27/10/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 21


-Dr. Lopes, talvez eu possa doar um dos meus rins para o Kleber. Posso, mesmo sendo a esposa?
-Claro que pode, mas precisamos fazer exames para saber se tu és compatível com ele. O mais natural é que o doador seja alguém que possua laços sanguíneos com o paciente. Vamos fazer os teus exames e logo saberemos se tu és apta para doar um rim ao Kleber.
-Eu já estava a telefonar para o Hélio, o irmão do meu marido, mas ele não atende.
-Não percamos tempo, Dora. Temos que aferir se tu és apta para fazer o transplante.
-Quanto tempo o meu marido ficará desacordado, Lopes?
-Por mais algumas horas. O pior é que, ao despertar, ele voltará a sentir as dores intensas.
-Vamos fazer o seguinte: eu ligarei mais uma vez para o meu cunhado. Ele também poderá vir para ajudar o Kleber.
-Está bem, então. Mas não demores. Vou preparar a sala de exames para que te recebam.
-Obrigada, Doutor- Dora insiste com outro telefonema- Atendas, Hélio. Atendas de uma vez... - a chamada é insistente, mas Hélio ainda não voltou para a sua sala. Desesperada pelo estado de saúde de seu marido, Dora faz os exames solicitados por Lopes.
Parece uma tortura para a dona de casa, como se estivesse pressentindo que todo o seu esforço na tentativa de salvar a vida de seu marido será inútil. Não totalmente... Mas o período utilizado para a realização dos testes que possam comprovar sua compatibilidade para o transplante é usado para que haja uma conversa definitiva entre Cissa e a visita indesejável que chegou ao apartamento dos Irmãos Marques Barboza. Em ambas as ocasiões, tudo soava como indigesto ao extremo.
-Sentes, Ricardo- Michel procura ser gentil com o ex-namorado da irmã.
-Obrigado.
-O que te traz aqui?
-Eu vou estar no meu quarto, fiquem à vontade- Cissa faz o anúncio.
-Por favor, Cissa. Eu insisto que fiques aqui. O assunto tem a ver contigo. Aliás, eu vim aqui para falar justamente contigo.
-Ah, sabemos o quão insistente tu és. Fui eu quem deixei de sê-lo, quando livrei-me da tua péssima influência. Aliás, não entendo o que temos para tratar depois de tanto tempo sem nos falarmos. Ao menos de minha parte, eu não tenho absolutamente nada para falar contigo.
-Muito ficou por dizer quando nós rompemos.
-Quando tu rompeste comigo, é o que queres dizer?
-Interpretes desta forma, tens todo o direito de ficar magoada.
-Ferida de morte! O que fizeste eu não desejo nem para o pior dos meus inimigos. A maneira como tu trataste a mim, como se eu não fosse ninguém, descartando-me ao me tratar como se eu não fosse a tua namorada, como se nem mesmo fosse eu mulher. Um bicho, para ti, tem mais serventia do que eu, que não fiz outra cousa além de amar-te.
-Hoje eu sei perfeitamente bem. E somente o sei por não ser mais o mesmo de antes.
-Verdade? E o que de tão impactante aconteceu, para não seres mais o mesmo canalha?
-Cissa, mantenhas a calma!
-Como queres que eu faça isto, Michel? Com este imbecil na minha frente, na minha casa, agindo como se não tivesse havido nada? Como se a minha raiva não tivesse razão de ser?
-Falas como se eu não estivesse aqui, bem na tua frente...
-Porque não estás! Para mim, deixaste de existir há muito tempo. Tu contribuíste para que eu pensasse assim!
-Olhes bem, Cissa... Não sou mais o mesmo homem, nem íntima e muito menos fisicamente. Não está nítida a diferença entre o rapaz que conheceste e o homem de agora?
-Aonde queres chegar com esta conversa, Ricardo?
-Ficaste boa parte do tempo que estivemos separados sem saber notícias minhas, não foi? Pois tem uma razão de ser.
-Ricardo, depois do teu rompimento com a minha irmã, foste para outra cidade. O que eu sei é o que todos nós sabemos.
-Ou o que eu deixei que soubessem.
-Digas logo o que queres com todo este lamento, Ricardo- Cissa faz questão de que as poucas frases ditas a Ricardo sejam acompanhadas por muita rispidez.
-Bem... Como vocês sabem, assim que o meu namoro com a Clarissa acabou, eu...
-Por opção minha, pois não queria mais ser feita de imbecil na frente de todos, já que tu escancaravas o teu caso com a Telma. O nome soa-te familiar? Aquela com a qual eu flagrei a ti na cama!
-Hoje eu sei muito bem quem é a Telma.
-Sabes como? Acaso ela fez o mesmo que tu fizeste comigo? A traição?
-Muito pior que isto.
-Não entendo o que pode ser pior do que ser passada para trás por quem se ama.
-Quando eu te disser, entenderás por que eu vim aqui, Clarissa.
-Sou toda ouvidos.
-Como tu bem pontuaste, Michel, eu viajei para outra cidade com a Telma. Queria começar uma vida ao lado dela.
-Ou seja: fazer tudo que eu pedia, e que te recusavas a conceder. Eu não vou ficar nesta sala nem mais um segundo que seja.
-Clarissa, vai interessar e muito a ti. Portanto, é melhor que não saias.
-Dizes de uma vez.
-Há dois anos, eu... Tinha vindo de uma festa com a Telma e...
-Termines, Ricardo- Michel percebe a aflição do rapaz.
-Eu estava dirigindo. Tanto eu quanto a Telma estávamos cansados. Até cheguei a sugerir que tomássemos um táxi, mas ela preferiu que eu dirigisse o meu próprio carro. Quando ainda estávamos na metade do caminho, ela aproximou-se do meu ouvido e começou a dizer coisas que... Causavam excitação em mim.
