22/12/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 29


Receosa, a jovem abre os olhos e não escuta nenhum barulho, a não ser o dos ratos que já povoavam o galpão fétido sobre os cadáveres trazidos por Nicolas.
-Meu Deus... O que foi que fizeste comigo?- pergunta, em voz baixa, com medo da presença de Alonso naquele lugar. Certa de que foi ouvida pelo doutorando, volta a fechar os olhos novamente, para não ver o seu rosto. Vários passos ficam cada vez mais fortes, até que uma voz grita:
-Olívia!
A estudante reconhece a voz de seu professor, que está acompanhado pelos policiais locais. Sentindo-se segura, a moça tenta mover-se e vê o rosto de seu amigo enquanto chora de alívio pela inesperada presença do docente. Dois agentes da polícia colocam a cadeira de pé e desatam os nós que amarram a mestranda, que não tem forças para colocar-se de pé. O professor corre ao seu encontro e, ajoelhado, abraça a moça. Um dos policiais chama uma ambulância ao ver o degradante estado físico de Alonso, jogado ao chão por conta de um golpe quase fatal: o tiro que disparou contra sua refém saiu pela culatra, acarretando numa rápida e profunda perda de sangue.
-Eu pensei que eu fosse morrer! Achei que ele fosse matar a mim, professor...
-Não precisas temer mais nada. Acabou, Olívia. Graças a Deus, tudo acabou!
O burburinho acerca da amizade entre Tato e o saxofonista varonil e valoroso, entretanto, arrastava-se mais um pouco. O reforço para as maledicências dos vizinhos nascia através do retorno do filho de Dora e Kleber ao apartamento do músico. Normalmente, dir-se-ia que Cissa é a mais preocupada com a situação, mas sua estratégia em pressionar o noivo acabou por deixá-la mais segura de si. Os rapazes cumprimentam-se com um abraço.
-Entres, Tato.
-O que tu me contas de novo?
-Muita coisa aconteceu nos últimos dias. Feridas fortes, inclusive físicas.
-E a Cissa? Pensei que eu a encontraria contigo aqui.
-Provavelmente está trabalhando.
-“Provavelmente”? Pelo teu tom, até poderia pensar que não a vês há um bom tempo.
-Nós tivemos uma pequena divergência.
-Mas não por minha causa, não é?
-Foi por minha causa, confesso. Era sobre isto a que eu me referia quando falei de feridas. Só que é melhor tratar de assuntos mais amenos.
-Tu vais à igreja hoje?
-Vou, sim. Preciso falar algo muito sério com o Pastor Fabiano. Por que a pergunta? Queres visitá-la novamente?
-Melhor do que isto. Quero agradecer o que aconteceu com... Com o meu pai.
-Fico feliz por isto. Só prova que não ficaram mágoas entre vocês dois.
-Ficaram, sim. Só não acho que é bom cultivar o ódio entre um pai e um filho que tanto se amaram. Já que nada mais voltará a ser o que era antes...
-Se eu fosse tu, não teria tanta certeza. Sinceramente, eu não acredito que depois de tudo que foi dito entre teu pai e eu, o Kleber insista em permanecer afastado do filho. E depois, Deus permite a construção de muralhas porque conhece o Seu poder de derrubá-las.
-Como sempre, falando a cousa certa- Tato e Valente escutam a campainha- Estás esperando alguém?
-Estou esperando coragem para seguir em frente- a afirmação de Valente deixa o amigo confuso, até que Hélio aparece à porta do apartamento.
-Posso falar contigo, Valente?
-Claro, Hélio. Fiques à vontade.
-Eu trouxe-te um presente.
-Espero que seja uma espécie de abono salarial.
-Sou bondoso, mas não tanto- ironiza- Para ti.
-O que é isto?
-Como tu bem sabes, costumo comprar pela internet vários CD’s de música brasileira para que tu toques nas apresentações do Recifeeling. Daí, fiquei sabendo da existência deste e comprei um para te dar de presente. Sei que é do gênero que tu gostas.
-“Deus do secreto- Ministério Sarando A Terra Ferida”? Prometo que vou ouvi-lo. Obrigado pelo presente, eu não esperava. Queres tomar um café conosco?
-Valente, se tu me permites, eu vou descansar um pouco no quarto...
-Não precisas fugir de teu tio, Tato. Também vim aqui para falar contigo.
-Por quê? Que assunto temos para tratar? Acaso vieste discutir comigo?
-Não, pois sou do núcleo da história que aceita pregações de paz e amor sem contestar. E convenhamos que, desde que sofremos a passagem de tempo neste enredo, não fazemos outra cousa além de armarmos, como diriam os meus amigos brasileiros, uma “palafita”.
-“Barraco”, Hélio.
-Que seja. Vim aqui, Tato, por conta do Kleber.
-O que foi? Algum problema com o transplante?
-Quanto a isto, não te preocupes, ele vem recuperando-se de maneira excelente. Só que ele deseja falar contigo?
-Sobre o quê?
