-Podes ir. Eu ficarei mais um pouco.
-Foi um prazer fechar contrato contigo, meu jovem.
-Obrigado, Molina- Tato despede-se do corretor de imóveis,
que entra no elevador e fecha a porta- Que assunto temos para falar, se é que
eu posso saber?
-O que fazes neste lugar?
-Posso frequentá-lo ou me impedirás?
-Não é necessário que sejas tão hostil.
-A hostilidade permite que eu viva. Do contrário, eu passaria
a escutar diversos dissabores sem nada poder fazer.
-E precisas disto?
-Sim, ao menos contigo.
-É tão difícil responder a uma simples pergunta?
-Passarei a morar aqui. Acabo de alugar um apartamento neste
prédio.
-Isto significa que eu passarei a ver-te mais vezes. Sou
amigo de duas irmãs que também moram aqui.
-Que pena.
-Tato, não vamos fazer desta cena um calvário.
-Tu não entendes nada de calvário. Não passou pelo que eu
passei para saber o que é ser rejeitado. Aliás, de rejeição entendes
perfeitamente bem, já que foste o primeiro a virar-me as costas.
-Quanto drama... Poderias ter negado ao teu pai aquilo que
ele leu sobre nós, mas não. Bancaste o corajoso. E para arcar com as
consequências, desejavas que eu tomasse partido da situação e sofresse junto a
ti.
-Desejava, sim. Porque pensei que estávamos vivendo o mesmo
sentimento.
-Muito pelo contrário. Da maneira como te comportaste, foi
como se tivesses ido parar na minha cama por ter sido pressionado, quando foi
de livre e espontânea vontade.
-E não imaginas o quanto eu me arrependo do dia em que te
escolhi.
-Os contos de fada não existem, Tato. E, se existem, não
fazem questão de que nós sejamos sequer personagens coadjuvantes.
-Concordo. Por isto mesmo é melhor que eu finja sobre a tua
existência.
-Hoje tu podes sentir raiva de mim, mas me agradecerás quando
sofreres com xingamentos, punições e olhares atravessados, e entenderes que o
melhor foi ter mantido a tua opção em segredo.
-Até poderia, mas o meu caráter eu não posso esconder,
Michel. E uma vez que eu ponho na minha mente que preciso ficar oculto por medo
do que vão pensar, percebo que o erro pode não estar somente neles, mas também
em mim.
-Poupa-me de teu discurso, Tato. Na prática, as pessoas
morrem por ser quem são.
-Pois prefiro a morte a conviver novamente com quem não faz
questão da minha presença. E se não estiverdes disposto a correr riscos por
seres quem és, é porque não o sabes.
Olívia, que está na sala de estar, ouve parte da conversa e
abre a porta, por reconhecer a voz de Michel.
-Michel? Por que não tocaste a campainha?
-Não deu tempo, Olívia... Vim saber como tu estavas.
-Melhor agora. Mas ainda é difícil pôr o rosto no
travesseiro, pois sempre que pego no sono lembro-me daquele horror todo que
vivi. Não vais entrar?
-Melhor não.
-Não faças cerimônia, Michel. A Beatriz está lá dentro e
prepara-te um café.
-Já fiz o que tinha que fazer aqui. Apenas queria saber como
tu estavas. Eu volto outra hora- cumprimenta a mestranda com um beijo e toma o
elevador.
-O que deu no Michel?
-Deve ser alguma espécie de peso na consciência...
Desculpa-me, não deveria ter sido tão áspero.
-Acho que sei quem és.
-Impossível. Estou a mudar-me para este prédio, nunca nos
vimos antes.
-Não te vi pessoalmente, mas pelo pouco que ouvi da conversa
entre vocês, suspeito até sobre quem tu sejas.
-Como poderias saber? Sou-te um total desconhecido.
-Tato. Foste tu quem esteve envolvido com o Michel e que
causou um rebuliço no dia do noivado de Cissa e Valente.