-Poupe-nos dos detalhes sórdidos de tua história com aquela mulher...
-Esta é a história, Clarissa, e infelizmente eu não posso fugir dela. Enfim... – Ricardo começa a narrar vagarosamente o que lhe havia sucedido- A sua boca havia chegado ao meu pescoço, e beijou-me com uma urgência, típica do comportamento da Telma. Por alguns segundos, eu segui por uma estrada longa, nem mesmo importando-me por onde eu estava, se era o caminho certo. Foi quando eu senti um calor sobre o meu abdômen. Era ela que não esperou sequer a oportunidade para desabotoar a camisa que eu usava e acariciava a mim, como se fosse a primeira vez que estivesse ao meu lado. Cheguei a pensar em parar o carro naquela estrada erma, escura, em meio aquela neblina, e tomar o seu corpo para mim, amá-la naquele mesmo lugar. Telma voltou a beijar-me, mas não mais no pescoço. Aproximou os seus lábios dos meus, e aquilo me conduzia à loucura. Os beijos que ela me deu naquela ocasião eram ainda ardentes do que ela costumava agir, não sei o que havia acontecido. Sem que eu mesmo sentisse, a braguilha da calça que eu vestia naquela madrugada foi aberta. Telma desprendeu-se do cinto de segurança e colocou um dos braços sobre a minha cabeça, e a sua mão direita, quando dei por mim... Daí por diante, a única coisa da qual consigo lembrar é da enfermeira correndo para chamar o médico porque, enfim, tinha acordado.
-Um acidente, Ricardo? Por esta razão ficamos tanto tempo sem notícias tuas?
-Onze meses em coma, Michel. O mundo passou, evoluiu e eu estava prostrado numa maca de hospital.
-Que coisa horrível... Mas e a Telma?
-Como ela estava sem o cinto de segurança, foi lançada para fora do carro quando ele capotou. O máximo que ela sofreu foi uma fratura. Ainda assim, conseguiu acionar os paramédicos pelo celular, já que eu fiquei preso entre as ferragens. Mas o dia do acidente foi a última vez que vi a Telma.
-Como assim foi a última vez? Vocês estavam juntos, tinham um relacionamento!
-Tínhamos- a declaração faz Cissa, que até então estava com o rosto direcionado para a direção oposta em que estavam o irmão e o ex-namorado, virar para ver a expressão derrotista do rapaz- Nos primeiros dias, eu soube que ela estava comigo, até que o médico disse que a minha situação era irreversível, que eu não acordaria e que, caso eu voltasse a despertar, ficaria com graves sequelas. Quando eu voltei para casa, depois de um tempo fazendo fisioterapia para recuperar parte dos movimentos, eu não encontrei mais nada que remetesse sequer à lembrança da Telma. Segundo o que me contaram, ela viajou para o Japão.
-Mas e tu, Ricardo? Estás como agora?
-Voltando à minha vida. Mas eu não poderia seguir em frente porque eu precisava fazer uma cousa, depois de todo este tempo, em que refleti sobre o que me aconteceu. Eu vim aqui para pedir-te perdão, Cissa.
-A mim?
-Tu foste a mais prejudicada pela minha ausência proposital, pela minha falta de caráter, pela minha falta de amor. Por isto, eu te devo desculpas- ajoelha-se diante da moça- Eu sei que nada do que eu disser vai apagar o que eu te fiz, mas...
-Não é preciso chegares a tanto, Ricardo...
-Por favor, Clarissa. Eu não vou conseguir viver com a consciência tranquila se não me perdoares de coração. Por favor, entendas o meu remorso.
-Ricardo... Se tu precisas disto para seguir tua vida em paz... Eu te perdoo, sim.
-De verdade?
-Olhes para mim. Eu ainda sou a mesma: transparente no que penso, no que sinto. Conheces-me melhor do que eu mesma. Tua tormenta é por causa do perdão que eu ainda não te dei? Então, sigas em paz. A minha vida transcorreu normalmente porque eu não fui capaz de alimentar mágoas.
A noiva de Valente abraça o ainda debilitado rapaz, deixando Michel abismado com o autocontrole de sua irmã.
-Obrigado. Eu precisava realmente disso, da tua sinceridade. Devia-te muito, Clarissa.
-Vais, Ricardo. Sigas o teu rumo, e não te preocupes com nada. Todos nós podemos recomeçar- a frase faz com que o ex-namorado da vendedora comece a chorar, comovendo Michel, que abraça o visitante.
-Fiques bem, Ricardo. Eu fico feliz que tu estejas pronto para começar de novo- Michel aperta a mão do rapaz.
-Obrigado, Michel. De coração, muito obrigado- sai do apartamento, deixando que o DJ feche a porta.
-Gente... O que foi que aconteceu aqui? Foi inacreditável! Não, e eu nem sei o que é mais absurdo de acreditar: o Ricardo neste estado deplorável que nós vimos ou tu, que ficaste compadecida da sua situação estarrecedora.
-Compadecida? Eu? Ainda por cima, pelo Ricardo? Pareces não conhecer mesmo a irmã que tens, Michel!
-Então, o que eu vi aqui foi... Uma encenação?
-Eu fiquei impressionada, juro-te. Mas não com o que aconteceu, nem mesmo com o que aquele escroque disse, tampouco com o seu pedido de desculpas.
-Do que falas exatamente?
-Do meu autocontrole. A minha vontade era de rir desesperadamente frente ao rosto do Ricardo, e gritar que ele mereceu cada dia de sofrimento que passou. Aliás, perto das lágrimas que eu derramei pelo fato de ele ter me trocado por outra, foi pouco!
-Minha irmã... – Michel senta em seu sofá- Agora tu foste longe demais. Nunca pensei que tivesse tanto ódio guardado pelo Ricardo.
