10/11/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 23


Eis que o professor de Olívia passa pelo ladrão à toda velocidade, logo vendo o saxofonista ferido sobre a calçada. Corre para socorrê-lo, abraçando e colocando-lhe de pé.
-Consegues andar? Vamos para o hospital.
-Não tem nenhum pronto-socorro perto daqui.
-Há uma clínica. Venhas, Valente, eu te levo.
O músico põe a mão sobre o ferimento, mas o misterioso homem coloca a sua mão sobre a do rapaz, agora ensanguentada.
-Como é que o senhor...
-Confies em mim. Peço-te apenas isto.
O professor conhecia o trajeto correto para a clínica de um renomado médico da capital portuguesa: ninguém menos do que Jaime Lopes. Um enfermeiro é o responsável por receber a aflita dupla.
-Moço, ajuda-me, por favor.
-O que aconteceu?
-Atingiram-me com um objeto num assalto. Deve ter sido um canivete.
-Rápido, levem-no para a sala de curativo- mais dois enfermeiros conduzem o saxofonista, colocando-lhe sobre uma cadeira de rodas, mas são interrompidos pelo profissional que os atendeu à porta da clínica- Um momento: tens a carteira de utente?
-Se eu tiver uma hemorragia aqui dentro, o teu rosto é que vai ficar dormente com o safanão que te darei!- o manso Valente deu-se ao direito de ser agressivo, puxando o colarinho da camisa do enfermeiro.
-Tudo bem, tudo bem, podem levá-lo. Mas temos que avisar a algum responsável.
-Acalma-te. Eu sou o responsável.
-E o senhor, o que é do rapaz?
-O seu melhor amigo.
-Preciso preencher algumas informações sobre o gajo- o funcionário lança mão de uma prancheta- Nome completo?
-Valente Valença.
-Data de nascimento?
-Vinte e cinco de janeiro de mil novecentos e noventa e oito.
-Filiação?
-Órfão.
-Documento de identificação?
-Na calça que está ele trajando há o cartão de cidadão- o professor faz menção ao que é equivalente à carteira de identidade em Portugal.
-Tipo sanguíneo?
-A positivo.
-Tem algum problema relacionado à diabetes ou à pressão arterial?
-Não, é perfeitamente saudável.
-Endereço completo?
-Rua dos Fanqueiros, número trezentos, apartamento duzentos e um.
-Telefone para contato?
-Não possui número fixo, e o celular acabou de ser surrupiado. Daí o ferimento.
-E com relação à...
-Valente não possui nenhum plano de saúde, mas os gastos serão cobertos por mim.
-Nossa, o senhor sabe de tudo mesmo... Pedirei que o senhor aguarde aqui mesmo. E, assim que eu tiver informações a respeito do estado de saúde de teu amigo, avisarei. Está bem?
-Obrigado.
Hélio entra estabanadamente na clínica de Lopes, indo à recepção para saber notícias a respeito de seu irmão. O professor senta numa das poltronas da recepção, unindo as mãos e fechando os olhos, rezando em voz baixa.
-Bom dia. Eu preciso de informações a respeito do paciente Kleber Lacerda Goulart. É meu irmão.
-Só um momento, senhor... És o Hélio?
-Sim, sou eu.
-A tua cunhada, Isadora, havia nos avisado sobre tua vinda- esclarece o recepcionista da clínica.
-Como está o Kleber?
-Neste exato momento, na sala de cirurgia.
-Cirurgia? O que aconteceu com ele?
-Teve que ser submetido a um transplante de rim. O quadro que ele apresentou foi de insuficiência renal aguda.
-Santo Deus!- leva as mãos à cabeça- E onde posso encontrar a minha cunhada, moço?
-Provavelmente ela está na antessala do centro cirúrgico. Basta seguir em frente, entrar no terceiro corredor à direita e subir a rampa. Ela deve estar esperando informações a respeito da cirurgia.
-Faz muito tempo que ele entrou para a operação?
-Cerca de quarenta e cinco minutos. A cirurgia tem previsão de, no mínimo, quatro horas.
O tempo passa e parece ser uma verdadeira tortura para Hélio e Dora. Mas Lopes sai do centro cirúrgico com boas notícias.
-E então, Doutor?