-Pelo visto, estás bem informada. Bem que ele havia me dito
que era amigo de duas irmãs. Suponho que sejas tu uma delas. E pelos relatos
que Michel deve ter feito, não valho muito na opinião de vocês.
-Não sou ninguém para julgar.
-É que eu já estou acostumando-me a ver dedos apontados na
minha cara.
-E se tiver eu um pecado maior que o teu? Achas certo que eu
venha a denegrir tua imagem ou condenar-te por algo?
-Nossa! Nunca pensei que uma amiga dele fosse dizer-me uma cousa
deste tipo...
-Podes ter acostumado a enfrentar as pessoas, a manter-se em
uma posição de autodefesa, mas não serei eu a fazer isto. Se tu e ele pecaram,
que chegueis à conclusão dos atos que cometeram sozinhos. Deus ama o pecador e
abomina o pecado. Só por este argumento, eu não teria porque julgar a um ou a
outro.
-Falando deste jeito, assemelhas-te ao meu amigo, Valente.
-Conheço-lhe através da Cissa, que é uma das minhas melhores
amigas. Posso garantir-te que ele, seja lá o que tenha dito, sabe o que diz. A
alcunha que ganhou diz muito sobre ele... Como é que era mesmo?
-“Varão valoroso”.
-Esta mesma!
-Uma pena que nos conhecemos numa situação tão desagradável
como esta.
-Gajo, vivi situações extremamente desagradáveis nos últimos
dias. O que tu disseres perto do vale de ossos secos que vivi será uma viagem à
Disneylândia! Só posso dizer que... Sejas bem-vindo.
-Obrigado. Tu não és evangélica, ou és?
-Como reparaste?
-Dizem que é fácil de reconhecer um protestante de longe.
-Glória a Deus por isto. Significa que estou indo pelo
caminho certo.
Voltando ao apartamento de Valente, Tato tem receio do que
falará ao saxofonista. Só que antes de dizer a primeira palavra, observa o
músico que está na janela do prédio, com um olhar distante.
-Valente? Valente, estás a ouvir-me?
-Falaste comigo?
-Sim. Parecia que não estavas neste planeta.
-Não estava mesmo, meu amigo.
-Até imagino por que seja: estás pensando no casamento, não
é?
-Pode-se dizer que sim- mente, enxugando o rosto, ainda
choroso pela misteriosa revelação feita por Joana- Querias dizer-me algo?
-Chegou a hora da minha despedida, meu amigo.
-Despedida, Tato?
-Estou a sair da tua casa, Valente. Acabei de alugar um
apartamento. Voltei para deixar o endereço contigo e... – entrega um cartão-
Agradecer por tudo que fizeste por mim.
-Sabes que não precisa ser desta forma. Tu tens uma casa,
Tato, a casa do teu pai, o Kleber. Se precisares, o próprio Hélio pode
levar-te. O aluguel deste apartamento é mais um abismo que colocaste entre tu e
a tua família.
-Preciso de autonomia, descobrir quem eu sou, o que eu tenho
e se o mereço ter.
-Como passarás a sustentar-te?
-Não sei fazer nada, confesso. Só que, com a venda do carro,
ainda sobrou uma quantia considerável. Posso viver disto até conseguir
firmar-me numa profissão.
-Não concordo com o que estás fazendo consigo mesmo, mas...
Não tenho como não te entender, Tato. Só espero que este caminho te conduza à
felicidade.
-E acaso acreditas em felicidade plena, Valente?
-Não aqui nesta terra. Mas na glória, com Deus, eu afirmo que
há. O caminho para a felicidade é Jesus, Tato. Segues, e depois entenderás o
que tento dizer-te.
-Como posso agradecer-te diante do que fizeste por mim? A
ajuda que tu deste a mim não é a de um amigo, Valente. Mais do que isto.
Comportaste-se como se fôssemos irmãos.
-E não é o que devemos ser, uns para com os outros?
-Que Deus possa te recompensar.