-Mas a vida, quando quer, é justa, Michel. O mundo cobrou do Ricardo a conta que eu não consegui cobrar, apesar de ser eu a sua maior vítima. Hoje, basta olhar para mim. Estou noiva de um homem que me valoriza. E que é totalmente o oposto do Ricardo.
-Mas também é o teu oposto. Lembras que disseste que estavas com o Valente justamente porque ele não tem nada de teu?
-Só que ele tem caráter. E o meu Valente não precisa mendigar atenção, perdão, carinho... Isto tudo ele tem. Queres saber? Achei bem merecido. A única lástima nesta história toda é que não testemunhei o dia no qual Ricardo deu-se conta de que foi abandonado pela amante. Queria muito ter visto isto de perto... – seca uma lágrima em meio a um sorriso- Ganhei o meu dia, Michel.
Acostumado a ver a irmã agir de maneira passional, Michel fica estupefato de presenciá-la falando de alguém com tamanha frieza. Nem parece ser a moça desesperada por carinho alheio que conviveu com o rapaz durante toda a vida...
Após passar por todos os exames, Dora está sozinha no quarto em que Kleber está instalado. O efeito do sedativo administrado por Lopes começa a dissipar-se, mas o agente de viagens apenas se move, nada falando. O médico volta para falar com a esposa.
-E então, Doutor?
-Estou com o resultado dos teus exames aqui, Dora.
-O que dizem eles?
-Infelizmente, tu não és compatível com o Kleber.
-Ah, não. Não pode ser...
-Convoques outras pessoas da família o quanto antes, alguma delas pode doar um rim ao teu marido.
-Até agora, o Hélio não me atende. Eu já estou desesperada, sem saber o que fazer. A falta de notícia e o quadro do Kleber que não muda estão deixando-me ainda mais atordoada!
-Não deixes de insistir. Cada momento é precioso para salvar a vida do Kleber.
-Já sei... Eu vou ao restaurante do meu cunhado, o Recifeeling. Talvez ele esteja lá. Por favor, Doutor... Se acontecer alguma cousa, contates-me o mais rápido possível.
-Fiques tranquila, eu avisarei se for necessário.
-Dora... – Kleber acorda zonzo.
-Fales, meu amor.
-O que houve comigo? Onde estou?
-Não te preocupes com nada agora. Tu vais ficar bem, eu posso garantir.
A esposa de Kleber vai ao restaurante de Hélio, encontrando Cissa no caminho, já que ela também está indo ao Recifeeling, depois de ter passado em um shopping. Apressada, a vendedora entra no recinto antes da cunhada do proprietário. Vai ao encontro de Valente, com uma sacola rosada em mãos.
-Meu amor?
-Cissa, que surpresa!- cumprimenta a noiva com um beijo- Eu não te esperava aqui.
-A intenção foi exatamente esta: fazer-te uma surpresa.
-Muito bem-vinda, por sinal.
-Pensei em acompanhar uma das tuas apresentações hoje. Incomodo?
-Que pergunta é esta? Claro que fico feliz por prestigiar-me.
-Trouxe isto para ti.
-O que é?
-Abres.
-Deixa-me adivinhar: é de comer?
-Não.
-É um relógio?
-Não, mas tem hora.
-Hum, será que é o que estou a pensar?- desembrulha o presente- Que lindo, Cissa!
-Gostaste do celular?
-Adorei... Quer dizer, gostei, porque adorar, eu só adoro Um. Mas ele é muito lindo.
-Estavas mesmo precisando, aquele teu é bastante ultrapassado. Inclusive, ele vem com uma surpresa: o primeiro contato é o número da tua noiva.
-Tu pensaste em tudo mesmo, hein? Mas até que eu gostava daquele meu, mesmo sendo ele mais simples.
-Simples? Querido, aquele teu telefone móvel parecia mais um tijolo dos anos noventa! Daquele lá, só se salva o chip! Desapegues!
-Senta-te aí, eu vou reservar a mesa para tu usares durante o show da noite- Valente beija o rosto da noiva e fala com Alessandra- Tens como reservar aquela mesa para a minha noiva? Podes deixar, que eu pago.
-Tudo bem, Valente. A mesa está reservada para a Cissa.
-Obrigado, Alessandra- o saxofonista começa a apresentação, tocando algumas canções do nordeste brasileiro, de um repertório escolhido a dedo por Hélio, profundo admirador desta cultura. Dora entra no restaurante à procura de seu cunhado.
-Boa noite, Senhora Isadora.
-Alessandra, onde está o Hélio? Passei o dia inteiro a ligar e ele não me atende de maneira nenhuma!
-Que estranho, o Hélio não é disto... Talvez ele tenha esquecido o celular no seu escritório.
-Como assim? Ele não está no restaurante?
-Passou aqui de manhã, mas saiu para tratar com os fornecedores e não deu um prazo para voltar. Inclusive, estranho ele ainda não ter voltado. Até a apresentação de saxofone já começou.
-Preciso que tu me faças um favor, Alessandra. Assim que o Hélio chegar, tu vais dizer para ele ir à clínica do Dr. Jaime Lopes. Ele sabe onde fica.
-O que aconteceu?
-Meu marido está internado lá por conta de um grave problema e eu preciso que ele vá até lá. É caso de vida ou morte.
-Está bem, senhora. Avisarei ao Hélio quando ele voltar ao restaurante.
-Obrigada. Até mais ver.
Ao sair do restaurante, Dora vai até o ponto de taxistas e paga por uma corrida.
-Para que lugar, senhora?
-Para a clínica... Não, eu tive outra ideia... Vamos até o Edifício Portuário.
Tato está sozinho, acompanhando a programação televisiva, até que ouve a campainha do apartamento alugado pelo saxofonista.