-Como é que está o meu irmão?
-Fiquem tranquilos. O transplante do Kleber foi um sucesso.
-Ah, graças a Deus. Eu posso ver o meu marido, Doutor?
-Ainda não, Dora. Ele terá que ficar em observação por algumas horas. Mas os enfermeiros já o levaram para a sala de recuperação. Assim que ele for transferido para o quarto poderão entrar, mas apenas um de cada vez.
-Doutor, quanto tempo o meu irmão ficará internado?
-Se tudo correr como o previsto, o Kleber aqui ficará por um período de nove dias, sendo que antes iniciaremos o tratamento com os imunossupressores, para evitar a sua rejeição ao órgão. Claro que o doador ficará por menos tempo internado... – Lopes percebe que falou demais e procura dar o mínimo de informações possível.
-Doador?- Dora estranha a revelação- Pensei que o órgão do Kleber havia sido obtido no banco de doadores...
-Queres dizer que alguém fez a cirurgia para doar um rim ao Kleber?
-Bom... Sim, é verdade. Alguém ficou sabendo da situação do teu irmão e fez os exames para saber se era compatível ou não. A pessoa preencheu todos os requisitos para submeter-se à operação.
-Mas ontem tu tinhas garantido de que ainda entraria em contato com o banco de doadores.
-E entrei, mas só obtive resposta poucos minutos antes da chegada do nefrologista. Eles possuíam um órgão apto ao transplante, só que na madrugada apareceu esse doador. Por esta razão, levamos Kleber ao centro cirúrgico tão cedo.
-Quem é esta pessoa, Lopes? Eu quero agradecê-la, cumprimentá-la por ter salvo a vida do meu marido.
-Infelizmente não poderás fazer isto, Dora.
-Por que não? Minha cunhada tem todo o direito, Doutor; aliás, é sua obrigação falar com o doador e agradecer.
-A pessoa que doou um dos rins para o Kleber pediu sigilo absoluto sobre a sua identidade.
-Não entendo. Qual é a razão de tanto mistério, Lopes?
-Dora, eu já disse até mais do que eu deveria. Vamos respeitar a privacidade da pessoa que aceitou fazer o transplante, por favor. Se vocês dão-me licença, eu tenho que almoçar, já que mais tarde tenho consultas agendadas. Com licença.
-Tudo bem, Doutor. Muito obrigada por tudo- Dora espera o médico sair para confabular com o cunhado- O que pensas a respeito, Hélio?
-Muito estranho, Dora. Por que alguém doaria um rim ao Kleber e preferiria permanecer no anonimato?
-O importante é que agora tudo acabou. Graças a Deus, o meu marido está se recuperando e, em breve, voltaremos juntos para a nossa casa.
-Ainda assim, eu averiguarei esta história. O doador do meu irmão não ficará na obscuridade, ainda que assim o deseje. Eu vou dar um jeito de descobrir quem é esta pessoa.
Antes disso, Valente recebe uma transfusão de sangue pouco depois de ter levado pontos, a fim de cerrar o ferimento que ele levou. A perda acabou por deixá-lo um pouco fraco, sendo colocado numa das camas da enfermaria da clínica de Lopes após o término do procedimento. Mesmo sem permissão dada por enfermeiros ou por qualquer outro funcionário do recinto, o professor entra no local. O jovem músico abre os olhos e emula um tímido sorriso.
-Obrigado por ter me trazido até aqui. Deus colocou-te no meu caminho. Se o senhor não tivesse aparecido, acho que...
-Não penses nisso agora. Foi só um momento ruim, mas já acabou. O importante é que tu ficarás bem. Procures descansar.
-Que horas são?
-Onze da manhã.
-Cissa costuma ligar-me neste horário. Tenho que avisá-la sobre o que aconteceu.
-Não deverias ter reagido ao assalto. Foi um grande livramento que recebeste.
-Mas é que eu pensei no celular.
-Podes comprar outro.
-A questão não é esta, é que foi um presente da minha noiva... Meu Deus, eu tenho que avisar-lhe o que houve comigo. Eu posso pedir um favor?
-Dizes.
-O senhor pode ligar para a minha noiva e contar o que aconteceu comigo? O número da Cissa eu sei de cor.
