-Não, não tem. Senta-te, Tato.
Cissa procura nem olhar para o rosto do filho de Dora e
Kleber. Ele, por sua vez, concentra-se no culto que o amigo insistiu que ele
deveria acompanhar. A tensão poderia aumentar quando Nete foi vista por Valente
olhando fixamente para o visitante inesperado. Mas logo o músico se distrai
quando a noiva pergunta, em seu ouvido:
-O que ele está fazendo neste lugar?
-Buscando A mesma pessoa que nós dois.
-A igreja não é lugar para ele.
-A igreja não é lugar de pecado. Mas se os pecadores não
entrarem, ela fica vazia.
-Não acredito que isto está acontecendo...
Percebendo um clima hostil entre o casal de noivos, Fabiano
entra com uma solução providencial: pede que os fieis deem as mãos e orem uns
pelos outros. A estratégia consegue acalmar o coração da vendedora, mas não
consegue interceder por ninguém, muito menos por seu escolhido. Nete, então
calada, acredita que a qualquer momento o amigo de Valente faria algo que
comprometesse a imagem do músico, como se a ideia que ela vinha formando sobre
o saxofonista não fosse o suficiente. Comportou-se e manteve-se calado a maior
parte do tempo. Abriu a boca apenas ao fim do culto, quando notou que a esposa
do pastor ainda estava à porta e apertou a sua mão.
-Sejas bem-vindo e voltes quando quiser.
-Podes deixar, que talvez eu volte. Gostei muito daqui- Tato
diz, seguindo Valente, que se despede da noiva com um beijo. Ela vai para o seu
automóvel e segue para a casa na qual mora com o irmão, enquanto os rapazes
seguem até o apartamento.
-A décima primeira praga do Egito quer voltar? Misericórdia!-
quase pensando em voz alta, a mulher demonstra aflição.
-E aí? Gostaste do culto?
-Para ser sincero, gostei, sim. Só achei diferente. Não é
algo com que eu esteja acostumado.
-Sabes que serás bem-vindo lá.
-Clarissa não gostou muito da minha presença.
-Tato, o que importa é o que tu foste fazer lá. Se fosse para
causar discórdia, nem permissão para entrar tu terias.
-Valente, não estás sofrendo nenhum tipo de represália por
minha causa, estás?
-Por que perguntas isto?
-Por causa do que o meu pai falou, naquele dia em que ele
brigou conosco. Fiquei com medo de ele procurar o meu tio e...
-Com todo o respeito ao teu pai, mas o Hélio não vai
livrar-se da ética que possui por conta do irmão.
-Tudo é válido para que escondam quem eu sou de verdade.
-Bem, se tu não fazes esforço para esconder, não será o Hélio
ou o Kleber que farão o contrário em teu lugar.
-Como sempre, tu dizes a coisa certa para que eu me acalme.
-Deixes que eu seja sincero contigo novamente, Otávio.
-Fales.
-O que pretendes fazer agora? Tomarás os lamentos do que a
vida poderia ter sido se não houvesse esta discrepância com Kleber como o teu
norte?
-Quanto mais eu penso que tenho na mente um plano para seguir
em frente, mais eu vejo-me perdido.
-Abandones a amargura que sentes.
-Como eu realizo esta proeza, bom amigo?
-Faças algo que te encha de prazer. E coloque os seus planos
nas mãos de Deus.
-Por que eu agiria assim?
-Porque só dá errado aquilo que insistimos em ter sem
necessitarmos. Continuarás querendo sofrer a troco de quê?
-Eu não quero sofrer mais, nunca disse que queria...
-Então, corras atrás dos teus sonhos, mas vive-os com quem
realmente tem amor por ti.
-Sei que já te disse uma vez, mas repetirei: queira ter a fé
que tu tens, Valente.
-Não queiras ser como eu, meu amigo. Queiras ser melhor do
que ontem.
As palavras de Valente acalentam um pouco o coração
angustiado de Tato. Nada como um bom amigo nas horas difíceis para mostrar que
estará por perto, torcendo por nós. Olívia passava pela mesma sensação, estando
em um lugar onde não conhecia ninguém, e que estava por indicação de alguém a
quem tinha bastante estima. Logo, uma companhia agradável como Nicolas era
bastante bem-vinda nessas horas. Como a intenção declarada era não falar sobre
assuntos acadêmicos, ambos conversaram na lanchonete da universidade sobre o
que disseram ter em comum: o interesse por Deus.
-Conta-me. De que denominação tu fazes parte?
-Eu? É... Da Igreja União Sacra.
-Nunca ouvi falar desta.
-É que é uma igreja pequena lá da minha cidade, entende?
-Como assim? Tu não és daqui?
-Não, eu ocupo um dos dormitórios que a universidade
disponibiliza, já que sou do interior do estado. Por isso mesmo tenho ido tão
pouco.