-Tem mais uma coisa que preciso fazer antes que tu vás embora
deste lugar. Só que precisarei de tua ajuda.
-Peças o que bem entenderes.
Valente une suas mãos às do amigo e ajoelha-se. Em sinal
afirmativo feito com a cabeça, o músico convence o amigo a repetir o gesto e,
de olhos fechados, começa a falar com Aquele que considera seu melhor amigo.
-Vens agindo, Senhor, em favor da vida de Otávio. Que Tu
possas ir onde pés humanos não podem pisar e faças nascer um amor sincero e
profundo por Ti. Que abençoe este novo lar e a família de Otávio. Toques,
Jesus, nos corações que vêm oprimindo e sendo oprimidos. Faças com que eu
importe-me tanto com o meu próximo como eu me importo comigo mesmo. Derrames
Tua santa unção sobre a vida deste rapaz e que ele encontre a luz que possa
guiá-lo até Deus, que é o Senhor. Assim, eu peço-Te e agradeço-Te, porque tenho
mais a agradecer do que a pedir, no poder de Teu santo nome...
-Amém- os dois completam a prece, abraçando-se em seguida.
Assim que Tato deixa o apartamento, Valente retorna ao pranto sofrido em que
estava ao saber a verdade sobre a sua origem, ora em um pranto desesperado, ora
em um choro que tentava ser silenciado pelo músico. O filho de Kleber e Dora,
enfim, realiza os desejos de parte dos vizinhos e amigos do saxofonista e refaz
a sua vida longe dos domínios do apartamento do amigo.
Chegou o esperado dia do casamento. Aquele longínquo ano de dois
mil e vinte não poderia ser encerrado se não houvesse o enlace matrimonial
entre Cissa e o tão famoso “varão valoroso”, e é por essa razão que ele é o
primeiro a acordar. Na verdade, o último a dormir, pois passou a noite anterior
em claro. Faltando catorze minutos para as seis da manhã daquele nove de maio
que prometia ser ensolarado, Valente é responsável por despertar o próprio
chefe através de uma ligação, realizada por seu telefone fixo, já que ainda não
teve tempo de comprar um novo aparelho celular depois do assalto por ele
sofrido. Ainda na cama, Hélio atende a chamada.
-Alô?
-Sou eu, Hélio.
-Valente? Por que me ligas a esta hora?
-Desculpa-me. Não tenho noção das horas, passei a noite em
claro. Por isto, pensei que estivesses acordado.
-Entendo-te. É a ansiedade para o casamento.
-Hélio, eu preciso pedir-te um favor.
-Antes de mais nada, eu preciso pedir-te desculpas.
-Por que razão?
-Valente, não poderei ir ao casamento. Eu tenho que resolver
as questões pendentes ao bufê, à banda que tocará durante a recepção no Recifeeling, os arranjos florais... A
Alessandra tem dividido as tarefas comigo, mas acontece que escolhi dar-te este
presente muito em cima da data. Ainda não consegui nem fechar acordo com a
banda, crês nisto?
-Esqueças a banda.
-Do que estás a falar?
-Disse-te que seria uma cerimônia discreta, e a recepção
também deveria ser do tipo.
-Valente, uses o espaço do restaurante para surpreender tua
futura mulher. Para que fazer uma cousa simples, se tudo ficará por minha
conta?
-Por isto que eu te liguei. Eu pensei bem e acho que deverias
usar esta recepção para outra finalidade.
-Perdoa-me, mas não estás a dizer cousa com cousa.
-Tu não disseste que a recepção era um presente que estavas
dando a mim?
-A ti e à Cissa. O que ela pensa a respeito?
-Deixes que com ela eu entendo-me no casamento.
-E acaso tratarás de problema relacionado a bufê na própria
cerimônia de casamento, gajo? O que tu pretendes fazer? Fechei o restaurante
especialmente para os teus convidados.
-Meus convidados comparecerão ao Recifeeling, mas não virão direto da igreja.