-O assunto ele não me adiantou. Mas a Dora esteve te procurando na clínica do Dr. Lopes e tu já havias recebido alta.
-Olhes bem, Tio, eu não acho que seja uma boa ideia ir ao encontro do meu pai, ainda mais no estado convalescente no qual ele se encontra.
-Quem deseja falar contigo é Kleber. Melhor dizer este teu argumento pessoalmente.
-Vamos lá, Tato. Não custa nada. O teu pai não pode dizer nada que te machuque mais do que todo este tempo de afastamento.
-Eu prometo que vou pensar. Por enquanto, é somente isto que eu posso garantir.
A presença do professor é o suficiente para que Olívia se sinta mais calma. A jovem é acompanhada até o hospital mais próximo para ser medicada, enquanto Alonso segue inconsciente em outra ambulância para o mesmo centro médico. O seu caso é o de maior gravidade, e o que chama a atenção dos paramédicos, que tentam reanimá-lo antes de submetê-lo a uma operação para a extração do projétil e contenção do sangue. Deitada numa cama, de olhos fechados, Olívia tem uma de suas mãos seguradas pelo docente, enquanto a outra é perfurada por um soro. Um enfermeiro do hospital público avisa:
-Desculpe, senhor, mas vai ter que esperar pela moça lá fora.
-Por quê? Deixes que ele fique aqui, por favor- apela Olívia.
-Eu sinto muito, mas só permitimos acompanhantes quando os pacientes são menores de idade ou tem mais de sessenta anos.
-Entendas que ela ainda está muito frágil, rapaz. E, independentemente disto, não vou deixá-la sozinha.
-Qual o seu parentesco com a paciente?
-Somos amigos, e mais nada. Mas vejas o estado em que a Olívia se encontra.
-Tudo bem, eu não vou mais incomodar. Com licença...
-Moço, esperes. Tens notícias do Nicolas?
-Aquele que foi encontrado no mesmo lugar que você? Pelo que fiquei sabendo, a polícia já estava há um tempo no encalço do rapaz.
-Procures ficar em repouso, Olívia. Depois, quando estiveres recuperada, poderás depor e contar tudo o que aconteceu.
-“Todo o horror que eu vivi”, o senhor quer dizer, não é? Aliás, como o senhor sabia onde eu estava? Como sabias que eu tinha sido feita de refém naquele galpão?
-A tua irmã chegou a ligar para mim.
-Beatriz... Eu preciso falar com ela, contar o que aconteceu.
-Não fiques tão agitada, eu vou telefonar e vocês conversarão à vontade. Mas a Beatriz sentiu que alguma cousa havia acontecido contigo e falou comigo. Avisei-lhe de que faria uma viagem, mas que contataria o departamento de pós-graduação para saber se estavas frequentando as aulas.
-E com relação ao meu cativeiro? Quem te contou que eu estava lá?
-Assim que desembarquei na cidade, eu fui ao Sófocles.
-A lanchonete que fica nas dependências da universidade... Cheguei a ir com o Nicolas algumas vezes.
-Falei com o gerente e mostrei uma foto tua, para saber se ele tinha alguma ideia de onde poderíamos encontrá-la. Foi então que ele me confidenciou uma situação bastante suspeita, que despertou nele a desconfiança pelo teu sequestrador. Tu lembras o que ocorreu antes de seres transferida para o galpão abandonado?
-A minha última lembrança é de que nós estávamos conversando no Sófocles. Depois disto, eu despertei já amarrada a uma cadeira, presa naquele cativeiro horrível. Mas não consigo recordar como cheguei até lá.
-O gerente anotou o pedido feito por vocês dois: um refrigerante em lata para cada um. Segundo o que ele contou para mim, o Nicolas veio até o balcão para pegar a bandeja enquanto tu esperaste à mesa. Naquele momento, o gerente virou-se de costas, até perceber uma cena estranha. A parede da lanchonete é parcialmente espelhada e ele notou que, numa das latas, o rapaz despejou o conteúdo de um frasco, mas não falou nada. Quando ele viu que não foste mais à lanchonete, passou a relacionar o teu “amigo” ao desaparecimento das estudantes da universidade.
-Quer dizer que ele foi o responsável por denunciar o Nicolas?
-Não havia como provar que ele era o responsável pelo sumiço das moças. Só que quando eu o procurei e falei de ti, eu o convenci a contar para polícia. Foi então que ele apareceu no Sófocles.
-Como assim? O Nicolas voltou à lanchonete? Mas com qual propósito?
-Dissimular, passar despercebidamente. Se ele desaparecesse ao mesmo que tempo que tu, o seu sumiço também passaria a ser investigado.
-Professor, o senhor não chegou a confrontá-lo, chegou?
-Percebi que era necessário agir com precisa cautela, Olívia.
-Mas como foi que ele não desconfiou que o senhor conhecia a mim?
