Foram mais nove músicas, cada uma delas com o mesmo encanto
capaz de atingir ao público como se fosse a primeira interpretada por Valente.
Ao fim, trinta segundos de aplausos, e o saxofonista encerrava sua saga
eclética noturna sob assobios e algumas lágrimas de emoção vertidas por
clientes de Hélio. Avesso a detalhes provenientes da vida alheia, Kleber vê-se
na obrigação de perguntar ao irmão:
-Onde tu lapidaste esta pedra preciosa?
-Gostaste?
-Se eu gostei? Hélio, esse gajo é um verdadeiro fenômeno!
Deves ter gasto bastante para trazê-lo até aqui!
-Conta-nos, Hélio: de que local conheces esse saxofonista?
-Isto é o mais inacreditável, Dora: fui falar com alguns
fornecedores no centro e deparei-me com Valente, numa praça, reunindo pessoas
para expor sua arte. Logo percebi o potencial que ele possui e prontamente fiz
uma proposta de emprego.
-Por sorte, agora é ele um patrimônio do Recifeeling. Até nome de artista tem o dito cujo: Valente Valença.
-Não querem cumprimentá-lo?
-Com certeza- Dora fica entusiasmada.
-Valente, podes vir aqui um momento?- o jovem atende ao
pedido de Hélio.
-Pois não, senhor?
-Já te disse que não sou tão velho quanto aparento.
Esqueçamos as formalidades. Eu quero te apresentar duas pessoas bastante
especiais para mim: este é meu irmão, Kleber...
-Prazer- aperta a mão do dono da agência de viagens.
-E esta é a minha cunhada, Isadora.
-Muito prazer, senhora.
-O prazer é todo meu, Valente.
-Gajo, já aprendeste saxofone ainda usando fraldas? Tu és um
talento inquestionável!
-Mais ou menos isto. Aprendi logo quando criança. Algumas
noções eu tive sendo autodidata, o resto a Madre Joana fez questão de ensinar.
-Esta mulher, então, deve ser praticamente o Kenny G de
saias!- brinca Kleber.
-Kenny G? Desculpe, é que não sou muito adepto de músicos
internacionais.
-Kenny G é uma referência dentre os maiores saxofonistas do
mundo- Hélio explica ao órfão- Pensei que, por tuas habilidades, foste
identificá-lo.
-Podem até não acreditar, mas até poucos dias atrás, eu
passei os anos da minha vida como interno em um orfanato cristão.
-Como não perceber? Tens não somente o domínio da técnica,
mas também uma pureza difícil de ser encontrada dentre uma humanidade cada vez
menos amistosa- elogia Dora.
-Foi lá que aprendi o pouco que sei. A madre tocava o
saxofone durante as quermesses e eventos para angariar fundos para o lar. De
tanto observar, acabei me interessando.
-Mas estás tão habituado com o instrumento que pareces nem
ter comprado recentemente...
-Ah, é que era este o saxofone que ela usava nas festas do
orfanato. Quando eu completei dezoito anos, há uns dias, ela me presenteou com
ele, mas eu já era habituado a tocá-lo. É como se já fosse uma parte de mim. Só
não é mais inseparável de mim do que Deus.
-Por que tu não jantas conosco, Valente?
-Eu? Não, senhora, eu não vou atrapalhar o jantar de vocês.
-São meus convidados, Valente, fique à vontade. E um pedido
da minha família é uma ordem- acena para a recepcionista do restaurante-
Alessandra: peça para um dos garçons providenciar mais um lugar à nossa mesa.
-Sim, senhor.
-Começou angariando elogios justamente da minha família?
Fazes valer mesmo a contratação, hein, gajo?
-Obrigado, se... Obrigado, Hélio- corrige-se.
-Mas confesso-te que algumas canções eu não conhecia. De que
repertório tu as tiraste?- Kleber demonstra curiosidade.
-Bem, por ser cria de um local extremamente religioso, podes
imaginar que há limitações no meu conhecimento musical.
-Viram só como Valente consegue envolver a todos? Um
repertório católico e que consegue alcance tanto quanto os demais fados? E eu o
vi ensaiar toda a tarde, até parecia habituado às músicas.
-Confesso que em “Canção do mar” houve um poucochinho de
dificuldade para mim... Tentei dar ao máximo uma beleza a algo que, por si só,
já tem beleza.
-Kleber, meu querido, tu tens toda razão. Viemos na esperança
de ver um músico numa apresentação comum e vimos uma pedra preciosa lapidada.
