Depois do gesto idealizado por sua noiva, o músico indaga:
-Por que esta atitude assim, de repente?
-Fiquei sabendo do que fizeste por nós dois. Contaram-me que
resolveste adiantar o nosso casamento.
-Deixes que eu corrija a informação: “Nete contou-te que eu
adiantei o nosso casamento”.
-O ideal seria que eu ouvisse da tua boca.
-Tu acabarias sabendo, já que és a noiva, não é?
-Nossa, quanta frieza. Pareces até que falas do enlace de
outras pessoas, não de nós dois.
-Eu acho que tenho os meus motivos.
-Valente, eu preciso que tu me desculpes pelo que fiz no
outro dia.
-Não preciso perdoar-te de cousa alguma, Cissa.
-Claro que precisas. É mais do que óbvio que me tratas como
se fosse eu uma estranha.
-Quando tu fizeste aquilo comigo... Ou melhor, quando
quiseste fazer, eu entendi que talvez não saiba quem tu és.
-Acaso me dirás que jamais cogitaste? Que nunca nos imaginou na
intimidade?
-Mas nunca tentei levar-te para a cama. Não o fiz porque
ainda respeito-te demais.
-Por que não quis? Não existe desejo da tua parte por mim?
-Cissa, enquanto tu insistires neste assunto, eu estou
deixando meu ofício de lado. Daqui a pouco, os clientes do Hélio chegam e eu
ainda não ensaiei.
-Então, elucida-me uma questão: por que tu adiantaste o
casamento?
-Porque não há motivos para esperar.
-Ora, disseste que era melhor a nossa situação financeira
melhorar um pouco para...
-Cissa, eu não quero mais esperar. Acabemos com isto de uma
vez e façamos a cerimônia. Fabiano já está cuidando da ornamentação da
Comportas e eu vou alugar o meu terno.
-O Tato vai ao nosso casamento?
-Por que a pergunta? Se ele for, tu não irás?
-Respondas.
-Não falei com ele sobre isto. Faço questão da presença do
Tato, mas sei que ele não vai. Mesmo porque ele quer evitar ao máximo os
comentários acerca de nós dois.
-Curioso ele pensar desta forma, mesmo depois do tempo que
ele ficou hospedado na tua casa. O que o fez resguardar-se tanto?
-Tato vai embora do meu apartamento.
-Verdade? E quando?
-Assim que ele conseguir vender o seu carro. Mas, mesmo que
ele não consiga, antes disso ele quer sair de lá.
-Por que ele não volta para a casa do pai?
-Livre-arbítrio. Não me cabe julgar a decisão do meu amigo.
-Bom, mas voltando ao nosso casamento, eu estive pensando:
que tal se eu convidasse as irmãs lourenses para cantar na nossa cerimônia?
-Aquelas mulheres que cantaram na igreja no dia em que nos
conhecemos?
-Tu ainda lembras, Valente?
-Como se tivesse sido ontem.
-São elas mesmas. O que achas da ideia? Poderíamos pedir para
tocar uma música romântica depois da troca de alianças... Romântica gospel, é
claro.
-Acho a ideia excelente. Para mim, quanto mais pessoas
estiverem presentes, melhor.
-Calma, meu amor, porque a igreja pode não concentrar tanta
gente assim. Pensei que talvez possamos alugar um espaço mais amplo para
realizar a cerimônia.
-Prefiro que seja lá mesmo. O lugar é ideal.
-E com relação à festa, à recepção dos convidados?
-Não haverá recepção.
-Como assim? Só haverá a cerimônia? E os nossos amigos?
-Nossos amigos, seja lá quem eles sejam, aceitarão que eu
quero uma cerimônia simples.
-Mas tu acabaste de dizer que “quanto mais pessoas estiverem
presentes, melhor”...
-É uma cerimônia íntima, Cissa. Não haverá nada além do
programado.
-E quanto à lua de mel? Onde vamos passar?
-Ainda não pensei nisto. Quis deixar ao teu critério. Fiz mal?
-Não, foi maravilhoso! Até pensei num lugar para o qual
poderíamos viajar. Sabe qual?
-Digas.
-Rio de Janeiro.
-Brasil? Nossa, é muito bonito mesmo. Quer dizer, eu imagino
que seja, pelo que vejo no ecrã e pela internet.
-Sabia o quanto amarias a ideia. Vou agora mesmo comprar as
nossas passagens. Amo-te tanto, Valente. Mais do que a mim mesma.
-Ames primeiro a Deus e depois a si mesma. Quando tiveres
tempo, ames a mim, se possível.