-O gerente da lanchonete apontou discretamente para que eu o reconhecesse como teu acompanhante dos últimos tempos. O rapaz pediu o mesmo de sempre, agiu como se nada tivesse acontecido, como se não houvesse te levado ao galpão, como se não tivesse planejado o teu assassinato.
-Aquele homem é um monstro. Não parei de pensar num só momento que não sairia com vida daquele lugar. O Nicolas estava disposto a acabar comigo, sem deixar o mínimo de rastro da minha existência. Tinha um ódio irracional, não só por mim quanto por todas as... – Olívia volta a chorar- Todas aquelas mulheres que ele ceifou. Só de imaginar o horror pelo que elas passaram, eu...
-Tu estás bem agora, estás com vida, Olívia. Tens que pensar nisto agora, que o pesadelo causado por este homem acabou.
-Mas continues, por favor. Diga-me como conseguiu fazer a polícia ir atrás do Nicolas.
-Quando eu estava entrando na universidade, cheguei a ver os cartazes das moças que haviam desaparecido e sabia que a mesma pessoa havia sido a responsável pelo desaparecimento de todas. Tanto o gerente quanto eu ficamos conversando durante o tempo em que aquele rapaz lanchava, como se não houvesse nenhum peso na sua consciência.
-Porque não havia.
-Foi então que eu mandei uma mensagem, através do celular, para a Embaixada Portuguesa, explicando que teu caso, que ainda não havia tido uma denúncia formal, poderia estar relacionado ao desaparecimento das outras estudantes. Eles contataram a polícia e nós seguimos o rapaz. Fomos até o galpão em que ele te mantinha como sua refém e esperamos que ele saísse para invadir o local e descobrir se ele te escondia. Mas quando ouviram o disparo que ele deu para acabar contigo, os agentes invadiram. Chegaram até a pedir que eu esperasse fora do galpão, que era uma operação perigosa e que um civil não poderia envolver-se naquela questão, mas eu tinha que estar lá.
-Por que, professor?
-Porque tu vieste a este lugar por minha causa, e era a minha obrigação zelar por tua segurança, como sempre fiz.
-Não quero que te sintas culpado. Eu só tenho a agradecer ao senhor.
-Tens certeza do que dizes, Olívia?
-Eu vi a morte de perto, a violência, o medo ao meu redor. O que eu vivi eu não sou capaz de desejar nem mesmo para o meu pior inimigo.
-Teu coração não permitiria que tu tivesses um pensamento tão mesquinho quanto este.
-Mas eu quero agradecer ao senhor, de coração. Porque tudo isto serviu para que eu tivesse em mim a certeza de estar no caminho certo.
-O que tu julgas como “caminho certo”, Olívia?
-Amar a Deus, ter fé somente Nele, crer em Sua existência e na manifestação do Seu poder. Se antes havia em mim algum resquício de dúvida, se antes eu me sentia rejeitada por parecer a única prudente em meio a um mundo néscio, tida por muitos como uma pessoa ridícula por amar alguém que eu não poderia ver, agora eu tenho a ciência de que Ele não me desamparou nunca. É por Ele que estou eu hoje viva. E é para Ele todo o amor que eu tenho. Obrigada. Mil vezes obrigada por me fazer entender este amor do qual não quero desfazer-me nunca. Obrigada, professor.
A mestranda e o docente trocam o mais caloroso abraço que já tiveram desde que passaram a conviver juntos. Era como se tudo agora parecesse caminhar para um mar menos agitado. Até o fato de Valente e Tato chegarem juntos à Comportas, observados por Fabiano, já não era algo que atemorizasse os rapazes.
-A paz do Senhor.
-Amém- ambos respondem.
-Sejas bem-vindo, meu rapaz- Fabiano fala com Tato.
-Obrigado, Pastor. Eu posso entrar?
-Como se estivesses em tua própria casa. Aliás, num lugar de santidade e adoração, não devemos fazer acepção de ninguém.
-Obrigado- Tato entra e ajoelha em frente ao púlpito, onde agradece a Deus pela saúde de Kleber, restaurada após o transplante.
-Podes mesmo ajoelhar, meu amigo?- Valente pergunta, ainda do lado de fora, referindo-se à cirurgia.
-Acho que não, mas faço este esforço de qualquer maneira.
-Por que ele não poderia ajoelhar-se? Acaso está ele doente?
-Convalescente, Fabiano. Bem, eu espero que o varão valoroso também possa entrar na igreja...
-O que é isto, Valente? Acabei de dizer ao teu amigo que não há acepção de pessoas neste lugar. Por que logo tu serias impedido de entrar aqui?
-São tantas surpresas desagradáveis ultimamente que nem isto me assustaria.
-Valente, compreendas que o meu ato...
-Quem tem algo a compreender és tu, porque tomei uma decisão que facilitará a todos de entender quem sou eu verdadeiramente.
-Ao quê tu te referes?
-Quero que, no mês que vem, a igreja Comportas do Céu celebre a minha cerimônia de casamento- diante da declaração, Nete aparece no templo, completamente boquiaberta com a notícia.

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