-Já bem dizem os meus amigos brasileiros: “estou mais perdido
que deficiente visual em troca de tiros”!
-Quero usar o meu presente de maneira que eu possa beneficiar
quem realmente precisa.
-Está bem, então. E com quem pretendes usar os serviços do
restaurante?
-Falarei com a Madre Joana, aquela do orfanato. Pensei em
fazer com que ela levasse as crianças do Lar do Menino Tobias ao Recifeeling. Há alguma objeção tua quanto
a isto?
-Não, gajo, nenhuma. Mas aquela madre é tão próxima a ti,
acreditei que ela estivesse na cerimônia.
-A Madre preferiu não ir, mas sei que se eu ligar e pedir
para ela levar os garotos, ela não irá incomodar-se.
-OK, Valente. Eu faço questão de receber a madre e os órfãos.
Serão bem-vindos.
-Obrigado pela força, Hélio. Não sabes o quanto é isto
importante para mim.
-Sei, sim. Muitas vezes, chegavas ao restaurante contando da
maravilha que era contar histórias aos meninos do orfanato, o quanto brincavas.
Uma vez, disseste até que era como se nunca tivesses saído de lá.
-Às vezes, a impressão que tenho é esta mesma.
-Podes contar comigo, meu amigo. E saibas que eu desejo-te um
dia especial, tanto para ti como para a tua prometida.
-Fiques certo de como dois e dois são quatro, eu não sairei o
mesmo homem quando aquela cerimônia terminar.
-Claro que não, meu rapaz. Felicidades.
-Obrigado, eu vou fazer o possível. Vemos-nos mais tarde,
Hélio. Que Deus te abençoe. Grande abraço.
-“Mais tarde”? Mas se eu não vou ao casamento, como é que
ele... O gajo está totalmente descompensado!- Hélio levanta-se da cama e
descansa um pouco para tomar um banho e seguir ao local de trabalho.
O dia da noiva não tem seus preparativos realizados na casa
dos Irmãos Marques Barboza, pois Cissa opta por ser maquiada e vestida por
Beatriz, constantemente conectada ao universo da beleza. Exterior, diga-se de
passagem. Olívia acompanha a produção da futura nubente, ansiosa e nervosa com
a aproximação. A mestranda, entretanto, ainda está com o olhar abatido, um
pouco distante. Beatriz organiza o penteado da noiva de Valente.
-Tens certeza de que não queres ir?
-Desculpa-me, amiga, mas acho que não estou em condições
ainda. Só consegui voltar à Lisboa para não deixar a minha irmã preocupada.
-Mas convenhamos que não faria muito sentido recuperar-se no
local que deixou-te traumas tão fortes, Olívia- Beatriz observa sobre os atos
criminosos de Alonso.
-Não pretendes voltar para lá um dia, não é?
-De todas as maneiras, terei que voltar. Prestarei depoimento
acusando aquele homem de cárcere privado e tentativa de assassinato. Segundo o
advogado, são praticamente nulas as chances de vê-lo fora da cadeia.
-Uma pena um desgraçado daquela estirpe não ter sido devorado
pela terra. Era para estar debaixo de sete palmos agora, pagando pelo que fez à
minha irmã.
-Ah, não vamos estragar este dia falando de um ser abjeto
como aquele. Tudo hoje será especial- anima-se Cissa.
-Imagino até a curiosidade que Valente deve ter de
imaginar-te vestida de noiva.
-Ora, pois se eu não sei... Mas foi por isto que pedi ao
Michel que me esperasse lá embaixo com o carro. Vai que o Valente resolve
aparecer de surpresa pouco tempo antes da cerimônia e vê o meu vestido...
-Qual é o problema, minha amiga? Ele vai achar-te linda,
exatamente da forma que te apresentas agora.
-Melhor não arriscar. Dizem que traz maus agouros ao
casamento.