-Que pena. Sempre é bom estar perto do nosso Pai de amor.
-Mas eu estou. Eu sempre procuro ler a Bíblia, sempre oro,
jejuo... E ainda mais agora, com toda essa loucura do doutorado...
-Não podemos falar de universidade, esqueceste?
-Tem razão, desculpe. Mas é que eu fico meio bobo na sua
presença.
-Bom, a questão da frequência de culto eu posso resolver para
você.
-Como, Olívia?
-Fiquei sabendo que há encontros bíblicos aqui na
universidade, uma vez por semana. Quem sabe não possamos ir juntos?
-O amor que você sente por Deus é tão... As minhas palavras
chegam a escapar.
-Gosto da tua companhia justamente por este aspecto, Nicolas:
saber que tu és tão parecido comigo no que é tocante à fé.
O texto dito por Olívia deixa Nicolas em êxtase, sensação
esta que não pode ser vivida no momento por Kleber, que desde o dia em que saiu
do consultório médico, não conseguia ter um só minuto de paz, embora seguisse
firme no propósito de não deixar que ninguém soubesse do seu problema de saúde.
No dia seguinte, acorda-se às cinco e quarenta de uma manhã ensolarada e, após
alguns minutos sentados na cama, decide tomar um banho. Seria para Dora mais um
dia de trabalho, não fosse o fato de que o seu marido procuraria outra opinião
médica acerca de seu caso antes de ir à agência de viagens que comandava.
Só que, para a dona de casa, seria um dia como qualquer outro.
Claro que ainda estava às turras com seu esposo por causa da expulsão de Tato,
mas cria expectativas de que o marido arrepender-se-ia de sua vigorosa opinião.
Ainda cochilando, Dora coloca a mão esquerda sobre a cama. Ao dar-se conta da
ausência de Kleber, levanta-se para escovar os dentes. Ele está no banho, mas
deixa a porta aberta.
-Bom dia, amor- Dora cumprimenta o cônjuge, mas o barulho da
água não permite que ele a ouça- Acordou tão cedo hoje, o que há?
Novamente, o irmão de Hélio sente fortes dores e leva a mão
direita ao ventre, encostando a esquerda ao vidro do banheiro. A agonia do
patriarca é intensificada.
-Eu não vou aguentar... Alguém me ajuda... – diz em voz
baixa.
-Estás a ouvir-me, meu amor?- Dora é tristemente surpreendida
com o forte baque sofrido por Kleber. Corre para ajudar o marido- Kleber?
Kleber, o que é que tu tens?- pergunta ao vê-lo desfalecido- O que tu tens,
Kleber? Kleber! Fales comigo, amor! Alguém me ajude! Socorro! Socorro!
Dora olha para o empalidecido rosto de seu esposo e corre até
o telefone celular, onde procura o número da clínica do Dr. Lopes.
-Alô?
-Doutor, aqui é Isadora Queiroz Goulart- Dora corre para o
banheiro enquanto dialoga com o médico da família.
-O que aconteceu com o... O que houve, senhora?
-Por favor, envies uma ambulância para a minha casa. O meu
querido teve um mau súbito no banheiro e não está reagindo.
-Está bem, eu encaminharei o quanto antes. Mas o que Kleber
teve?
-Não sei, Doutor. Ele desmaiou e ainda não voltou a si.
-Fiques tranquila, que eu já estou mandando a ambulância para
onde vocês estão.
-Obrigada- abaixa novamente, segurando a cabeça do marido-
Vais ficar bem, querido. O socorro já está a caminho.
As surpresas não estão restritas à família Lacerda Goulart.
Os Marques Barboza são outro clã que serão tomados por um acontecimento
inesperado dentro de instantes. No apartamento de Michel e Cissa, os irmãos
conversam sobre os últimos acontecimentos envolvendo a relação entre a
vendedora de roupas e o músico conhecido por “varão valoroso”.
-Como estão as coisas com o Valente?
-Juro para ti que estou tentando conduzir a situação com a
mais absoluta parcimônia. Mas não tem dado certo.
-Acreditas que o teu noivo tem se colocado contra ti para
defender o Tato?
-Nem menciones o nome daquele indivíduo aqui dentro, por
favor. Já é o bastante tu o conheceres melhor do que todos nós!
-Devo-te um pedido de desculpas. Acabei o colocando na vida
de vocês. Mas ele também não tinha o direito de expor a mim, como fez no dia do
noivado.
-Se eu não amasse tanto o Valente, juro que riscaria este dia
para sempre da minha memória. Agora os teus lamentos não adiantam, Michel.
Deverias ter pensado quando da época em que conheceste aquele tipo.
-E eu lá imaginei que meu nome seria jogado aos quatro ventos
por causa do que tive com o Tato?
