Receosa, a jovem abre os olhos e não escuta nenhum barulho, a
não ser o dos ratos que já povoavam o galpão fétido sobre os cadáveres trazidos
por Nicolas.
-Meu Deus... O que foi que fizeste comigo?- pergunta, em voz
baixa, com medo da presença de Alonso naquele lugar. Certa de que foi ouvida
pelo doutorando, volta a fechar os olhos novamente, para não ver o seu rosto.
Vários passos ficam cada vez mais fortes, até que uma voz grita:
-Olívia!
A estudante reconhece a voz de seu professor, que está
acompanhado pelos policiais locais. Sentindo-se segura, a moça tenta mover-se e
vê o rosto de seu amigo enquanto chora de alívio pela inesperada presença do
docente. Dois agentes da polícia colocam a cadeira de pé e desatam os nós que
amarram a mestranda, que não tem forças para colocar-se de pé. O professor
corre ao seu encontro e, ajoelhado, abraça a moça. Um dos policiais chama uma ambulância
ao ver o degradante estado físico de Alonso, jogado ao chão por conta de um
golpe quase fatal: o tiro que disparou contra sua refém saiu pela culatra,
acarretando numa rápida e profunda perda de sangue.
-Eu pensei que eu fosse morrer! Achei que ele fosse matar a
mim, professor...
-Não precisas temer mais nada. Acabou, Olívia. Graças a Deus,
tudo acabou!
O burburinho acerca da amizade entre Tato e o saxofonista
varonil e valoroso, entretanto, arrastava-se mais um pouco. O reforço para as
maledicências dos vizinhos nascia através do retorno do filho de Dora e Kleber
ao apartamento do músico. Normalmente, dir-se-ia que Cissa é a mais preocupada
com a situação, mas sua estratégia em pressionar o noivo acabou por deixá-la
mais segura de si. Os rapazes cumprimentam-se com um abraço.
-Entres, Tato.
-O que tu me contas de novo?
-Muita coisa aconteceu nos últimos dias. Feridas fortes,
inclusive físicas.
-E a Cissa? Pensei que eu a encontraria contigo aqui.
-Provavelmente está trabalhando.
-“Provavelmente”? Pelo teu tom, até poderia pensar que não a
vês há um bom tempo.
-Nós tivemos uma pequena divergência.
-Mas não por minha causa, não é?
-Foi por minha causa, confesso. Era sobre isto a que eu me
referia quando falei de feridas. Só que é melhor tratar de assuntos mais
amenos.
-Tu vais à igreja hoje?
-Vou, sim. Preciso falar algo muito sério com o Pastor
Fabiano. Por que a pergunta? Queres visitá-la novamente?
-Melhor do que isto. Quero agradecer o que aconteceu com...
Com o meu pai.
-Fico feliz por isto. Só prova que não ficaram mágoas entre
vocês dois.
-Ficaram, sim. Só não acho que é bom cultivar o ódio entre um
pai e um filho que tanto se amaram. Já que nada mais voltará a ser o que era
antes...
-Se eu fosse tu, não teria tanta certeza. Sinceramente, eu
não acredito que depois de tudo que foi dito entre teu pai e eu, o Kleber
insista em permanecer afastado do filho. E depois, Deus permite a construção de
muralhas porque conhece o Seu poder de derrubá-las.
-Como sempre, falando a cousa certa- Tato e Valente escutam a
campainha- Estás esperando alguém?
-Estou esperando coragem para seguir em frente- a afirmação
de Valente deixa o amigo confuso, até que Hélio aparece à porta do apartamento.
-Posso falar contigo, Valente?
-Claro, Hélio. Fiques à vontade.
-Eu trouxe-te um presente.
-Espero que seja uma espécie de abono salarial.
-Sou bondoso, mas não tanto- ironiza- Para ti.
-O que é isto?
-Como tu bem sabes, costumo comprar pela internet vários CD’s
de música brasileira para que tu toques nas apresentações do Recifeeling. Daí, fiquei sabendo da
existência deste e comprei um para te dar de presente. Sei que é do gênero que
tu gostas.
-“Deus do secreto- Ministério Sarando A Terra Ferida”?
Prometo que vou ouvi-lo. Obrigado pelo presente, eu não esperava. Queres tomar
um café conosco?
-Valente, se tu me permites, eu vou descansar um pouco no
quarto...
-Não precisas fugir de teu tio, Tato. Também vim aqui para
falar contigo.
-Por quê? Que assunto temos para tratar? Acaso vieste
discutir comigo?
-Não, pois sou do núcleo da história que aceita pregações de
paz e amor sem contestar. E convenhamos que, desde que sofremos a passagem de
tempo neste enredo, não fazemos outra cousa além de armarmos, como diriam os
meus amigos brasileiros, uma “palafita”.
-“Barraco”, Hélio.
-Que seja. Vim aqui, Tato, por conta do Kleber.
-O que foi? Algum problema com o transplante?
-Quanto a isto, não te preocupes, ele vem recuperando-se de
maneira excelente. Só que ele deseja falar contigo?
-Sobre o quê?