-Que estranho... Será que o Valente esqueceu-se de algo ou é a noiva que veio procurá-lo?- abre a porta, ficando surpreso com a presença de Dora, que entra rapidamente.
-Preciso falar contigo, Otávio.
-Mãe, o que estás a fazer aqui?
-Tato, eu não sei nem como começar...
-Aconteceu alguma coisa com a senhora?
-Filho, tu vais ter que salvar a vida do teu pai.

20/10/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 20


-Não, não tem. Senta-te, Tato.
Cissa procura nem olhar para o rosto do filho de Dora e Kleber. Ele, por sua vez, concentra-se no culto que o amigo insistiu que ele deveria acompanhar. A tensão poderia aumentar quando Nete foi vista por Valente olhando fixamente para o visitante inesperado. Mas logo o músico se distrai quando a noiva pergunta, em seu ouvido:
-O que ele está fazendo neste lugar?
-Buscando A mesma pessoa que nós dois.
-A igreja não é lugar para ele.
-A igreja não é lugar de pecado. Mas se os pecadores não entrarem, ela fica vazia.
-Não acredito que isto está acontecendo...
Percebendo um clima hostil entre o casal de noivos, Fabiano entra com uma solução providencial: pede que os fieis deem as mãos e orem uns pelos outros. A estratégia consegue acalmar o coração da vendedora, mas não consegue interceder por ninguém, muito menos por seu escolhido. Nete, então calada, acredita que a qualquer momento o amigo de Valente faria algo que comprometesse a imagem do músico, como se a ideia que ela vinha formando sobre o saxofonista não fosse o suficiente. Comportou-se e manteve-se calado a maior parte do tempo. Abriu a boca apenas ao fim do culto, quando notou que a esposa do pastor ainda estava à porta e apertou a sua mão.
-Sejas bem-vindo e voltes quando quiser.
-Podes deixar, que talvez eu volte. Gostei muito daqui- Tato diz, seguindo Valente, que se despede da noiva com um beijo. Ela vai para o seu automóvel e segue para a casa na qual mora com o irmão, enquanto os rapazes seguem até o apartamento.
-A décima primeira praga do Egito quer voltar? Misericórdia!- quase pensando em voz alta, a mulher demonstra aflição.
-E aí? Gostaste do culto?
-Para ser sincero, gostei, sim. Só achei diferente. Não é algo com que eu esteja acostumado.
-Sabes que serás bem-vindo lá.
-Clarissa não gostou muito da minha presença.
-Tato, o que importa é o que tu foste fazer lá. Se fosse para causar discórdia, nem permissão para entrar tu terias.
-Valente, não estás sofrendo nenhum tipo de represália por minha causa, estás?
-Por que perguntas isto?
-Por causa do que o meu pai falou, naquele dia em que ele brigou conosco. Fiquei com medo de ele procurar o meu tio e...
-Com todo o respeito ao teu pai, mas o Hélio não vai livrar-se da ética que possui por conta do irmão.
-Tudo é válido para que escondam quem eu sou de verdade.
-Bem, se tu não fazes esforço para esconder, não será o Hélio ou o Kleber que farão o contrário em teu lugar.
-Como sempre, tu dizes a coisa certa para que eu me acalme.
-Deixes que eu seja sincero contigo novamente, Otávio.
-Fales.
-O que pretendes fazer agora? Tomarás os lamentos do que a vida poderia ter sido se não houvesse esta discrepância com Kleber como o teu norte?
-Quanto mais eu penso que tenho na mente um plano para seguir em frente, mais eu vejo-me perdido.
-Abandones a amargura que sentes.
-Como eu realizo esta proeza, bom amigo?
-Faças algo que te encha de prazer. E coloque os seus planos nas mãos de Deus.
-Por que eu agiria assim?
-Porque só dá errado aquilo que insistimos em ter sem necessitarmos. Continuarás querendo sofrer a troco de quê?
-Eu não quero sofrer mais, nunca disse que queria...
-Então, corras atrás dos teus sonhos, mas vive-os com quem realmente tem amor por ti.
-Sei que já te disse uma vez, mas repetirei: queira ter a fé que tu tens, Valente.
-Não queiras ser como eu, meu amigo. Queiras ser melhor do que ontem.
As palavras de Valente acalentam um pouco o coração angustiado de Tato. Nada como um bom amigo nas horas difíceis para mostrar que estará por perto, torcendo por nós. Olívia passava pela mesma sensação, estando em um lugar onde não conhecia ninguém, e que estava por indicação de alguém a quem tinha bastante estima. Logo, uma companhia agradável como Nicolas era bastante bem-vinda nessas horas. Como a intenção declarada era não falar sobre assuntos acadêmicos, ambos conversaram na lanchonete da universidade sobre o que disseram ter em comum: o interesse por Deus.
-Conta-me. De que denominação tu fazes parte?
-Eu? É... Da Igreja União Sacra.
-Nunca ouvi falar desta.
-É que é uma igreja pequena lá da minha cidade, entende?
-Como assim? Tu não és daqui?
-Não, eu ocupo um dos dormitórios que a universidade disponibiliza, já que sou do interior do estado. Por isso mesmo tenho ido tão pouco.
-Que pena. Sempre é bom estar perto do nosso Pai de amor.
-Mas eu estou. Eu sempre procuro ler a Bíblia, sempre oro, jejuo... E ainda mais agora, com toda essa loucura do doutorado...
-Não podemos falar de universidade, esqueceste?
-Tem razão, desculpe. Mas é que eu fico meio bobo na sua presença.
-Bom, a questão da frequência de culto eu posso resolver para você.
-Como, Olívia?
-Fiquei sabendo que há encontros bíblicos aqui na universidade, uma vez por semana. Quem sabe não possamos ir juntos?
-O amor que você sente por Deus é tão... As minhas palavras chegam a escapar.