-Por favor, Cissa, não passa isto de uma crendice. Casamentos
só fracassam quando ao menos uma das partes não possui amor para dar.
-Pronto. A crente cretina voltou!- Beatriz volta a provocar
Olívia.
-Cretina talvez, mas crente sou, e com muito orgulho disso.
-Cuidado, irmã. Orgulho é pecado.
-Maledicência também, Beatriz, e nem por isto tu te calas.
-Meninas, por favor. Vamos acalmar os ânimos? Nada dará
errado, Olívia. Ainda mais que a minha principal ameaça está longe de mim.
-Do que falas?
-Como assim “do que falas”? Do Tato, que deixou a casa do
Valente e foi para o raio que o parta.
-Bom, sinto informar, mas há duas coisas que precisas saber.
Primeiro: o Tato nunca foi ameaça porque o Valente nunca cogitou trocar-te,
ainda mais por um homem. Teu noivo acredita fielmente nos preceitos da Palavra
para fazer uma cousa tão impensada como esta!
-Porém houve os comentários embasados puramente na maldade.
Achavas mesmo que eu aceitaria que falassem mal do meu homem? Jamais! Por isso
confrontei aquele rapaz, até que ele saísse da casa e da vida do Valente. Que
vá para bem longe!
-Não tão longe. Está morando no apartamento duzentos e cinco.
-Sério?- Beatriz fica surpresa com a declaração de Olívia.
-Exatamente. Eu o encontrei tendo um pequeno atrito com o
Michel, logo quando voltei.
-Coitado do meu irmão. Tantas pessoas no planeta para ele
colocar em nossas vidas e escolheu logo quem?
-Será que ele vai ao casamento, Cissa?
-Por que ele iria, Beatriz?
-O Valente pode ter convidado. Não sei, é uma possibilidade
em aberto.
-Tomara que tenha vergonha e não vá, mesmo que meu noivo
tenha chamado. A não ser que ele vá com o intuito de causar discórdia, que é bem
do seu feitio.
-Se eu fosse você, iria à porta do gajo e deixava bem claro
que a presença do Tato não será bem quista no casamento.
-Beatriz! Que ideia mais estapafúrdia!- Olívia fica abismada
com a ideia da irmã.
-Tudo bem, Olívia, eu não vou fazer isto, de maneira alguma.
Só se deve perder tempo com o que vale a pena, e certamente aquele lá não vale
um segundo que eu possa dispensar.
-Estás pronta, amiga. Vejas-te no espelho.
-Meu Pai do céu!- Cissa contempla-se ao espelho do quarto de
Beatriz- Tua produção ficou perfeita!
-Modéstia à parte, ficou mesmo. Se eu investir num negócio
com este, lucrarei mais que vendedor de água!
-Tens vocação, Beatriz. Sempre falei-te isto, tu nunca quis
dar-me ouvidos- relembra Olívia.
-De fato, eu não costumo dar atenção às cousas que tu dizes,
mas faz sentido- Beatriz volta a provocar a irmã.
-Já imaginaram como o meu Valente ficará diante desta visão
maravilhosa?- Cissa continua a admirar-se- Ficará estático!
-Bom, dizem que a noiva deve atrasar um pouco para causar expectativa
entre os convidados e o noivo. Vamos tirar as fotos dos bastidores da
preparação para o casamento!- Beatriz toma a iniciativa e ativa a câmera do seu
celular.
-Mas nada de publicar nas redes, hein? Vai que, numa dessas,
o Wi-Fi da igreja está funcionando e
os convidados estão online?
-Então, deixes que eu registro os momentos- Olívia segura o
aparelho de Beatriz e fotografa a irmã e a noiva, devidamente preparada para o
enlace. Depois de saírem da casa das Irmãs Gusmão Alencar, Beatriz e Cissa descem
para seguirem até o carro em que Michel está à espera das moças, sendo que ele
recebeu uma mensagem de Olívia, avisando da chegada das mulheres ao veículo. O
trânsito estava livre, mas parecia que a direção do automóvel que o irmão da
noiva tomava era conduzida a passos lentos, tamanha a ansiedade. Beatriz faz
mais um comentário acerca da religião da amiga.