-Durante quatro anos! E o pior é que isto não é nada perto do
rastro de destruição que o desgraçado deixou em pouco tempo. Sabes que, lá na
igreja, não se fala em outra cousa a não ser a boa ação do meu noivo. Fala-se
mal!
-Mas o Valente também... Custava ter deixado aquele gajo ao
relento? Ou ao menos poderia ter encaminhado para a casa do tio, mas não!
-Chega a ser bastante estranho ouvir-te falar desta forma.
-Não vejo razões para estranhares.
-Michel, tu vais ter que desculpar tua irmã, mas é algo
completamente absurdo. Passaste anos vivendo um caso com aquele rapaz, e hoje
te referes a ele como se jamais houvesse existido nada.
-Cissa, o que tivemos foi mantido em segredo por opção nossa,
e era muito mais cômodo ao Tato porque o Kleber jamais aceitaria um filho que
gostasse de ambos os gêneros. Só que, para mim, era ainda mais confortável.
Imagines sair na rua e ser apontado por ter dormido com um homem. Claro que é
difícil que tu entendas; afinal, só mesmo ir para a cama sem manter um
compromisso para vocês é pecado, promiscuidade, sei lá eu o nome que vocês dão
a isto...
-Óbvio que não vou recriminar a ti, Michel. Não sou a
protestante mais santa do mundo, nem faço questão. Se eu deixei de ser do
mundo, foi por um motivo muito forte. E esta razão parece escapar dos meus
dedos a cada segundo...
-Não tens certeza do amor que aquele gajo sente por ti?
-Até sinto... Mas é como se eu não fosse o suficiente para o
Valente, como se me recriminasse com o olhar. Tive vontade de pular no pescoço
daquele atrevido quando ele pisou na igreja, e só não o fiz porque o meu homem
estava ali.
-“Meu homem”... Já não é a primeira vez que te ouço falando
desta forma sobre o teu noivo. Até causa medo a maneira que... É como se o
Valente não fosse um homem que tivesse a mera possibilidade de amar-te.
-O Valente não pode mesmo amar a mim, Michel. Tem que me
amar!- ouve-se a campainha -Estás esperando alguém?
-Não. Deves ser a encomenda que estava esperando pelo
correio.
-Enquanto tu recebes, eu vou à cozinha preparar aquela
macarronada...
-Nossa, há quanto tempo não fazes isto...
-Hoje é “a tarde”, meu irmão. Aguarde!- Cissa fica animada e
vai à prateleira, procurar a embalagem do espaguete, enquanto a porta do
apartamento é destrancada. Michel toma um susto ao ver um abatido jovem.
-Tu aqui?
-Faz muito tempo que não nos vemos, Michel...
-Nossa... Eu não esperava por... Entres, por favor.
-A tua irmã está aí?
-Michel, onde foi que guardaste o... – Cissa reage com
indignação à visita- O que estás fazendo aqui?
-Precisamos falar, Clarissa. Muito seriamente.
O tempo que Ricardo levou para chegar à casa de Cissa e
Michel é o mesmo que foi utilizado pela ambulância para levar Kleber às pressas
para a clínica do Dr. Lopes, onde é submetido a uma bateria de exames, ainda
desacordado. Dora liga para Hélio a fim de avisar sobre o ocorrido, mas este
deixa o celular no silencioso sobre a mesa de sua sala particular, enquanto
acerta alguns detalhes da apresentação de Valente com Alessandra.
Lopes sai do quarto em que Kleber está internado, sob efeito
de fortes sedativos. Dirige-se à esposa do paciente.
-O que está havendo com o meu marido, Doutor?
-Dora, venhas comigo, por favor...
-O que tiveres de dizer, dirás aqui. Não me ocultes nada.
-O Kleber veio procurar-me há algum tempo. Disse que estava
com desconforto para urinar e sentia dores.
-E por que ele não me disse nada?
-Provavelmente para não te preocupar.
-Qual foi o diagnóstico?
-Insuficiência renal aguda.
-Não acredito... O Kleber...
-Disse-me ele que procuraria outra opinião, por não ter crido
nos exames que eu fiz. Mas a situação do teu marido é realmente grave. Entrei
em contato com o banco de doadores da cidade e...
-Esperas... Doadores? O Kleber vai fazer um transplante?
-Ele precisa. Se não fizer a cirurgia, ele pode morrer. E o
pior é que não há órgãos disponíveis nos bancos. Temos que correr contra o
tempo para encontrar uma pessoa compatível com o Kleber.
-Mas... Quem poderia doar?
-Qualquer pessoa, já que a extração de um rim não compromete
a saúde de um doador. Só que, na falta de pacientes que tenham rins reservados
para a doação, teremos que apelar para alguém da tua família.
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