-Gosto da tua companhia justamente por este aspecto, Nicolas: saber que tu és tão parecido comigo no que é tocante à fé.
O texto dito por Olívia deixa Nicolas em êxtase, sensação esta que não pode ser vivida no momento por Kleber, que desde o dia em que saiu do consultório médico, não conseguia ter um só minuto de paz, embora seguisse firme no propósito de não deixar que ninguém soubesse do seu problema de saúde. No dia seguinte, acorda-se às cinco e quarenta de uma manhã ensolarada e, após alguns minutos sentados na cama, decide tomar um banho. Seria para Dora mais um dia de trabalho, não fosse o fato de que o seu marido procuraria outra opinião médica acerca de seu caso antes de ir à agência de viagens que comandava.
Só que, para a dona de casa, seria um dia como qualquer outro. Claro que ainda estava às turras com seu esposo por causa da expulsão de Tato, mas cria expectativas de que o marido arrepender-se-ia de sua vigorosa opinião. Ainda cochilando, Dora coloca a mão esquerda sobre a cama. Ao dar-se conta da ausência de Kleber, levanta-se para escovar os dentes. Ele está no banho, mas deixa a porta aberta.
-Bom dia, amor- Dora cumprimenta o cônjuge, mas o barulho da água não permite que ele a ouça- Acordou tão cedo hoje, o que há?
Novamente, o irmão de Hélio sente fortes dores e leva a mão direita ao ventre, encostando a esquerda ao vidro do banheiro. A agonia do patriarca é intensificada.
-Eu não vou aguentar... Alguém me ajuda... – diz em voz baixa.
-Estás a ouvir-me, meu amor?- Dora é tristemente surpreendida com o forte baque sofrido por Kleber. Corre para ajudar o marido- Kleber? Kleber, o que é que tu tens?- pergunta ao vê-lo desfalecido- O que tu tens, Kleber? Kleber! Fales comigo, amor! Alguém me ajude! Socorro! Socorro!
Dora olha para o empalidecido rosto de seu esposo e corre até o telefone celular, onde procura o número da clínica do Dr. Lopes.
-Alô?
-Doutor, aqui é Isadora Queiroz Goulart- Dora corre para o banheiro enquanto dialoga com o médico da família.
-O que aconteceu com o... O que houve, senhora?
-Por favor, envies uma ambulância para a minha casa. O meu querido teve um mau súbito no banheiro e não está reagindo.
-Está bem, eu encaminharei o quanto antes. Mas o que Kleber teve?
-Não sei, Doutor. Ele desmaiou e ainda não voltou a si.
-Fiques tranquila, que eu já estou mandando a ambulância para onde vocês estão.
-Obrigada- abaixa novamente, segurando a cabeça do marido- Vais ficar bem, querido. O socorro já está a caminho.
As surpresas não estão restritas à família Lacerda Goulart. Os Marques Barboza são outro clã que serão tomados por um acontecimento inesperado dentro de instantes. No apartamento de Michel e Cissa, os irmãos conversam sobre os últimos acontecimentos envolvendo a relação entre a vendedora de roupas e o músico conhecido por “varão valoroso”.
-Como estão as coisas com o Valente?
-Juro para ti que estou tentando conduzir a situação com a mais absoluta parcimônia. Mas não tem dado certo.
-Acreditas que o teu noivo tem se colocado contra ti para defender o Tato?
-Nem menciones o nome daquele indivíduo aqui dentro, por favor. Já é o bastante tu o conheceres melhor do que todos nós!
-Devo-te um pedido de desculpas. Acabei o colocando na vida de vocês. Mas ele também não tinha o direito de expor a mim, como fez no dia do noivado.
-Se eu não amasse tanto o Valente, juro que riscaria este dia para sempre da minha memória. Agora os teus lamentos não adiantam, Michel. Deverias ter pensado quando da época em que conheceste aquele tipo.
-E eu lá imaginei que meu nome seria jogado aos quatro ventos por causa do que tive com o Tato?
-Durante quatro anos! E o pior é que isto não é nada perto do rastro de destruição que o desgraçado deixou em pouco tempo. Sabes que, lá na igreja, não se fala em outra cousa a não ser a boa ação do meu noivo. Fala-se mal!
-Mas o Valente também... Custava ter deixado aquele gajo ao relento? Ou ao menos poderia ter encaminhado para a casa do tio, mas não!
-Chega a ser bastante estranho ouvir-te falar desta forma.
-Não vejo razões para estranhares.
-Michel, tu vais ter que desculpar tua irmã, mas é algo completamente absurdo. Passaste anos vivendo um caso com aquele rapaz, e hoje te referes a ele como se jamais houvesse existido nada.
-Cissa, o que tivemos foi mantido em segredo por opção nossa, e era muito mais cômodo ao Tato porque o Kleber jamais aceitaria um filho que gostasse de ambos os gêneros. Só que, para mim, era ainda mais confortável. Imagines sair na rua e ser apontado por ter dormido com um homem. Claro que é difícil que tu entendas; afinal, só mesmo ir para a cama sem manter um compromisso para vocês é pecado, promiscuidade, sei lá eu o nome que vocês dão a isto...
-Óbvio que não vou recriminar a ti, Michel. Não sou a protestante mais santa do mundo, nem faço questão. Se eu deixei de ser do mundo, foi por um motivo muito forte. E esta razão parece escapar dos meus dedos a cada segundo...
-Não tens certeza do amor que aquele gajo sente por ti?
-Até sinto... Mas é como se eu não fosse o suficiente para o Valente, como se me recriminasse com o olhar. Tive vontade de pular no pescoço daquele atrevido quando ele pisou na igreja, e só não o fiz porque o meu homem estava ali.
