-Como podes ser tão néscia desta forma? Cissa, sabes que...
Que eu não posso!
-Não podes ou não queres?
-Por que estás fazendo isto comigo?
-Porque tenho a mais absoluta certeza de que tu queres
também.
-Por Deus, Cissa, sabes que eu não posso!
-Somos apaixonados e vamos nos casar. Qual o problema,
Valente? Temos uma vida inteira para ficarmos juntos, não queremos a mais
ninguém além de nós mesmos. Do que tens medo? De que saibam?
-Alguém já sabe, Cissa. E sabe Ele que neste momento, eu
estou em pensamento com o teu corpo sobre o meu.
-O nosso casamento vai acontecer, mais cedo ou mais tarde. Eu
sei que não há ninguém com quem tu queiras ter a tua primeira vez, só comigo.
Por que não pode ser hoje?
-Para que tu me ames hoje e se canses de mim depois?- o rapaz
vira o rosto e fecha os olhos.
-Isto eu posso garantir que não vai acontecer, porque sei
perfeitamente bem o que sinto por ti- aproxima-se, desabotoando a camisa que
Valente está vestindo e encostando os seios sobre o peitoral do rapaz- Não há
como negares que não me desejas.
-Pensas o quê? Que não imagino nós dois juntos, na
intimidade? Claro que imagino, Cissa, porque sou homem. Mas há um abismo entre
querer-te e ter relações contigo.
-Vais recusar a tua noiva? Aquela por quem tu suspiras dia
após dia? Tendo a oportunidade de ter a mim em teus braços, não irás querer?-
beija-lhe a ponto de morder o pescoço- Hein?- Cissa o puxa para a cama, fazendo
com que o rapaz fique sobre ela, quase sem hesitar- Não queres descobrir o
corpo que a partir de hoje será somente teu? Acaso rejeitarás a prova de amor
que quero dar a ti, Valente?
-Estás certa... Eu não posso recusar uma prova de amor da
minha noiva- Valente levanta- Esperes.
-O que é?- apoia os braços sobre a cama, certa de que o
convenceu a praticar sexo.
-Fiques aí. Eu vou dar a oportunidade perfeita para que
proves o teu amor por mim- fecha a porta, deixando-a mais animada.
Valente fecha os botões de sua camisa, sai do Edifício
Portuário e vai até a calçada, onde as roupas da noiva ficaram. Rapidamente,
sobe de volta ao apartamento, colocando-as em suas mãos, agora voltadas para
trás. Com pesar, joga as peças sobre a cama.
-Que é isto?
-Aqui está a prova do que sentes por mim- volta a virar o
rosto- Se me amas tanto quanto alega, vais embora.
-Valente... Não podes fazer isto comigo.
-E comigo, Cissa? Podes tudo fazer? Infelizmente, eu já
escolhi por nós dois, e se tu não consegues respeitar, é sinal de que estás com
o homem errado.
-Meu amor...
-Depois do casamento, Cissa! Antes, não!
-Penses bem no que estás fazendo. Podes estar destruindo o
que resta da nossa relação.
-Eu posso desejar-te como um alucinado, como sei que faço
mesmo. Mas não vou faltar-te com o respeito, Clarissa. E eu exijo que tu faças
por mim exatamente o mesmo.
-Acaso pensaste na possibilidade de eu sair por aquela porta
para não mais voltar?
-Com amor, pode-se ir até ao fim do mundo, Cissa. Se tu não
voltares, é a prova definitiva de que nunca me amou. Reclamas da minha decisão?
Pois agora é tu quem vais decidir por nós dois.
Chateada, ela vira de costas e põe a roupa, enquanto Valente
está voltado para a porta. Terminada a arrumação, Cissa só não tira a toalha
molhada da cama, mas dirige-se ao noivo.
-Do fundo do meu coração, eu espero que me perdoes pelo que
tentei fazer- a moça parte para a sua casa. Ao contrário do que se imagina, sai
contente, por entender que a negação à transa pressionará o músico a acelerar
os trâmites do matrimônio.