-Só mesmo a Cissa para fazer com que eu, Beatriz Gusmão
Alencar, entrasse numa igreja evangélica. E olhe que nem mesmo a Olívia
conseguiu realizar tamanha façanha!
-Para que tu tenhas uma prévia de como este nove de maio de dois
mil e vinte será inesquecível. Até o impensável, que era ver-te na Comportas,
acontecerá!
-Cissa, não é melhor tu ligares para alguém, para saber se o
Valente já está na igreja?- sugere Michel- Se ele ainda não tiver chegado,
vamos ter que dar voltas pelos quarteirões.
-Será que ele não vem?
-Ah, amiga! Não fales disparates! Se ele não estiver na
igreja é porque ainda não deu tempo de chegar, só isto. Não abras a boca para
falar tolices.
-Então, tu me farás um favor, Beatriz- Cissa tira do decote o
seu próprio telefone celular e o entrega à Beatriz- Tu vais ligar para alguém
da igreja e perguntar se o Valente está lá. Pelo menos assim eu fico mais
tranquila.
-Acho que não é para tanto, mas tudo bem. Para quem eu ligo?
-Vejas na lista de contatos o nome “Ednete”. É a esposa do
pastor.
-Que nome é este? Como vocês mesmos gostam de proclamar:
“misericórdia”!- Beatriz realiza a chamada.
-Cissa, irmã amada, onde estás tu?
-Aqui é Beatriz, a melhor amiga da Cissa.
-Como assim? Pensei que fosse eu a única a desempenhar este
papel.
-Que seja. Ela pediu-me para ligar e saber se o Valente já
está na igreja.
-“Se ele está aqui”? Hum, ele foi o primeiro a chegar. Está
com os nervos em pandarecos! Quando o
meu marido chegou para abrir a Comportas, ele já estava. Já está no altar.
-Perguntes do juiz, se ele já chegou.
-A Cissa está perguntando se...
-Daqui eu posso ouvi-la. Digas que ela pode ficar tranquila.
Nós só estamos esperando pela chegada da noiva. Ela está a caminho, sabes
dizer?
-Já estamos chegando. O Michel está dirigindo.
-A porta traseira da igreja está aberta para receber os
convidados. Saias tu primeiro do carro e entres por esta porta. A porta
principal só será aberta quando Cissa entrar com o irmão.
-Tudo bem, senhora. Eu direi à Cissa. Obrigada- desliga o
celular- Tudo sob controle. Já podes respirar aliviada, amiga.
-Dará tudo certo, Beatriz. Ou melhor: deu tudo certo.
O trio chega à Comportas. Beatriz segue a instrução de Nete e
entra pela porta traseira da igreja. Calmamente, Michel sai do carro e abre a
porta para a irmã, segurando a cauda do vestido de noiva com cautela.
-Estás linda, minha irmã. Este é o primeiro dia do resto da
tua vida.
-Tenho certeza de que sairei desta igreja hoje como a mulher
mais feliz deste mundo, Michel- troca um abraço com o DJ. Michel envia para
Beatriz uma mensagem, a fim de que ela avise a alguém para abrir a porta
principal, permitindo a entrada dos irmãos. Lido o texto, a jovem de língua
ferina contata o noivo, falando-lhe ao pé do ouvido.
-A noiva chegou.
Valente, receoso e mais sério do que costumeiramente aparenta
ser, diz a Fabiano, em voz baixa.
-A noiva chegou.
O pastor, então, dirige-se à Nete.
-A noiva chegou- avisa, também em voz baixa.
-E esperas o quê para abrires a porta?
-Eu não posso abrir, tenho que ficar no altar.
-Pelo menos, tens como inserir o pen drive na caixa sonora e colocar a faixa de Mendelssohn para ser
executada?