-“Meu homem”... Já não é a primeira vez que te ouço falando desta forma sobre o teu noivo. Até causa medo a maneira que... É como se o Valente não fosse um homem que tivesse a mera possibilidade de amar-te.
-O Valente não pode mesmo amar a mim, Michel. Tem que me amar!- ouve-se a campainha -Estás esperando alguém?
-Não. Deves ser a encomenda que estava esperando pelo correio.
-Enquanto tu recebes, eu vou à cozinha preparar aquela macarronada...
-Nossa, há quanto tempo não fazes isto...
-Hoje é “a tarde”, meu irmão. Aguarde!- Cissa fica animada e vai à prateleira, procurar a embalagem do espaguete, enquanto a porta do apartamento é destrancada. Michel toma um susto ao ver um abatido jovem.
-Tu aqui?
-Faz muito tempo que não nos vemos, Michel...
-Nossa... Eu não esperava por... Entres, por favor.
-A tua irmã está aí?
-Michel, onde foi que guardaste o... – Cissa reage com indignação à visita- O que estás fazendo aqui?
-Precisamos falar, Clarissa. Muito seriamente.
O tempo que Ricardo levou para chegar à casa de Cissa e Michel é o mesmo que foi utilizado pela ambulância para levar Kleber às pressas para a clínica do Dr. Lopes, onde é submetido a uma bateria de exames, ainda desacordado. Dora liga para Hélio a fim de avisar sobre o ocorrido, mas este deixa o celular no silencioso sobre a mesa de sua sala particular, enquanto acerta alguns detalhes da apresentação de Valente com Alessandra.
Lopes sai do quarto em que Kleber está internado, sob efeito de fortes sedativos. Dirige-se à esposa do paciente.
-O que está havendo com o meu marido, Doutor?
-Dora, venhas comigo, por favor...
-O que tiveres de dizer, dirás aqui. Não me ocultes nada.
-O Kleber veio procurar-me há algum tempo. Disse que estava com desconforto para urinar e sentia dores.
-E por que ele não me disse nada?
-Provavelmente para não te preocupar.
-Qual foi o diagnóstico?
-Insuficiência renal aguda.
-Não acredito... O Kleber...
-Disse-me ele que procuraria outra opinião, por não ter crido nos exames que eu fiz. Mas a situação do teu marido é realmente grave. Entrei em contato com o banco de doadores da cidade e...
-Esperas... Doadores? O Kleber vai fazer um transplante?
-Ele precisa. Se não fizer a cirurgia, ele pode morrer. E o pior é que não há órgãos disponíveis nos bancos. Temos que correr contra o tempo para encontrar uma pessoa compatível com o Kleber.
-Mas... Quem poderia doar?
-Qualquer pessoa, já que a extração de um rim não compromete a saúde de um doador. Só que, na falta de pacientes que tenham rins reservados para a doação, teremos que apelar para alguém da tua família.

13/10/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 19


-A óbito? Que espécie de brincadeira é esta que estás fazendo comigo?
-Não lidaria com um assunto tão sério desta maneira, Kleber.
-Mas deve haver alguma forma de resolver o problema, sem que eu apele para uma cirurgia! A própria hemodiálise, como eu te falei. Basta que tu digas quando eu posso iniciar o tratamento e...
-Se ao menos a tua doença renal fosse crônica, poderíamos fazer este tipo de tratamento, mas não é o caso. Trata-se de um quadro agudo. O exame de sangue que tu fizeste hoje demonstra um alto grau de potássio. Qual é a tua frequência no que diz respeito à quantidade de vezes que vais ao banheiro para urinar?
-Nas últimas semanas, eu tenho estado com muita vontade, mas são poucas as vezes que consigo expelir urina.
-Tomas água com frequência?
-Sim, sim. E agora tenho tomado mais, justamente para... Não podes estar dizendo a verdade.
-Infelizmente estou, Kleber. E o pior é que, se tu não tratares a tempo, pode desencadear um inchaço na região da próstata...
-Chega, eu não quero ouvir mais nada...
-Mas, Kleber...
-Por favor! Fui suficientemente claro! Vamos encerrar este assunto...
-Tens que começar o tratamento o quanto antes, fazer contato com o registro de doadores da capital...
-Por enquanto, não. Eu não quero preocupar minha mulher.
-Manter-se calado não vai trazer outro resultado que não seja o agravamento da sua situação.
-Não quero que saibam de nada!- grita, agora em pé- Eu tenho que ir.
-Kleber, não sejas teimoso.
-E tu não sejas irritante! Ninguém pode saber o que os exames revelaram, entendeste bem? Ninguém vai saber. Boa noite.
Longe da clínica, Kleber continua rejeitando o diagnóstico de insuficiência renal aguda. Em breve, procuraria outro médico, pois queria que outro profissional dissesse-lhe algo diferente. Ao menos, Lopes seguiria com sua ética e não revelaria nada para a parentela do agente de viagens. Isto explica a calma de Tato durante o ato de abrir a porta para Cissa, quando esta visita Valente na mesma noite. Calmo por não saber sobre Kleber, e nem imaginar que fosse a noiva desesperada tocando a campainha.
-Onde está o meu Valente?
-Varão valoroso, tu tens visita- brinca Tato, avisando ao amigo que está na cozinha, fechando a porta e indo para o quarto.
-Amor, que surpresa!
-Não esperava ver a mim hoje?- beija-lhe de uma forma urgente.
-Não, é que tu falaste do ensaio na igreja. Jurei que tinhas ido diretamente para casa.
-Tive uma ideia e vim até aqui para saber o que tu achas.
-Digas, então.
-Por que nós dois não adiantamos o nosso casamento?
-O que te deu, Cissa?
-Nada. Apenas acho que não temos que esperar tanto.
-Mas eu não disse quando vamos nos casar, então não podes dizer que vai demorar tanto.