-Notícias como esta não devem ser dadas por telefonemas, Valente, mesmo que estejas fora de perigo. Acalma-te, porque eu mesmo darei a notícia para a tua noiva.
-Ela trabalha numa loja do shopping chamada PORTrajes...
-Sei exatamente onde fica.
-Se bem que, neste horário, ela deve estar ensaiando com a Irmã Nete lá na Comportas...
-Não tens medo de dizer a mim estas coisas, revelando detalhes de tua vida? Conheceste-me hoje.
-Não sei responder-te o porquê, mas o senhor inspira em mim muita confiança. Aliás, até sei: porque, graças a Deus, o senhor trouxe-me até aqui. A esta hora, eu poderia... – o músico demonstra tristeza.
-Gajo, por que choras? O tormento já passou, estás a salvo.
-É que... Tudo está tão difícil...
-Já deverias saber que as tempestades, por mais fortes que sejam, não duram para sempre.
-Até sei, mas ainda sou de carne e osso...
-Em que queres transformar-se, então? Não possuis superpoderes.
-Que, aliás, seriam muito bem-vindos em minha vida.
-Sabes perfeitamente bem que não existe ser humano perfeito. Se quiseres tu resolver os problemas que, sozinho não consegues findar, apeles apenas para quem estiver com os ouvidos inclinados a você.
-Talvez seja isto o que mais eu tenha feito a minha vida inteira, mas não consigo ver as pessoas amando a mim por quem eu sou, e sim por quem eu deveria ser na sua concepção. Há vezes que eu penso que Deus colocou anjos para que fossem meus amigos e eu não me sentisse desamparado. Mas, em outras, o meu pensamento diz que somente Ele está comigo, e mais ninguém.
-Se apenas Deus estiver contigo, não te faltará ninguém. Pelo tempo que crês Nele, deverias saber. Fiques certo de que eu contatarei a tua noiva.
-O senhor estava esperando por mim todo este tempo lá fora?
-E esperaria mais, se necessário fosse.
-Por quê? Quem é o senhor?
-Se soubesse responder a mesma indagação, só que para si mesmo, saberias de quem eu me trato. Com licença- o professor deixa a enfermaria.
-Tomara que eu não me arrependa de ter confiado neste homem...
Naquele dia que parecia durar para sempre, o professor vai até a igreja que Cissa frequenta com o noivo, tendo ela ligado dezesseis vezes para o namorado depois do fim do ensaio, mesmo o aparelho alegando estar fora da área de cobertura.
-Não atende! O Valente não atende! Parece até que faz de propósito. Para que foi que lhe dei um celular? Para não me atender quando eu ligo?
-Querida, calma! Talvez o teu noivo esteja ocupado no orfanato daquela... Daquela freira lá.
-É isto o que me preocupa, Irmã Nete. Valente não tem o que fazer naquele lugar- Fabiano volta ao templo e flagra a conversa, e Cissa modifica o tom irritadiço que vem usando- Tudo bem que, às vezes, ele lê histórias para os órfãos, e conversa com a madre, mas nunca demorou tanto. Eu mesma fui trabalhar hoje cedo, saí da loja para o nosso ensaio e nada do meu noivo.
-Ainda mais num lugar com nome de santo... Misericórdia!
-Desejas alguma coisa?- Fabiano é solícito com o professor, que adentra as portas da igreja.
-Preciso falar com a Clarissa.
-Sou eu mesma. Quem é o senhor?
-Eu vim trazer notícias a respeito de Valente, o teu noivo.
-Bendita a hora que o senhor chegou, já está aflita.
-É cousa de Deus mesmo!- brada Nete.
-O que houve? Onde ele está? Não me dizes que com o desviado do Otávio?
-Valente está na Clínica Jaime Lopes. Eu o socorri há algumas horas.
-O Valente, socorrido? O que foi que aconteceu com o meu noivo?
-Uma tentativa de assalto. Ele tentou impedir que levassem o seu celular e foi ferido.
-Ah, meu Deus. Foi minha culpa! O Valente ficou ferido por minha culpa!
-Felizmente o pior já passou, Clarissa.
-Eu tenho que ver o meu noivo! Eu preciso ver o Valente agora mesmo!