Valente corre para fechar a porta e volta ao quarto, onde
toma a toalha para si e sente o perfume do corpo de Cissa. Segue para o
banheiro, onde se despe completamente, liga o chuveiro e toma aquele que pode
ser considerado o banho mais gelado que já tomou em toda a sua vida, até que
seja dissipado aquilo que foi sentido em decorrência da provocação.
O fato consumado é que ninguém está vivendo a normalidade nos
dias que se seguem. Kleber, por exemplo, vivia a angústia de repetir o
agradecimento àquele que sofreu com seu desprezo absoluto. O
protagonista-título é o que mais dispensa comentários, especialmente quando o
dia seguinte reserva outro desagradável acontecimento. Uma consequência do seu
ato desmedido de auxílio ao próximo... A Comportas do Céu recebe o saxofonista
logo cedo, quando Fabiano abre as portas do templo e Nete está para arrumar as
cortinas, até reconhecer, estando ao fundo, a voz do jovem músico órfão.
-Por que tanta pressa em chegar, meu filho?
-Não aguentei mais ficar em casa, em repouso absoluto.
Precisava estar aqui para sentir-me vivo, entendes? Daí, eu já apareci logo
para que o senhor ou a sua esposa me digam quais são os hinos que eu tocarei
hoje, pois já posso ir ensaiando.
-Há a necessidade de termos uma séria conversa, Valente.
Senta-te aqui.
O rapaz coloca o saxofone sobre o banco e atende a ordem de
Fabiano. Nete fica atenta a cada palavra.
-Algum problema, Pastor?
-Tua noiva não vem hoje?- Fabiano também toma o assento.
-Não sei. Não nos falamos desde ontem, ela não me avisou
sobre vir ou não a igreja hoje.
-Ótimo. Depois tu conversas com ela.
-Sobre o quê? Alguma cousa grave?
-O nível da situação és tu quem pode indicar, Valente.
-Eu não entendi...
-Valente, diante dos últimos acontecimentos que te
envolveram, eu achei melhor fazer-te um comunicado a respeito da tua relação
com a igreja.
-Se não for incômodo... Podes ir diretamente ao assunto?
-Claro. A partir de hoje, a função de saxofonista da
Comportas não será mais exercida por ti.
-Uhum. E quem exercerá, se é que é possível eu saber?
-Seguiremos com os demais músicos da banda. Mas somos uma
igreja pequena, temos os instrumentos básicos... Avaliei que não é necessário o
uso de saxofone durante os cultos...
-Compreendo, Pastor. O que a Comportas vive neste momento é
um processo de restauração. Nada mais natural do que excluir alguém com uma
mácula na vida pessoal, como vocês pensam que eu tenho?
-Irmão, entendas que...
-Ao menos, eu posso continuar frequentando os cultos que são
feitos aqui?
-Que pergunta é esta? Não estamos expulsando a ti da igreja,
de maneira nenhuma...
-Porque seria escândalo o suficiente. É como se estivessem
admitindo o meu erro.
-Há algum erro que queiras admitir, Valente?
-Nós dois somos irmãos de fé desde a nossa existência, e a
nossa amizade dura há quatro anos. Posso fazer-te uma confidência?
-Sim.
-Considerando que somos amigos, ou que o senhor considera-me
como tal, acho que se tu me conhecesses verdadeiramente jamais faria esta
pergunta.
-Além de Deus, não há quem nos conheça intimamente.
-Os últimos tempos têm servido para em mim reforçar esta
certeza.
-Sinto muito que tudo esteja saindo do que por ti foi planejado.
-O grande amor da minha vida escutou um pedido meu, feito há
muito tempo: que, mesmo nas horas difíceis, ficasse do meu lado. E toda esta
história está servindo para que eu descubra o quanto Ele faz questão de estar
junto a mim, abraçar-me quando eu quiser chorar... Ainda bem que não há
intempérie que O faça falhar.
-E... – pigarreia- Quem é o amor da tua vida, Valente?
-A paz do Senhor, amados- uma fiel entra na igreja,
cumprimentando o pastor e o músico.
-Amém- respondem.
-A frase desta mulher responde à tua indagação, Fabiano?