-É uma pena que nosso filho não tenha vindo conosco, Dora.
São de exemplos como Valente que o Otávio precisa cercar-se...
Tato preferiu resguardar-se de programas noturnos, após o
incidente da madrugada que o envolvia, junto com Michel. Em contrapartida,
Beatriz vai ao shopping, numa rara
ocasião em que está acompanhada de Olívia. Terminadas as compras, a irmã desbocada
chama um táxi.
-E então?
-O motorista está a caminho, disse que dentro de cinco
minutos nos apanhará aqui no ponto- garante Beatriz, ao lado de mais duas
mulheres.
-Mesmo sendo feriado, não deveríamos ter demorado tanto tempo
lá dentro.
-Darling, uma mulher
precavida é aquela que não repete roupa em ocasiões festivas.
-Beatriz, para quê tantos vestidos? Seu corpo é um só! E você
frequenta festas a cada dois dias, porque fazes revezamentos com suas ressacas
monumentais.
-Por isso gosto mais da companhia da Cissa. Ela, ao menos, apoia
a mim.
-A Cissa faz vista grossa às tuas sandices. O que é um erro,
pois tu és péssima companhia para qualquer um. Aproveitando que estamos aqui,
eu queria pedir-te um favor: pares de influenciar a Cissa a vingar-se do Ricardo.
-Preferes vê-las sofrer a superar esse amor mal resolvido que
ela insiste em viver?
-Promiscuidade não é válvula de escape para ninguém, Beatriz.
-Discordo. E se isto for motivo de orgulho, eu me orgulho
bastante de não ser de um homem só.
-Não tens ideia do que falas...
-Sei, sim. E posso muito bem me responsabilizar acerca do que
faço também. Minha vocação nunca foi para noviça.
Correndo, aparece numa moto um bandido, com o rosto coberto
por um capacete preto, anunciando um assalto.
-O celular, moça- aponta uma arma à primeira moça, vestida de
amarelo- Agora!
-Não faças nada comigo, por favor!
-Agora!- sem saída, a moça entrega- Tu também. O que tiveres
dentro da bolsa, rápido!
-O que é isso?- Beatriz não esconde o susto.
-Ai, meu Deus... – pensa Olívia.
-Podes levar, é tudo que eu tenho- a segunda garota entrega o
objeto. Quando Olívia tira do bolso a sua carteira, acreditando ser a última a
ser abordada, espanta-se ao ver o meliante sequer dirigir-se à Beatriz.
-Não pode ser! Não pode ser! Alguém chame a polícia! Houve um
assalto aqui!- Beatriz sinaliza para os passageiros de um ponto de ônibus ampararem
as duas moças, bastante nervosas. Olívia levanta as mãos para o alto.
-Obrigado, Senhor! Obrigado pelo livramento que deste a mim e
à minha irmã!
-Enlouqueceste? Um marginal aparece armado no ponto de táxi,
rouba as moças e tu levantas as mãos para o céu? Ficaste maluca?
-O inimigo não tocou num só fio de cabelo nosso. Isto é
motivo para agradecer ao Senhor.
Incomodada com as palavras da irmã, Beatriz acena para um
carro policial que passa pela rua, e indica a direção seguida pelo ladrão sobre
a moto. Por conta do susto, a jovem mal consegue dormir. Bem ao contrário de
Valente, que levanta cedo para visitar o Lar do Menino Tobias. O motivo é
cumprir a promessa de não deixar Joana sem notícias.
-Isto tudo em tão pouco tempo, meu filho?
-Nem eu mesmo consigo acreditar no que aconteceu, Madre.
-Mas tu achas que este teu patrão vai pagar o suficiente para
te tirar lá do... De onde tu dormes?
-Mesmo que ele não pague tão alto, creio que consigo alugar
um quarto numa pousada. Mas algo que possa ficar entre o restaurante e a
igreja.
-Nunca pensei que aquele presente que eu te dei serviria
tanto. Viu só como Deus age?
-Vi, e quero continuar vendo.
-Mas contes pra mim: e a igreja que estás frequentando?
-Bem diferente do que estou acostumado. Mas como sei que Ele
está presente, não estranho nada. Afinal, o que me move é a vontade de
encontrá-Lo.
-Valente, eu quero pedir-te um favor.
-Peças dois. Se estiver a meu alcance...