-Acalma-te, querida! Tu não tens condições de sair com o carro à toda velocidade, ainda por cima dirigindo sozinha. Deixes que eu te acompanhe até o hospital... Fabiano!- Nete solta um berro ensurdecedor- Pegues já o molho da menina e abras o carro, tu vais dirigir!
-O senhor tem certeza de que o meu Valente está bem?
-Está fora de perigo. Ele pediu para avisar porque estava muito preocupado contigo.
-Então, não percamos mais um só minuto. Obrigada, muitíssimo obrigada.
Cissa, Fabiano e Nete deixam a igreja em direção à clínica, deixando o pastor conduzir o automóvel da vendedora. Demoram alguns minutos para chegar... Tempo suficiente para que um mal-entendido aconteça no local, causado pelo proprietário do Recifeeling, ainda que não seja sua intenção provocar um novo desentendimento entre o saxofonista e sua noiva.
O fato ocorre quando Dora tem a permissão de ver Kleber quando este finalmente é transferido para o quarto, ainda sonolento devido ao tempo que ficou sob efeito de anestésicos. Ficou acordado entre ela e seu cunhado que a esposa seria a primeira a ver o paciente. Hélio caminha pela recepção e vê dois médicos conversando na entrada do corredor que dá acesso à enfermaria. Para não alarmar a recepção, e aproveitando que os especialistas estão dialogando perto do balcão, passa ele despercebido. Sua intenção é clara: descobrir quem é o doador sigiloso.
Passando por vinte e dois leitos da enfermaria, chega ao vigésimo terceiro e sequer chega a ler o que a prancheta diz sobre o paciente, pois fica assustado ao se deparar com o seu funcionário mais famoso.
-Valente?
-Hélio? Tu aqui?
-Poderia perguntar-te eu a mesma cousa.
-O que estás fazendo aqui, Hélio?- o rapaz, que estava deitado, levanta-se para ficar sentado na cama, mas coloca a mão sobre o curativo, do lado direito da barriga.
-O que é que tu tens?
-Nada, eu só não deveria ter levantado. Ainda é recente, mas eu vou ficar bem. E quanto a ti?
-Bem, o meu irmão está internado aqui desde ontem e passou por uma cirurgia de emergência, acabou de... – o proprietário do Recifeeling tira uma conclusão precipitada- Não pode ser...
-O quê?
-Há quanto tempo tu estás internado nesta clínica, Valente?
-Desde hoje de manhã. Acho que eram umas oito horas quando o médico veio ver-me.
-De manhã...
-Hélio, fales-me o que está acontecendo!
-Tu, com um corte na barriga, e estando aqui desde cedo, queres que eu pense o quê, Valente? O que eu não entendo é como o Tato ficou sabendo para avisar-te.
-Por favor, Hélio, eu não estou entendendo.
-Estás, sim, e muito bem. Tu e o meu irmão no mesmo hospital, debilitados... Quem não está entendendo nada sou eu! Porque o Kleber chegou a pedir a tua demissão, agora tu fazes isto por ele?
-Isto o quê, homem de Deus? Fales!
-O meu irmão acaba de passar por um transplante de rim e o doador, segundo o Dr. Lopes, não quer ser identificado, por motivos que desconhecemos tanto quanto a sua identidade. Agora tu me apareces aqui? Tudo óbvio demais: foste tu que salvaste a vida do Kleber doando um dos teus rins!
-Como é?- Cissa entra na enfermaria, acompanhada de Nete e Fabiano- Eu não estou acreditando no que acabei de ouvir! Quer dizer que eu estava preocupada com o teu estado de saúde quando, na verdade, inventaste esta lorota de assalto para que eu não soubesse o que tu fizeste?
-Cissa, o que estás pensando?
-Eu não estou pensando, Valente! Estou constatando!- altera a voz- Tudo preparado, não é? Até contrataste um farsante para fazer-me de boba com a mentira do assalto, mas a tua máscara caiu!
-Por favor, Clarissa, acredites em mim. Eu fui vítima de um assalto hoje mais cedo...
-Mentira! Deves ter dado um fim no celular para que eu acreditasse na história do assalto. Mas está bem claro por que razão estás internado aqui. Tu doaste um rim para o pai do Otávio! O que tu fizeste foi pelo desgraçado do Otávio!

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