-Como sempre, dizendo a cousa certa- beija-lhe novamente- Nós
vamos nos ver amanhã, na Comportas?
-Claro. Esperes por mim lá.
Valente despede-se de sua noiva e volta a segurar o saxofone,
com certo pesar no olhar. Hélio espera a saída da vendedora e volta a conversar
com seu funcionário.
-Queiras desculpar-me, mas não pude deixar de escutar a tua
conversa com a Cissa.
-Já está virando uma espécie de hábito teu. Fizeste o mesmo
quando eu estive a visitar teu irmão.
-Preciso transformar-me em um personagem de peso desta
história, ainda que estejamos na reta final do enredo- admite Hélio.
-Tudo bem. Escutaste a minha conversa com a Cissa. O que é
que tem?
-Estava pensando em te dar de presente uma recepção.
-Verdade?
-Depois do casamento, eu poderia usar o espaço do Recifeeling para receber os teus
convidados. Eu sei que teu orçamento não é tão folgado para fazeres festa, e
por isto eu quero que aceites como um presente meu para ti e para a Cissa.
-Hélio, eu aceito o teu presente, mas eu queria pedir uma cousa.
Não contes nada à Cissa sobre o teu presente.
-Já sei: tu queres fazer uma surpresa para a tua noiva, não
é?
-Mais ou menos.
-Valente, estás se comportando de uma maneira muito estranha.
Até parece que não irás se casar!
-Digamos que eu estou disfarçando o meu nervosismo. Com
certeza, vai ser o dia mais importante da minha vida.
-“O mais feliz”, tu queres dizer.
-Vamos trabalhar, Hélio?
-Estás bem, então. Vamos trabalhar.
Aproxima-se o dia do casamento de Valente e Cissa, mas outros
eventos parecem ser tão importantes quanto. Um deles é a volta de Olívia à sua
terra natal, a cidade de Lisboa. Para Beatriz, encarregada de receber a irmã no
aeroporto, o desembarque é uma espera interminável. Aquela manhã, para a moça,
parece ficar mais iluminada quando vê a mestranda acompanhada do seu querido
professor, quase sem os ferimentos causados por Alonso. As duas encaram-se por
alguns segundos, com determinada proximidade e em silêncio.
-Pensei que teria tanto a dizer-te quando o dia do nosso
reencontro chegasse, Olívia.
-Já eu tenho apenas uma frase a falar, Beatriz: “eu consegui
chegar com vida a este lugar”. Dá-me um abraço, minha irmã.
As garotas demoram em meio a um abraço regado ao mais
emocionado pranto em pleno aeroporto. Sem a menor cerimônia, o professor que
foi testemunha do incidente envolvendo a viagem de Olívia se junta à aluna e à
sua irmã no cumprimento, também vertendo lágrimas e concedendo, portanto, a
certeza de que o sofrimento causado por Alonso terminava exatamente naquele
momento. Longe daquele saguão, o rapaz despertava do coma e continuava em
estado vegetativo. A polícia ainda não havia encerrado o inquérito a respeito
do sequestro e da tentativa de homicídio contra Olívia, e por isso ela teria
que voltar para prestar depoimento, bem como as famílias que denunciaram o
desparecimento das outras estudantes.
Mas escapar da morte não deve ter um sabor tão doce para
Alonso, que assassinou mulheres por conta da crença que as vítimas tinham em
Deus, e da qual ele não só não compartilhava como queria impor a ideia de que
tudo não passava de uma invenção humana. E não era nada agradável ao ver na
porta do quarto um policial, indicando que foi descoberto e que agora estava
sob a tutela da justiça. Um dos enfermeiros entra no quarto.
-Parece que o suspeito acordou, finalmente.
-Mas não adianta- explica o enfermeiro- Pode até ser que ele
entenda o que está se passando, mas não vai reagir nunca. Uma pena. Um rapaz
tão jovem e cheio de vida, prostrado numa cama...
-Por pouco tempo. A julgar pelos depoimentos e pelas
denúncias, ele vai pro distrito penitenciário dentro em breve. Quero ver se,
numa cadeira de rodas, ele vai fazer metade do que fez.
-Pelo menos despertou, e mais rápido do que se pensava. A
gente não pode perder a fé.
-Um bandido desse tinha mais era que ter morrido mesmo-
desabafa o policial- Até a cama ele está tirando de alguém que precisa mais do
que ele. Bandido, meu filho, tem mais é que estar a sete palmos do chão.