-Quando tu precisares de ajuda, não te esqueças de recorrer
ao nosso Deus, tão cheio de misericórdia e amor. Mas eu peço que, quando
precisares desabafar, contes comigo.
-Sabe que às vezes não entendo por que a senhora me protege
tanto? É como se amasses mais a mim do que aos outros...
-É egoísmo da minha parte, eu sei, mas eu realmente protejo
mais por um motivo. Lembras quando era pequeno, e ansiavas assim que vinham
adultos buscando crianças para adotar?
-Isto, nem se eu fizesse esforço, esqueceria.
-Sorrias tanto, na esperança de que algum casal procurasse a
alguma das freiras e dissesse: “é com ele que eu quero ficar”. Depois, os anos
foram passando, os meninos foram embora, conseguiram família e tu foste se
fechando, ficando cada vez mais calado. Quando não te refugiavas aprendendo a
tocar, pedias que eu explicasse os capítulos da Bíblia que tu lias. E eu fui
compreendendo que eu não poderia passar na tua vida para deixar a impressão de
que tu eras mais um. O que eu quis foi que tu entendeste que Deus te ama tanto
que não permitiu um passado feliz para que tu pudeste fazer um futuro
maravilhoso.
-Terei de discordar. Deus e a senhora fizeram parte do meu
passado. Não tinha como ser mais feliz do que fui. E sempre farão parte da
minha vida. Sou eu quem tenho de pedir: chame a mim quando precisar de um
amigo. Não é este o papel que a senhora quis assumir em minha vida?
A madre e o saxofonista se abraçam. E num contexto cristão,
tão agradável quanto, é o encontro nos corredores da Faculdade de Medicina da
Universidade de Lisboa entre Olívia e o seu professor preferido, três dias
depois do assalto não concretizado.
-Quarto período e com notas invejáveis, não é, Olívia?
-Imagina, Professor. Faço o que consigo.
-Já pensas em alguma pós-graduação?
-Sinceramente, sim. Sei que eu estou muito adiantada, mas
penso mesmo em algo na área de Comunicação, Linguagem e Voz.
-A minha área? Nem é preciso dizer o quanto me sinto
lisonjeado por esta escolha. E onde a farás?
-Como assim? Aqui mesmo, na universidade.
-Deverias tentar o exterior.
-Ah, não, imagines. Se ao menos fosse bilíngue, ajudaria
bastante.
-Optes por alguma cujo Português é o idioma oficial... O
importante é que onde tu fizeres, haja investimento real na área. Se tu
quiseres, eu posso te passar uma lista de universidades que oferecem
pós-graduação nessa especialidade.
-Adoraria, se não for causar-lhe incômodo...
-Vou mandar para teu e-mail. Não deixes de checar.
-O senhor parece que veio do céu. Muito obrigado.
Falando no termo, a Igreja Comportas do Céu recebe novamente
as presenças de Valente e Cissa, que se encontram logo na entrada.
-A paz do Senhor... – falam mutuamente.
-Como estás tu?
-Melhor do que da última vez, tenho vivido maravilhas. E tu?
-Sigo pensando o tempo todo naquelas palavras que tu me
disseste. Foi ótimo abrir-me contigo.
-Pelo menos não vejo mais aquele ar de menina indecisa. Agora
pareces disposta a seguir em frente.
-E é a mais pura verdade. Mas não posso creditar o milagre
sem agradecer ao santo que o realizou: tu.
-Não fiz nada, irmã. Milagre somente Deus é quem realiza.
-Abriste os meus olhos. Todas as vezes que eu derramei
lágrimas foi porque eu quis derramá-las. Mas eu decidi que colocarei um sorriso
no meu rosto, a contragosto de quem quiser ver-me por baixo.
-Que mal lhe pergunte: seu problema é amor?
-Antes fosse. Eu sempre quis alguém que suprisse a minha
extrema carência. Mas estou disposta a dividir minha vida com quem merece fazer
parte dela. E quem melhor para acompanhar uma mulher que ainda engatinha na fé
do que um varão valoroso?
Nete chega à porta e observa Cissa e Valente próximos, ainda
que ele não tenha entendido o uso da expressão por parte da moça. O incentivo à
formação do casal provém de uma paráfrase inesperada (ainda que Nete nunca
queira segurar a língua, ao que devemos nos acostumar)...
-Bonito. Que bonito, hein? Que cena mais linda!
-A paz, irmã... – diz o tímido músico.
-Será que estou a atrapalhar o casalzinho aí?
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