-Valente, eu conheço-te. Esperas que a nossa vida dê um giro de trezentos e sessenta graus.
-Não, isto eu quero que Deus faça, não nós.
-Sabes quanto tempo pode demorar a acontecer? Uma casa própria para nós dois e o meu próprio negócio?
-É por esta razão que temos que esperar. Teremos que dividir um apartamento enquanto eu financio a casa nova e tu lidas com o teu comércio, Cissa. O melhor que temos a fazer é aguardar...
-“Aguardar”, “esperar”... Pareces que não tens outras palavras em teu glossário particular a não serem estas.
-O que eu tenho percebido é o quanto temos tido desentendimentos ultimamente. Isto significa alguma cousa, Cissa?
-Prefiro que tu me digas.
-O que foi? Não se esquives do meu questionamento, é uma simples pergunta.
-De fato, nós temos discutido bastante. Mas não digas que não sabes a real razão.
-Sei, sim. Mas não concordo com ela.
-Hoje, a Irmã Nete estava comentando da briga que o Otávio teve com o pai. Por que não me disseste nada?
-Porque é um assunto particular que envolve somente os dois.
-A ti também. Pois ele te acusou de ser o que tu não és!
-E acreditas que eu queira preocupar-me com a opinião do Kleber?
-Não, com ele não. Mas com o que as pessoas podem pensar a respeito deste caso. Valente, a permanência do Otávio virou algo fora de controle.
-A dor de cabeça causada pelo Tato está na tua cabeça e da Nete. Cissa, pelo amor de Deus, tu sabes que ela implica com qualquer ser humano nas horas vagas. E nas úteis, faz a mesma cousa.
-Tu já o ajudaste, o Hélio esteve aqui para interceder por ele, o pai descobriu o teu endereço... O que mais precisa ocorrer para tu jogares este gajo para fora do teu apartamento?
-Vontade de ser excessivamente desumano, Cissa. Não quero fazer com ele o que supostamente fizeram comigo.
-Não tens culpa do abandono dos teus pais.
-Para eles, talvez eu devesse ter.
-A situação é completamente diferente.
-Concordo. Mas o Tato não vai ficar aqui para sempre.
-E se nos casarmos, é que não ficará mesmo na minha casa.
-Nossa casa.
-O que é isto? Estás confrontando a mim?
-Confrontaria se tu fosses a minha dona. Apenas estou conversando contigo, insistindo para que tu se dês bem com o Tato.
-Nunca. Depois do que ele fez, admiro-me muito de ver-te pedindo isto.
-Cissa, eu nunca fui um homem de impor condições. Talvez por conta disso eu não goste de impor na vida alheia aquilo que eu aceito como verdade. Eu simplesmente a vivo e pronto.
-Mais uma frase enigmática? O que queres dizer?
-Que o amor que tu sentes por mim nasceu por aquilo que eu sou, e não pelo que queres tornar-me. Sabes por que razão estamos juntos até hoje?
-Diga-me, Valente.
-Porque não tentaste afastar-me do amor do Criador. A mulher que leva o homem para mais perto de Deus é a ideal.
-E não sou eu este tipo de mulher, Valente? Acaso duvidas da minha fé?
-De jeito nenhum. Só não ponhas à prova aquilo que eu sou. Eu tenho pecados, falhas... Defeitos como todos. O pedestal não é lugar para mim e jamais será. Se tu suportas os meus defeitos, posso te garantir que sabes amar. Caso ames as minhas poucas virtudes, é mero encantamento. Agora, se não gostas nem de uma coisa nem de outra, eu não sei o que tu sentes por mim.
-Isto tudo é um “sim” ou um “não”?
-Vou pensar. Coloquei pipoca no micro-ondas, queres comer comigo?
-Claro, meu amor. Claro que aceito.
Se no apartamento do saxofonista existe uma determinada tensão devido à oposição de Cissa à presença de Tato, no Recifeeling a situação estava prestes a se repetir. Kleber, um pouco pálido, chega à recepção do restaurante e encontra Alessandra.
-Onde está o meu irmão?
-Em sua sala, Dr. Kleber... – Alessandra vê o agente de viagens passar como um foguete, disposto ao que pretendia. Kleber abre a porta, assustando Hélio.
-Preciso falar contigo agora mesmo- senta-se na frente do irmão.
-Aconteceu algo com o Tato?
-Não, mas vai acontecer.
-Kleber, o que tu tens? Estou a te achar tão...
-Vamos focar no que realmente interessa, Hélio. Eu quero que... Ou melhor: eu exijo que tu demitas o saxofonista que deu abrigo ao meu filho.
-Como é?
-Não vou repetir, entendeste muito bem.
-O que não compreendo é a tua desfaçatez de pensar que eu vou fazer isto. Ainda mais agora, que Valente está prestes a casar-se.
-Não me importam os planos que ele tenha traçado. Apenas exijo que o ponhas para fora do restaurante.
-E quem és tu para tomar decisões acerca do Recifeeling? Com que autoridade queres alterar o meu quadro de funcionários?
-Sou irmão do dono, esqueceste?
-Quem anda com problemas de memória és tu, porque eu ainda sou o dono do restaurante. E não vou jogar o Valente na rua por um capricho teu.
-O que tu chamas de capricho nada mais é do que uma tentativa de salvar o Otávio da perdição.
-Que argumento tu usarás agora, Kleber? Dirás que a bissexualidade do teu filho é fruto da convivência com o Valente, como se não tivesse tido um romance com outro homem às escondidas?
-Porque não viste o que eu presenciei: a forma como os dois abraçaram-se.
-Desconfias do Tato por conta de tudo o que descobriste com relação a ele. Mas daí a supor que exista um interesse escuso na amizade que ele cultiva com Valente é demais.
