida.
O DJ liga mais uma vez, não obtendo sucesso em sua empreitada. Kleber percebe a movimentação excessiva e pergunta:
-Mas que correria toda é esta?
-Aproveitarei a liquidação que terá lá no Amoreiras- Dora esclarece, referindo-se a um dos shoppings center locais- E levarei Tato junto, porque também quero comprar umas peças novas para ele.
-Que pensamento de terceiro mundo é este, mulher? Quem te vê assim, até é capaz de pensar que não tens dinheiro para comprar um mísero ovo!
-Uma mulher sempre procura economizar, Kleber. Para as minhas compras serem exorbitantes, somente se forem presentes de aniversário.
-E o senhor, Pai? Por que ficaste hoje em casa?
-A agência está em reforma, lembras? A solução é ficar em casa e resolver as pendências por aqui mesmo.
-E quando vai ficar pronta, meu amor?
-Dentro de uns três dias.
-Então, já vamos- Dora beija o marido- Prometemos não demorar.
-Por sorte, eu não confio em ti quando munida de um cartão de crédito.
-Tolinho... – a esposa está ansiosa com as compras.
-A bênção, Pai- Tato beija a mão de Kleber.
-Deus te abençoe, meu filho.
Assim que saem Dora e Tato para retirar o carro deste da garagem, o agente de viagens sobe ao quarto para fazer alguns pagamentos através de seu notebook. Mas a porta do quarto do filho está aberta, e a chave do veículo está sobre uma moderna escrivaninha que havia comprado. Kleber vê o molho e pensa em correr para entregar, até que a tela do celular de seu filho liga a luz. Junto ao tal molho, é inevitável que o pai veja o aparelho acender o seu visor. A inscrição “mensagem de Michel” aparece no telefone.
-Não é possível que ele demore tanto para ler meu texto.
Não há demora, é verdade, mas Kleber está de posse do aparelho e lê o que Michel acaba de enviar. Tato e Dora chegam à garagem, já aberta, e ao encostar-se ao carro, o filho do casal põe as mãos nos bolsos da calça jeans que traja.
-O que foi, Tato?
-A chave do carro, Mãe. Deixei lá em cima, no quarto. Vou lá dentro buscar.
-Esperes, querido, eu vou contigo.
Kleber lê o texto enviado por Michel andando pela casa, parando no alto da escada. Tato e Dora encontram o patriarca dos Lacerda Goulart atordoado, e ele só consegue olhar para o celular. Acreditando que se trata de um mau súbito, o rapaz corre para auxiliar o pai, que desce às escadas esquivando-se do contato físico com o filho.
-O que é que o senhor tem?
-Nojo! Nojo de você, desgraçado! Infeliz! Não encoste tuas mãos sobre mim nunca mais!
-Kleber! O que te deu pra falar assim com o nosso filho?
-“Nosso filho”? Esse... – leva as mãos à boca- Tu não és nada meu! Não passas de uma farsa!
-Pai, o que está acontecendo?
-Isto cá!- mostra o celular- Permites que eu leia, na frente da tua mãe, o belo texto de amor que tu recebeste do Michel?
-Michel? Quem é Michel, Tato?
-Deixes que eu te responda, Isadora: o amante do teu filho! Do desavergonhado do Otávio!

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