Abaixando a cabeça, Valente chora em silêncio, enquanto Nete
deixa de ouvir o diálogo, encerrado quando Fabiano, a fim de evitar novos
mal-entendidos ou mesmo desentendimentos, recebe os visitantes e os membros da
igreja. O banco no qual está o músico é ocupado apenas por ele próprio e pelo
presente dado por Joana assim que ele deixou o Lar do Menino Tobias.
As coisas parecem somente piorar para o varão valoroso, por
mais valoroso que ele faça questão de ser diante das tormentas que insistem em
surgir. Surpreendentemente, coube a Kleber a tentativa de alterar o quadro
derrotista instalado em parte destas pessoas cujas trajetórias acompanhamos. O
primeiro passo é depois de uma avaliação médica feita por Lopes, que ratifica a
boa recuperação de seu paciente. Assim que o médico deixa o quarto, o agente de
viagens demonstra não estar tão radiante quanto Dora diante das notícias.
-Mudes esta cara, homem.
-É a única que tenho, Isadora.
-Compreendeste o que quis dizer- abaixa-se para se aproximar
do marido- O que posso fazer para melhorar o teu ânimo? O Lopes falou que tua
recuperação é excelente e tu estás deste jeito?
-Dora, trazes o Tato aqui. Eu preciso falar com ele.
-Não será possível, Kleber. Tato deixou a clínica. Já
passaram os cinco dias de recuperação do doador.
-Chegaste a falar com ele?
-A única pessoa autorizada a entrar em seu quarto foi o
amigo, Valente. Até tentei agradecer pelo que ele tinha te feito, mas ele pegou
o táxi bem rápido. Parecia não querer falar comigo. Tem uma ideia estapafúrdia
a meu respeito.
-Qual?
-De que eu amo mais o meu marido do que o meu próprio filho.
-Isto te incomoda?
-Lógico, Kleber, porque ele está errado.
-Dora, sabemos que é verdade.
-Do que estás falando?
-Passaste tua vida venerando a minha imagem, dedicando-se a
mim como se eu fosse um indefeso qualquer.
-Agora isto é demérito?
-Não. Mas o que ele disse não deixa de ser verdade.
-Não se pode medir o amor que uma mãe sente pelo filho. Tu
mesmo és testemunha do quanto insisti para trazê-lo de volta à nossa casa.
-A verdade é que a harmonia que existia em nossa família
desfez-se quando soubemos da opção sexual do Otávio. Mas a tua luta é para
restaurá-la porque isto poderia me fazer feliz, não porque temos que resgatar o
nosso filho onde ele se perdeu.
-Estás pensando em perdoar o Tato?
-Confesso-te que perdão é algo muito forte para conceder.
Tenho medo de que tudo se repita, de que eu absolva o Tato de seu erro e ele
volte a falhar comigo. Mas a vinda do Valente até aqui me fez olhar a minha
vida de outra forma.
-Como, Kleber?
-Devo ter dito em algum momento depois daquela briga horrível
que tivemos, mas eu desejei a morte do meu filho. Era melhor resumi-lo a uma
mera recordação do que viver ao lado de um homem que foi criado do meu modo de
agir e comportava-se da maneira contrária.
-E quando tu estavas à beira da morte, ele salvou a tua vida.
-Entendes agora? Nós não amamos o Otávio. Moldamos ao nosso
favor. O que ele fez por mim poderia ter feito por um desconhecido. Nosso filho
sempre teve o poder de nos surpreender, positiva e negativamente, e nós o
subestimamos.
-Será que a nossa família vai ganhar a chance de recomeçar?
-Pode ser, Dora. Mas certamente eu não sou mais o mesmo
homem. E talvez seja melhor não seres a mesma. A dor do abandono pode ter
ajudado o Tato a viver sem a família. Por isto, eu tenho muito medo.
-De quê, exatamente?
-De que tudo esteja perdido para sempre. Reparou que ele saiu
da clínica e não veio até o meu quarto?
-Vou falar com o Hélio. Ele convencerá o Tato para que ele
venha até ti.