-Pensas que conheces tão bem o músico... Achas o quê do fato do tal Valente dar guarida justamente ao Otávio? Coincidência? Será que ele realmente moraria com um desconhecido, que trabalha para o seu tio, e não mencionaria nenhum membro de nossa família?
-Tato está magoado com todos nós, depois da forma como tu o trataste. Ele não confia em nós porque acredita que vamos recriminá-lo.
-Após ter feito o maldito caso com o Michel vir à tona, o que querias tu que eu fizesse? Abraçar o meu filho e incentivá-lo a prosseguir com a prática da pouca vergonha?
-Não! O que deverias ter feito é chamado para conversar! Diálogo também é capaz de resolver os problemas, caso não tenhas ciência disso...
-Ah, poupes-me! Falas com tranquilidade sobre isto porque não sabes o que é ser pai.
-Talvez tenhas razão. Mas, supondo que tu estejas mesmo certo, a minha escassez de know-how na paternidade pode fazer com que eu afirme que... O Valente não será demitido. Conhecendo-te como eu bem conheço, sei o que pretendes: fazer como ele passe por dificuldades financeiras e que Tato desista da vida simplista que leva para voltar à tua casa.
-Não vais me ajudar mesmo, não é? Está bem, então. Só peço que aguarde, com paciência, a punhalada que aquele maldito músico te dará. Tenhas um péssimo dia- sai apressadamente, após seu irmão constatar seu real intento.
-Kleber! Kleber, voltes já aqui! Kleber!- apela, inutilmente- Tomara que ele se arrependa de pensar tão mal sobre o próprio filho.
O que Hélio não desconfiava era de que não seria tão rápida assim a revisão dos valores que Kleber faz do filho e de seu amigo saxofonista. Era necessário conhecer mais a fundo o caráter de ambos, tarefa esta a qual Olívia se propunha longe dali, nos corredores da universidade, quando encontra casualmente Nicolas mais uma vez.
-A paz do Senhor.
-Amém.
-Como é que você está?
-Bem, e tu? Como tens passado?
-Melhor agora, que te vi- a frase arranca um tímido sorriso da estudante- Claro que continuo naquela correria para aprontar a defesa da tese.
-Já está próxima a tua defesa?
-Mês que vem, acredita?
-Nossa! Mas estás adiantado, pelo menos?
-Faltam só as considerações finais... Só que rola aquele estresse sempre, como se fosse final de período na faculdade. Nós ficamos a mil, e temos que levar com naturalidade.
-Queria muito dedicar-me à minha tarefa com toda esta calma que tu demonstras.
-“Calma”, Olívia?- ri- Eu estou uma pilha de nervos, são contadas as noites que eu durmo, tamanha a ansiedade pra que a defesa chegue logo.
-Gostaria muito de estar lá.
-E vai. Já está mais do que convidada. Só falta marcar o dia, mas eu posso te avisar, mandar uma mensagem pro teu celular.
-Faço questão de comparecer ao dia da tua vitória.
-O mesmo eu posso dizer de você... Do seu mestrado, é claro.
-É...
-Sinto falta de desafogar um pouco, entende? Sair pra dar um passeio, respirar... Aposto que, com você, acontece o mesmo.
-Pois é. Depois que o resultado da seleção do mestrado e eu, graças a Deus, fui aprovada, só vivo aqui dentro.
-Graças a Deus mesmo... A gente podia marcar algum lugar pra se divertir juntos, o que você acha?
-Eu? Uma ótima ideia. Mas que lugar, Nicolas?
-Sabe o Sófocles, aquele restaurante que fica aqui dentro do campus?
-O que dizem que tem preços salgados?
-Esse aí. Eu te convido pra gente fazer um lanche depois da tua aula, você quer? Aí, a gente aproveita pra bater um papo sobre a faculdade, a pós-graduação... Qual é o teu assunto preferido?
-Deus. E tenho para mim que é o teu favorito também, a julgar pelo que conversamos.
-Claro, claro que é. Que dia está bom pra você?
-Pode ser amanhã mesmo, se não tiveres nenhum compromisso...
-OK, então. Amanhã, então, a gente se vê. Fica na paz.
-Que Ele te acompanhe.
-Amém, Olívia.
Assim que os jovens se afastam um do outro, um estudante, visivelmente furioso, cola quatro cartazes com o retrato de uma graduanda da instituição...
-“Suzane Lins de Oliveira, vinte e um anos, desaparecida desde o dia primeiro de junho de dois mil e vinte, foi vista pela última vez nos arredores do prédio do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde. Até quando o reitor da universidade continuará omisso a este e outras ocorrências de desaparecimento, mantendo a polícia e a imprensa longe das investigações do paradeiro das estudantes que vêm sumindo desde o início do ano passado?”.
Mistérios a parte, voltamos à Lisboa para que os frequentadores da Igreja Comportas do Céu sejam pegos de surpresa. Em cada banco do local, cabem cerca de cinco pessoas, e no que estão posicionados Cissa e Valente, só há quatro fieis. Fabiano está comandando a liturgia referente à ocasião e sua amada (porém inquieta) esposa está à porta do templo. Como o culto teve início vinte minutos antes do momento descrito, ela pensa:
-Acho que já posso fechar a porta, não virá mais ninguém hoje. A igreja está praticamente lotada.
-Boa noite- alguém chega ofegante por ter corrido para acompanhar o rito religioso a tempo.
-Tu?
-Eu posso entrar?
-Claro... Fiques à vontade.
A vontade real de Nete era impedir a entrada do visitante, que procura um lugar para sentar-se, mas o único lugar disponível é o que está ao lado de Valente. Justamente o homem que o convidou.
-Tem alguém aqui, varão valoroso?
Cissa e Fabiano procuram concentrar-se no tema abordado naquela noite, mas por segundos ficam surpresos com o fato de Tato ter aceitado vir ao templo religioso.