13/10/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 19


-A óbito? Que espécie de brincadeira é esta que estás fazendo comigo?
-Não lidaria com um assunto tão sério desta maneira, Kleber.
-Mas deve haver alguma forma de resolver o problema, sem que eu apele para uma cirurgia! A própria hemodiálise, como eu te falei. Basta que tu digas quando eu posso iniciar o tratamento e...
-Se ao menos a tua doença renal fosse crônica, poderíamos fazer este tipo de tratamento, mas não é o caso. Trata-se de um quadro agudo. O exame de sangue que tu fizeste hoje demonstra um alto grau de potássio. Qual é a tua frequência no que diz respeito à quantidade de vezes que vais ao banheiro para urinar?
-Nas últimas semanas, eu tenho estado com muita vontade, mas são poucas as vezes que consigo expelir urina.
-Tomas água com frequência?
-Sim, sim. E agora tenho tomado mais, justamente para... Não podes estar dizendo a verdade.
-Infelizmente estou, Kleber. E o pior é que, se tu não tratares a tempo, pode desencadear um inchaço na região da próstata...
-Chega, eu não quero ouvir mais nada...
-Mas, Kleber...
-Por favor! Fui suficientemente claro! Vamos encerrar este assunto...
-Tens que começar o tratamento o quanto antes, fazer contato com o registro de doadores da capital...
-Por enquanto, não. Eu não quero preocupar minha mulher.
-Manter-se calado não vai trazer outro resultado que não seja o agravamento da sua situação.
-Não quero que saibam de nada!- grita, agora em pé- Eu tenho que ir.
-Kleber, não sejas teimoso.
-E tu não sejas irritante! Ninguém pode saber o que os exames revelaram, entendeste bem? Ninguém vai saber. Boa noite.
Longe da clínica, Kleber continua rejeitando o diagnóstico de insuficiência renal aguda. Em breve, procuraria outro médico, pois queria que outro profissional dissesse-lhe algo diferente. Ao menos, Lopes seguiria com sua ética e não revelaria nada para a parentela do agente de viagens. Isto explica a calma de Tato durante o ato de abrir a porta para Cissa, quando esta visita Valente na mesma noite. Calmo por não saber sobre Kleber, e nem imaginar que fosse a noiva desesperada tocando a campainha.
-Onde está o meu Valente?
-Varão valoroso, tu tens visita- brinca Tato, avisando ao amigo que está na cozinha, fechando a porta e indo para o quarto.
-Amor, que surpresa!
-Não esperava ver a mim hoje?- beija-lhe de uma forma urgente.
-Não, é que tu falaste do ensaio na igreja. Jurei que tinhas ido diretamente para casa.
-Tive uma ideia e vim até aqui para saber o que tu achas.
-Digas, então.
-Por que nós dois não adiantamos o nosso casamento?
-O que te deu, Cissa?
-Nada. Apenas acho que não temos que esperar tanto.
-Mas eu não disse quando vamos nos casar, então não podes dizer que vai demorar tanto.
-Valente, eu conheço-te. Esperas que a nossa vida dê um giro de trezentos e sessenta graus.
-Não, isto eu quero que Deus faça, não nós.
-Sabes quanto tempo pode demorar a acontecer? Uma casa própria para nós dois e o meu próprio negócio?
-É por esta razão que temos que esperar. Teremos que dividir um apartamento enquanto eu financio a casa nova e tu lidas com o teu comércio, Cissa. O melhor que temos a fazer é aguardar...
-“Aguardar”, “esperar”... Pareces que não tens outras palavras em teu glossário particular a não serem estas.
-O que eu tenho percebido é o quanto temos tido desentendimentos ultimamente. Isto significa alguma cousa, Cissa?
-Prefiro que tu me digas.
-O que foi? Não se esquives do meu questionamento, é uma simples pergunta.
-De fato, nós temos discutido bastante. Mas não digas que não sabes a real razão.
-Sei, sim. Mas não concordo com ela.
-Hoje, a Irmã Nete estava comentando da briga que o Otávio teve com o pai. Por que não me disseste nada?
-Porque é um assunto particular que envolve somente os dois.
-A ti também. Pois ele te acusou de ser o que tu não és!
-E acreditas que eu queira preocupar-me com a opinião do Kleber?
-Não, com ele não. Mas com o que as pessoas podem pensar a respeito deste caso. Valente, a permanência do Otávio virou algo fora de controle.
-A dor de cabeça causada pelo Tato está na tua cabeça e da Nete. Cissa, pelo amor de Deus, tu sabes que ela implica com qualquer ser humano nas horas vagas. E nas úteis, faz a mesma cousa.
-Tu já o ajudaste, o Hélio esteve aqui para interceder por ele, o pai descobriu o teu endereço... O que mais precisa ocorrer para tu jogares este gajo para fora do teu apartamento?