-Quem é este?
-Fabiano, é o compositor da tal de “Weeding march”, que
encontrei vasculhando a internet.
-Sei... E por que esta música?
-Porque se trata da marcha nupcial, ora pois!
-Ah, bom.
Fabiano usa as potentes caixas sonoras da igreja para tocar o
fonograma enquanto Nete corre para abrir a porta e permitir a entrada da noiva
e do seu irmão. Com uma blusa azul-marinho bordada e uma longa saia jeans, a
esposa do pastor revela a estonteante beleza da vendedora vestida de branco, ao
passo que Beatriz só repara numa única coisa, em detrimento à felicidade da amiga.
-Saia jeans em
pleno enlace matrimonial? Esta mulher passou diversas horas na fila da cafonice
e não quis sair de lá nem sob decreto presidencial. Só faltou usar aquelas
sandálias de estilo gladiador, para completar o look “audacioso”- pensa, agora em voz alta.
Pois bem: a saia era realmente longa, e para evitar algum
incidente constrangedor, Nete levanta e mostra calçar um par de alpercatas, com
vinte tiras cada uma. Beatriz só não desmaiou porque Valente a segurou.
Como se estivessem em câmera lenta, Cissa e Michel caminham
até o altar, onde atraem os olhares das pessoas presentes. Com um sorriso
expansivo, a noiva não notou que as mulheres, com exceção de Nete, estão mesmo
é de olho na beleza europeia de seu irmão DJ... Se bem que todos são europeus neste
núcleo, e eu não vejo motivo para tanto! Só que uma moça, próxima à esposa de
Fabiano, que está ao lado de Valente e do juiz, comenta.
-Irmã, que gajo é este?
-Um desavergonhado, coitado. Qualquer dia desses, eu te conto
os detalhes. Mas não chega a um por cento da irmã ajuizada. Ou seja, é noventa
e nove por cento promíscuo! Não te enganes. O caipiroto também se apresenta
como uma beldade.
Michel beija a mão de Cissa e a entrega para Valente, que
também é cumprimentado pelo DJ. Os noivos dão as mãos um ao outro e olham para
Fabiano, que celebrará a cerimônia religiosa, mas Beatriz não deixa de reparar
agora nas feições de seriedade impressas pelo saxofonista, ainda mais fortes
desde a entrada de sua amiga.
-Espero que tenhamos um cardiologista para casos de
emergência.
-Por que dizes isto?- Nete pergunta.
-Acho que a qualquer momento ele desmaiará na frente de
todos.
-Tolice. Assim que a cerimônia acabar, ele poderá respirar
aliviado. Não é nada além de ansiedade.
-Eu quero saudar a amada igreja com a paz do Senhor.
-Amém- todos respondem. Beatriz, a contragosto.
-Hoje é um dia em que vamos celebrar a felicidade de
contemplar a união desses dois jovens: Clarissa e Valente. Depois de quatro
anos, testemunhamos o crescimento espiritual deste casal, que aprendeu a se
amar e amar ao Senhor como a si mesmos, sendo este aprendizado possibilitado
pela presença constante diante do altar. Mas antes do momento que todos estão
esperando, eu quero vos contar uma linda passagem que remete à união...
Tentando minar o resto de credibilidade que este enredo se
destina a passar, Beatriz comenta com Michel, agora ao seu lado:
-O que é que tu achas?
-Sobre o quê?
-Sobre o casal. Crês tu que dará certo?
-Beatriz, não achas que é a hora errada para fazer esta
pergunta?
-Não. Temos que manter o suspense do enredo, pois ainda não
será neste capítulo onde haverá o clímax da comédia dramática.
-Como assim? Pensei que fosse este o último capítulo.
-Quem dera. Fiquei sabendo, por fontes seguras, que a
história será arrastada até o trigésimo quinto capítulo.
-Agora tu me pegaste! Acreditei que o momento mais esperado
por quem está acompanhando o texto fosse o casamento da Cissa e do Valente.