-O assunto ele não me adiantou. Mas a Dora esteve te
procurando na clínica do Dr. Lopes e tu já havias recebido alta.
-Olhes bem, Tio, eu não acho que seja uma boa ideia ir ao
encontro do meu pai, ainda mais no estado convalescente no qual ele se
encontra.
-Quem deseja falar contigo é Kleber. Melhor dizer este teu
argumento pessoalmente.
-Vamos lá, Tato. Não custa nada. O teu pai não pode dizer
nada que te machuque mais do que todo este tempo de afastamento.
-Eu prometo que vou pensar. Por enquanto, é somente isto que
eu posso garantir.
A presença do professor é o suficiente para que Olívia se
sinta mais calma. A jovem é acompanhada até o hospital mais próximo para ser
medicada, enquanto Alonso segue inconsciente em outra ambulância para o mesmo
centro médico. O seu caso é o de maior gravidade, e o que chama a atenção dos
paramédicos, que tentam reanimá-lo antes de submetê-lo a uma operação para a
extração do projétil e contenção do sangue. Deitada numa cama, de olhos
fechados, Olívia tem uma de suas mãos seguradas pelo docente, enquanto a outra
é perfurada por um soro. Um enfermeiro do hospital público avisa:
-Desculpe, senhor, mas vai ter que esperar pela moça lá fora.
-Por quê? Deixes que ele fique aqui, por favor- apela Olívia.
-Eu sinto muito, mas só permitimos acompanhantes quando os
pacientes são menores de idade ou tem mais de sessenta anos.
-Entendas que ela ainda está muito frágil, rapaz. E,
independentemente disto, não vou deixá-la sozinha.
-Qual o seu parentesco com a paciente?
-Somos amigos, e mais nada. Mas vejas o estado em que a
Olívia se encontra.
-Tudo bem, eu não vou mais incomodar. Com licença...
-Moço, esperes. Tens notícias do Nicolas?
-Aquele que foi encontrado no mesmo lugar que você? Pelo que
fiquei sabendo, a polícia já estava há um tempo no encalço do rapaz.
-Procures ficar em repouso, Olívia. Depois, quando estiveres
recuperada, poderás depor e contar tudo o que aconteceu.
-“Todo o horror que eu vivi”, o senhor quer dizer, não é?
Aliás, como o senhor sabia onde eu estava? Como sabias que eu tinha sido feita
de refém naquele galpão?
-A tua irmã chegou a ligar para mim.
-Beatriz... Eu preciso falar com ela, contar o que aconteceu.
-Não fiques tão agitada, eu vou telefonar e vocês conversarão
à vontade. Mas a Beatriz sentiu que alguma cousa havia acontecido contigo e
falou comigo. Avisei-lhe de que faria uma viagem, mas que contataria o
departamento de pós-graduação para saber se estavas frequentando as aulas.
-E com relação ao meu cativeiro? Quem te contou que eu estava
lá?
-Assim que desembarquei na cidade, eu fui ao Sófocles.
-A lanchonete que fica nas dependências da universidade...
Cheguei a ir com o Nicolas algumas vezes.
-Falei com o gerente e mostrei uma foto tua, para saber se
ele tinha alguma ideia de onde poderíamos encontrá-la. Foi então que ele me
confidenciou uma situação bastante suspeita, que despertou nele a desconfiança
pelo teu sequestrador. Tu lembras o que ocorreu antes de seres transferida para
o galpão abandonado?
-A minha última lembrança é de que nós estávamos conversando
no Sófocles. Depois disto, eu despertei já amarrada a uma cadeira, presa
naquele cativeiro horrível. Mas não consigo recordar como cheguei até lá.
-O gerente anotou o pedido feito por vocês dois: um refrigerante
em lata para cada um. Segundo o que ele contou para mim, o Nicolas veio até o
balcão para pegar a bandeja enquanto tu esperaste à mesa. Naquele momento, o
gerente virou-se de costas, até perceber uma cena estranha. A parede da
lanchonete é parcialmente espelhada e ele notou que, numa das latas, o rapaz
despejou o conteúdo de um frasco, mas não falou nada. Quando ele viu que não
foste mais à lanchonete, passou a relacionar o teu “amigo” ao desaparecimento
das estudantes da universidade.
-Quer dizer que ele foi o responsável por denunciar o
Nicolas?
-Não havia como provar que ele era o responsável pelo sumiço
das moças. Só que quando eu o procurei e falei de ti, eu o convenci a contar
para polícia. Foi então que ele apareceu no Sófocles.
-Como assim? O Nicolas voltou à lanchonete? Mas com qual
propósito?
-Dissimular, passar despercebidamente. Se ele desaparecesse
ao mesmo que tempo que tu, o seu sumiço também passaria a ser investigado.
-Professor, o senhor não chegou a confrontá-lo, chegou?
-Percebi que era necessário agir com precisa cautela, Olívia.
-Mas como foi que ele não desconfiou que o senhor conhecia a
mim?