-Vontade de ser excessivamente desumano, Cissa. Não quero fazer com ele o que supostamente fizeram comigo.
-Não tens culpa do abandono dos teus pais.
-Para eles, talvez eu devesse ter.
-A situação é completamente diferente.
-Concordo. Mas o Tato não vai ficar aqui para sempre.
-E se nos casarmos, é que não ficará mesmo na minha casa.
-Nossa casa.
-O que é isto? Estás confrontando a mim?
-Confrontaria se tu fosses a minha dona. Apenas estou conversando contigo, insistindo para que tu se dês bem com o Tato.
-Nunca. Depois do que ele fez, admiro-me muito de ver-te pedindo isto.
-Cissa, eu nunca fui um homem de impor condições. Talvez por conta disso eu não goste de impor na vida alheia aquilo que eu aceito como verdade. Eu simplesmente a vivo e pronto.
-Mais uma frase enigmática? O que queres dizer?
-Que o amor que tu sentes por mim nasceu por aquilo que eu sou, e não pelo que queres tornar-me. Sabes por que razão estamos juntos até hoje?
-Diga-me, Valente.
-Porque não tentaste afastar-me do amor do Criador. A mulher que leva o homem para mais perto de Deus é a ideal.
-E não sou eu este tipo de mulher, Valente? Acaso duvidas da minha fé?
-De jeito nenhum. Só não ponhas à prova aquilo que eu sou. Eu tenho pecados, falhas... Defeitos como todos. O pedestal não é lugar para mim e jamais será. Se tu suportas os meus defeitos, posso te garantir que sabes amar. Caso ames as minhas poucas virtudes, é mero encantamento. Agora, se não gostas nem de uma coisa nem de outra, eu não sei o que tu sentes por mim.
-Isto tudo é um “sim” ou um “não”?
-Vou pensar. Coloquei pipoca no micro-ondas, queres comer comigo?
-Claro, meu amor. Claro que aceito.
Se no apartamento do saxofonista existe uma determinada tensão devido à oposição de Cissa à presença de Tato, no Recifeeling a situação estava prestes a se repetir. Kleber, um pouco pálido, chega à recepção do restaurante e encontra Alessandra.
-Onde está o meu irmão?
-Em sua sala, Dr. Kleber... – Alessandra vê o agente de viagens passar como um foguete, disposto ao que pretendia. Kleber abre a porta, assustando Hélio.
-Preciso falar contigo agora mesmo- senta-se na frente do irmão.
-Aconteceu algo com o Tato?
-Não, mas vai acontecer.
-Kleber, o que tu tens? Estou a te achar tão...
-Vamos focar no que realmente interessa, Hélio. Eu quero que... Ou melhor: eu exijo que tu demitas o saxofonista que deu abrigo ao meu filho.
-Como é?
-Não vou repetir, entendeste muito bem.
-O que não compreendo é a tua desfaçatez de pensar que eu vou fazer isto. Ainda mais agora, que Valente está prestes a casar-se.
-Não me importam os planos que ele tenha traçado. Apenas exijo que o ponhas para fora do restaurante.
-E quem és tu para tomar decisões acerca do Recifeeling? Com que autoridade queres alterar o meu quadro de funcionários?
-Sou irmão do dono, esqueceste?
-Quem anda com problemas de memória és tu, porque eu ainda sou o dono do restaurante. E não vou jogar o Valente na rua por um capricho teu.
-O que tu chamas de capricho nada mais é do que uma tentativa de salvar o Otávio da perdição.
-Que argumento tu usarás agora, Kleber? Dirás que a bissexualidade do teu filho é fruto da convivência com o Valente, como se não tivesse tido um romance com outro homem às escondidas?
-Porque não viste o que eu presenciei: a forma como os dois abraçaram-se.
-Desconfias do Tato por conta de tudo o que descobriste com relação a ele. Mas daí a supor que exista um interesse escuso na amizade que ele cultiva com Valente é demais.
-Pensas que conheces tão bem o músico... Achas o quê do fato do tal Valente dar guarida justamente ao Otávio? Coincidência? Será que ele realmente moraria com um desconhecido, que trabalha para o seu tio, e não mencionaria nenhum membro de nossa família?
-Tato está magoado com todos nós, depois da forma como tu o trataste. Ele não confia em nós porque acredita que vamos recriminá-lo.
-Após ter feito o maldito caso com o Michel vir à tona, o que querias tu que eu fizesse? Abraçar o meu filho e incentivá-lo a prosseguir com a prática da pouca vergonha?
-Não! O que deverias ter feito é chamado para conversar! Diálogo também é capaz de resolver os problemas, caso não tenhas ciência disso...
-Ah, poupes-me! Falas com tranquilidade sobre isto porque não sabes o que é ser pai.
-Talvez tenhas razão. Mas, supondo que tu estejas mesmo certo, a minha escassez de know-how na paternidade pode fazer com que eu afirme que... O Valente não será demitido. Conhecendo-te como eu bem conheço, sei o que pretendes: fazer como ele passe por dificuldades financeiras e que Tato desista da vida simplista que leva para voltar à tua casa.