-E é, mas não é o clímax idealizado pelo roteirista.
-Se é assim, o que vamos fazer nos dois capítulos que restam?
-Nada. Esqueceste que somos coadjuvantes? Somos aquilo que os
novelistas chamam de “orelha”.
-E isto seria exatamente o quê?
-Aquela espécie de personagem que está na história apenas
para ouvir os lamentos de outros papeis de maior relevância.
-Beatriz, não sei se tu estás lembrada, mas eu tive uma
participação considerável quando houve a mudança de fases.
-Depois disto, minguaste. Mas não vamos falar sobre isto
porque os leitores perceberão a barriga.
-Que barriga? Tenho malhado todo dia com um personal trainer. Inclusive, tenho
postado os vídeos dos treinos no Instagram...
-Ah, Michel, tu não sabes nada de jargões mesmo, não é?
“Barriga” é aquele momento na trama em que nada acontece. Significa que o autor
está prometendo uma emoção forte ou que ele não sabe como conduzir o restante
da história.
-No que é tocante ao meu personagem, é mais fácil ter sido a
primeira opção... Mas estou impressionado como sabes tanto de tramas
novelísticas.
-Querido, eu não sei nem mesmo fazer uma maquiagem boa, mas
apareci produzindo a Cissa em pleno dia de casamento. Achas mesmo que estaria
falando sobre “orelhas” e “barrigas” se não estivesse sendo conduzida ao sabor
da cabeça oca do roteirista?
-Melhor voltarmos à concentração no casamento, Beatriz.
-Concordo. E já como falaste em vídeos, vou transmitir tudo
ao vivo para o Facebook- Beatriz
aciona a câmera do celular mais uma vez.
-Será que a nossa participação nos últimos capítulos será
ampliada por divulgarmos marcas internacionais em nosso diálogo?
-Seria, se estivéssemos em uma novela de uma emissora televisiva
comercial. Sem contar que estamos em dois mil e vinte, nem sabemos se estas
redes sociais ainda existem.
Alheio ao diálogo, como qualquer personagem da trama, Fabiano
ainda está com a palavra durante a celebração do casamento do saxofonista e da
vendedora.
-Peço agora que olhem um para o outro, ajoelhados, e
confessem diante de todos os votos que farão e cumprirão ao longo desta
relação, que só será encerrada quando a morte vos separar.
-Que estranho a tal freira não estar no casamento- repara
Nete, sem saber que Joana levou os órfãos do Lar do Menino Tobias para
desfrutar da recepção que Hélio preparou originalmente para o casamento.
-Clarissa Marques Barboza...
-É agora, Portugal!- Nete pensa em voz alta, mesmo que os
noivos não tenham escutado.
-Portugal?- estranha Michel.
-“É agora, Brasil” eu não poderia falar. Não teria sentido.
Só se estivesse naquele antro de perdição que é o restaurante do chefe do
Valente.
-Dai-me paciência!- brada Beatriz.
-Aceitas Valente Valença como teu legítimo esposo, e prometes
ser fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na
pobreza, até que a morte os separe?
-Sim. Claro que eu aceito.
-E tu, Valente? Aceitas Clarissa Marques Barboza como tua
legítima esposa, e prometes ser fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na
doença, na riqueza e na pobreza, até que a morte os separe?
-Eu, Valente Valença, prometo ser fiel em qualquer
circunstância, e prometo também colocar-me no lugar daqueles que são meus
semelhantes, porque o amor espera que eu assim o faça. Ter empatia pelos filhos
de Deus é também uma forma de amá-Lo. Cissa... Eu prometo ser fiel aos meus
princípios e à verdade na minha vida profissional, na esfera amorosa, no campo
espiritual...
-Maldito cisco no olhar... – Fabiano usa um lenço para
enxugar as lágrimas.
-O que poderia esperar de alguém com o teu coração, meu amor?
-Nada além da minha resposta definitiva: “não”.
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