Crente na regeneração de Alonso, o enfermeiro lê um trecho do
Novo Testamento, que carrega consigo.
-Sempre lia para ele quando estava desacordado, e Deus fez o
milagre. Por que não vou acreditar agora que existe o impossível?
Impedido de esboçar nenhum tipo de reação, Alonso sente-se
cada vez mais enfurecido com o texto lido, mas nada pode fazer para impedir o
enfermeiro de prosseguir com a leitura, que já dura desde a sua internação.
Embora inconsciente, ele tudo escutava. E Joana está brincando com as crianças
no Lar do Menino Tobias quando olha para um garotinho sentado sozinho num dos
bancos do jardim.
-O que tu tens, gajo?
-Está chegando a noite, Madre.
-O que há de diferente nisto? Acontece todos os dias, meu
amor.
-Mais um dia em que ninguém veio me adotar. Por que ninguém
quer levar-me para casa, Madre?
-Não tenho uma resposta para dar-te, meu querido. Mas a culpa
não é tua, eu te juro.
-Estou com medo.
-De quê?
-De ficar sozinho.
-O que foi que eu ensinei-te? Tu nunca estarás sozinho, pois
o Papai do céu está em todos os lugares. Agora, brinques com os outros meninos,
que daqui a pouco terão todos que tomar banho e eu servirei o jantar. Está bem?
-Tudo bem- o menor cumprimenta Joana com um beijo e corre
para o convívio dos outros meninos.
-Bem como o Valente. Cansei de vê-lo dizer o mesmo durante a
vida. Talvez seja a hora de procurá-lo e contar a verdade sobre a sua origem.
Mas como o assunto é delicado, Joana não vai ao encontro de
Valente imediatamente. Só depois de analisar que o casamento do saxofonista
está próximo, e não é justo, ao menos em sua visão, que ele comece uma história
de vida ao lado de uma mulher sem elucidar o seu passado. Valente não é somente
um dos vários órfãos deixados no Lar do Menino Tobias ao longo dos seus vinte e
dois anos de existência, pois tinha uma trajetória que o diferenciava das
outras crianças.
Exatamente a sete dias da cerimônia religiosa de enlace de
Cissa e seu protegido, Joana vai ao apartamento do rapaz e o surpreende, pelo
fato de fazer poucas visitas à casa do músico.
-Madre?
-Estás com tempo livre, Valente?
-Sim, estou. Por favor, entres. Não deverias estar no
orfanato a esta hora?
-Deveria, mas eu tinha que vir aqui.
-Aconteceu alguma cousa com a senhora, Madre?
-Não. Aconteceu contigo, e foi há vinte e dois anos.
-Desculpa-me, mas eu não entendi.
-Valente, teu casamento está próximo de ocorrer e eu já estou
há dias maturando esta conversa. Deveria ter contado quando tu eras uma
criança, mas preferi ficar calada. Tu tens o direito de saber.
-Por Deus, Madre. Saber do quê?
-De tudo o que te aconteceu antes de chegares ao orfanato.
-O que a senhora poderia saber a respeito disto, Madre?
Apenas o mesmo que todos sabem, que eu fui colocado em uma cesta em frente ao
Lar do Menino Tobias, provavelmente pelos meus pais.
-Valente, esta é a verdade que eu pensei em fazer com que
todos acreditassem. Saberás de todos os detalhes. Finalmente entenderás quem é
o verdadeiro Valente Valença.
O rapaz senta lentamente no sofá, incrédulo com a mentira contada
por Joana desde a sua chegada ao orfanato lisboeta. A falta de crença em uma
situação improvável afeta também Tato naquele momento, uma vez que conseguiu
vender o carro e pensa num apartamento para alugar. O corretor acaba por
levá-lo para conhecer o prédio onde moram Olívia e Beatriz, onde o número 205,
localizado no mesmo andar que a casa das moças, está desocupado. Quem chega lá,
ávido por informações a respeito da lisboeta que retornou à capital portuguesa
é Michel, que não chega nem a entrar quando vê Tato cumprimentando o corretor,
chamando-o para tomar o elevador, já que apresentaria para outros clientes
alguns apartamentos nas redondezas e o rapaz faria um cheque para efetuar o
primeiro aluguel.
O elevador fica em frente ao apartamento das irmãs. Tato
passa por Michel e não o cumprimenta, mas por não vê-lo.
-Não vais falar comigo, Otávio?
O filho de Kleber e Dora reage com certa repulsa, e a porta
do elevador abre.
-Tu, aqui?
-Podemos descer, Tato?- pergunta o corretor.
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