-Não vais me ajudar mesmo, não é? Está bem, então. Só peço que aguarde, com paciência, a punhalada que aquele maldito músico te dará. Tenhas um péssimo dia- sai apressadamente, após seu irmão constatar seu real intento.
-Kleber! Kleber, voltes já aqui! Kleber!- apela, inutilmente- Tomara que ele se arrependa de pensar tão mal sobre o próprio filho.
O que Hélio não desconfiava era de que não seria tão rápida assim a revisão dos valores que Kleber faz do filho e de seu amigo saxofonista. Era necessário conhecer mais a fundo o caráter de ambos, tarefa esta a qual Olívia se propunha longe dali, nos corredores da universidade, quando encontra casualmente Nicolas mais uma vez.
-A paz do Senhor.
-Amém.
-Como é que você está?
-Bem, e tu? Como tens passado?
-Melhor agora, que te vi- a frase arranca um tímido sorriso da estudante- Claro que continuo naquela correria para aprontar a defesa da tese.
-Já está próxima a tua defesa?
-Mês que vem, acredita?
-Nossa! Mas estás adiantado, pelo menos?
-Faltam só as considerações finais... Só que rola aquele estresse sempre, como se fosse final de período na faculdade. Nós ficamos a mil, e temos que levar com naturalidade.
-Queria muito dedicar-me à minha tarefa com toda esta calma que tu demonstras.
-“Calma”, Olívia?- ri- Eu estou uma pilha de nervos, são contadas as noites que eu durmo, tamanha a ansiedade pra que a defesa chegue logo.
-Gostaria muito de estar lá.
-E vai. Já está mais do que convidada. Só falta marcar o dia, mas eu posso te avisar, mandar uma mensagem pro teu celular.
-Faço questão de comparecer ao dia da tua vitória.
-O mesmo eu posso dizer de você... Do seu mestrado, é claro.
-É...
-Sinto falta de desafogar um pouco, entende? Sair pra dar um passeio, respirar... Aposto que, com você, acontece o mesmo.
-Pois é. Depois que o resultado da seleção do mestrado e eu, graças a Deus, fui aprovada, só vivo aqui dentro.
-Graças a Deus mesmo... A gente podia marcar algum lugar pra se divertir juntos, o que você acha?
-Eu? Uma ótima ideia. Mas que lugar, Nicolas?
-Sabe o Sófocles, aquele restaurante que fica aqui dentro do campus?
-O que dizem que tem preços salgados?
-Esse aí. Eu te convido pra gente fazer um lanche depois da tua aula, você quer? Aí, a gente aproveita pra bater um papo sobre a faculdade, a pós-graduação... Qual é o teu assunto preferido?
-Deus. E tenho para mim que é o teu favorito também, a julgar pelo que conversamos.
-Claro, claro que é. Que dia está bom pra você?
-Pode ser amanhã mesmo, se não tiveres nenhum compromisso...
-OK, então. Amanhã, então, a gente se vê. Fica na paz.
-Que Ele te acompanhe.
-Amém, Olívia.
Assim que os jovens se afastam um do outro, um estudante, visivelmente furioso, cola quatro cartazes com o retrato de uma graduanda da instituição...
-“Suzane Lins de Oliveira, vinte e um anos, desaparecida desde o dia primeiro de junho de dois mil e vinte, foi vista pela última vez nos arredores do prédio do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde. Até quando o reitor da universidade continuará omisso a este e outras ocorrências de desaparecimento, mantendo a polícia e a imprensa longe das investigações do paradeiro das estudantes que vêm sumindo desde o início do ano passado?”.
Mistérios a parte, voltamos à Lisboa para que os frequentadores da Igreja Comportas do Céu sejam pegos de surpresa. Em cada banco do local, cabem cerca de cinco pessoas, e no que estão posicionados Cissa e Valente, só há quatro fieis. Fabiano está comandando a liturgia referente à ocasião e sua amada (porém inquieta) esposa está à porta do templo. Como o culto teve início vinte minutos antes do momento descrito, ela pensa:
-Acho que já posso fechar a porta, não virá mais ninguém hoje. A igreja está praticamente lotada.
-Boa noite- alguém chega ofegante por ter corrido para acompanhar o rito religioso a tempo.
-Tu?
-Eu posso entrar?
-Claro... Fiques à vontade.
A vontade real de Nete era impedir a entrada do visitante, que procura um lugar para sentar-se, mas o único lugar disponível é o que está ao lado de Valente. Justamente o homem que o convidou.
-Tem alguém aqui, varão valoroso?
Cissa e Fabiano procuram concentrar-se no tema abordado naquela noite, mas por segundos ficam surpresos com o fato de Tato ter aceitado vir ao templo religioso.

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