-O gerente da lanchonete apontou discretamente para que eu o
reconhecesse como teu acompanhante dos últimos tempos. O rapaz pediu o mesmo de
sempre, agiu como se nada tivesse acontecido, como se não houvesse te levado ao
galpão, como se não tivesse planejado o teu assassinato.
-Aquele homem é um monstro. Não parei de pensar num só
momento que não sairia com vida daquele lugar. O Nicolas estava disposto a
acabar comigo, sem deixar o mínimo de rastro da minha existência. Tinha um ódio
irracional, não só por mim quanto por todas as... – Olívia volta a chorar-
Todas aquelas mulheres que ele ceifou. Só de imaginar o horror pelo que elas
passaram, eu...
-Tu estás bem agora, estás com vida, Olívia. Tens que pensar
nisto agora, que o pesadelo causado por este homem acabou.
-Mas continues, por favor. Diga-me como conseguiu fazer a
polícia ir atrás do Nicolas.
-Quando eu estava entrando na universidade, cheguei a ver os
cartazes das moças que haviam desaparecido e sabia que a mesma pessoa havia sido
a responsável pelo desaparecimento de todas. Tanto o gerente quanto eu ficamos
conversando durante o tempo em que aquele rapaz lanchava, como se não houvesse
nenhum peso na sua consciência.
-Porque não havia.
-Foi então que eu mandei uma mensagem, através do celular,
para a Embaixada Portuguesa, explicando que teu caso, que ainda não havia tido
uma denúncia formal, poderia estar relacionado ao desaparecimento das outras
estudantes. Eles contataram a polícia e nós seguimos o rapaz. Fomos até o
galpão em que ele te mantinha como sua refém e esperamos que ele saísse para
invadir o local e descobrir se ele te escondia. Mas quando ouviram o disparo
que ele deu para acabar contigo, os agentes invadiram. Chegaram até a pedir que
eu esperasse fora do galpão, que era uma operação perigosa e que um civil não
poderia envolver-se naquela questão, mas eu tinha que estar lá.
-Por que, professor?
-Porque tu vieste a este lugar por minha causa, e era a minha
obrigação zelar por tua segurança, como sempre fiz.
-Não quero que te sintas culpado. Eu só tenho a agradecer ao
senhor.
-Tens certeza do que dizes, Olívia?
-Eu vi a morte de perto, a violência, o medo ao meu redor. O
que eu vivi eu não sou capaz de desejar nem mesmo para o meu pior inimigo.
-Teu coração não permitiria que tu tivesses um pensamento tão
mesquinho quanto este.
-Mas eu quero agradecer ao senhor, de coração. Porque tudo
isto serviu para que eu tivesse em mim a certeza de estar no caminho certo.
-O que tu julgas como “caminho certo”, Olívia?
-Amar a Deus, ter fé somente Nele, crer em Sua existência e
na manifestação do Seu poder. Se antes havia em mim algum resquício de dúvida,
se antes eu me sentia rejeitada por parecer a única prudente em meio a um mundo
néscio, tida por muitos como uma pessoa ridícula por amar alguém que eu não
poderia ver, agora eu tenho a ciência de que Ele não me desamparou nunca. É por
Ele que estou eu hoje viva. E é para Ele todo o amor que eu tenho. Obrigada.
Mil vezes obrigada por me fazer entender este amor do qual não quero desfazer-me
nunca. Obrigada, professor.
A mestranda e o docente trocam o mais caloroso abraço que já
tiveram desde que passaram a conviver juntos. Era como se tudo agora parecesse
caminhar para um mar menos agitado. Até o fato de Valente e Tato chegarem
juntos à Comportas, observados por Fabiano, já não era algo que atemorizasse os
rapazes.
-A paz do Senhor.
-Amém- ambos respondem.
-Sejas bem-vindo, meu rapaz- Fabiano fala com Tato.
-Obrigado, Pastor. Eu posso entrar?
-Como se estivesses em tua própria casa. Aliás, num lugar de
santidade e adoração, não devemos fazer acepção de ninguém.
-Obrigado- Tato entra e ajoelha em frente ao púlpito, onde
agradece a Deus pela saúde de Kleber, restaurada após o transplante.
-Podes mesmo ajoelhar, meu amigo?- Valente pergunta, ainda do
lado de fora, referindo-se à cirurgia.
-Acho que não, mas faço este esforço de qualquer maneira.
-Por que ele não poderia ajoelhar-se? Acaso está ele doente?
-Convalescente, Fabiano. Bem, eu espero que o varão valoroso
também possa entrar na igreja...
-O que é isto, Valente? Acabei de dizer ao teu amigo que não
há acepção de pessoas neste lugar. Por que logo tu serias impedido de entrar
aqui?
-São tantas surpresas desagradáveis ultimamente que nem isto
me assustaria.
-Valente, compreendas que o meu ato...
-Quem tem algo a compreender és tu, porque tomei uma decisão
que facilitará a todos de entender quem sou eu verdadeiramente.
-Ao quê tu te referes?
-Quero que, no mês que vem, a igreja Comportas do Céu celebre
a minha cerimônia de casamento- diante da declaração, Nete aparece no templo,
completamente boquiaberta com a notícia.
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