A promessa, enfim, extrai de Kleber o sorriso que Dora tanto
esperava. Para Alonso (que usa publicamente a identidade de Nicolas Queiroga
Drummond), o desespero serve de alento aos seus planos, ainda que partam dele
mesmo. Carrega a munição de seu revólver, enquanto o professor de Olívia entra
no Sófocles e conversa com o gerente. O criminoso vai até o galpão no qual a
estudante é feita de refém, apontando o revólver para o rosto.
-Feliz último dia, meu amor. Pensou no que eu te disse?
-Tira-me daqui, Nicolas. Deixa-me sair. Ninguém saberá o que
tu fizeste comigo. Eu vou embora daqui e ninguém lança suspeitas contra ti.
-As coisas não são tão simples quanto você pensa, Olívia. Eu
não me arrisquei à toa, pra deixar que você fosse livre. Sabe muito bem por que
está aqui e o que tem que fazer pra sair deste lugar com vida. Vai, Olívia. Só
tem que dizer o que eu quero, e eu poupo a sua vida.
-O que queres escutar de mim?
-Você sabe. Basta negar ao deus que você adora. Ou melhor: ao
mito que você insiste em venerar. Um só passo e eu não vou apertar o gatilho,
como eu fiz com as tuas colegas de faculdade. O que me diz, meu amor?
-Que garantias eu tenho de que tu vais deixar-me sair com
vida?
-Uma arma apontada pra sua cabeça deve significar alguma
coisa... – encosta o revólver na testa de Olívia, levando-a ao desespero- A
garantia sou eu, vagabunda! Nega a esse deus ou eu acabo com a tua raça. E pelo
pouco que você me conhece, Olívia, já devia saber que apertar esse gatilho não
vai me custar nada.
-Sabes que não sou daqui. A minha irmã, os meus amigos vão
estranhar o meu sumiço e vão colocar a polícia para me procurar.
-Não vão. Não vão porque você vai voltar, sã e salva. Eu só
preciso escutar o que quero ouvir da tua boca...
-Desistas desta loucura, Nicolas...
-Chega, Olívia. Minha paciência está acabando. Fala de uma
vez, admite que esse deus é uma mentira, uma invenção. Anda!
-Se Deus quiser acabar com a minha vida, ele vai fazê-lo de
qualquer forma, usando-te ou não.
-Aonde você quer chegar com isso, desgraçada?
-Podes me torturar, bater em mim, fazer o que bem entendes
até ceifar a minha vida da face da terra. Ou disparar e deixar o meu corpo aqui
mesmo. A escolha de como vais acabar comigo não é minha, e sim tua. Mas do meu
Deus eu não me desfaço, e muito menos na hora da morte.
-Deixa de ser imbecil. Se ele existisse e te amasse como tanto
pensa, por que te deixaria ser sequestrada, maltratada, agredida e ameaçada?
Pouco importa a sua vida para Ele ou tudo aconteceu porque Ele não pode
interferir no teu destino?
-Pode, sim. Pode interferir porque eu dou espaço para que
Deus aja!
-Idiota... Quer saber por que eu te escolhi? Porque tinha uma
vaga ideia da fé que tinha Nele. Mas nenhuma das outras mulheres tinha a fé que
você tem. Eu poderia deixar teu cadáver se decompor aqui, como das outras. Mas
eu faço questão de jogar fogo. Até sei como eu vou fazer. Primeiro, eu vou
atirar, mas não vou atirar pra matar. Depois, eu vou ver agonizando lentamente,
e antes que você morra, eu derramo gasolina sobre teu corpo e jogo um fósforo
aceso sobre teu corpo. Imagina? Amarrada, fraca, ferida por uma arma de fogo, e
ainda implorando por ajuda com a pouca força que te resta enquanto as chamas
não deixam rastro da sua existência- Alonso coloca o revólver sobre o tórax da
moça- Fala tuas últimas palavras, vagabunda ordinária- Olívia volta a chorar-
Fala tuas últimas palavras, eu estou mandando!
-Que Deus perdoe-te pelo que tu vais fazer comigo.
-Tem uma coisa que você precisa saber antes de ser varrida da
face da terra, Olívia: eu não preciso do perdão de Deus. Aliás, eu não preciso
do seu deus. Até nunca mais.
Olívia cai para trás, com os olhos fechados e o rosto coberto
de sangue, após o disparo desferido por Alonso.
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