Olívia está em seu quarto sozinha, fazendo a leitura de um
capítulo do livro bíblico da primeira epístola do apóstolo Paulo aos Coríntios,
quando ouve a campainha do apartamento sendo acionada. Coloca o livro sagrado
sobre um criado-mudo e vai atender à porta. Trata-se do novo vizinho, com certo
resquício de timidez.
-A paz.
-Que surpresa ver-te por aqui.
-Desculpa-me o incômodo, mas é que eu vim saber se podes
arranjar-me um pouco de açúcar.
-Deixes que eu veja se tenho ainda. A minha irmã é que ficou
responsável pelas compras nos últimos tempos, mas Beatriz não consegue ser
responsável nem por si própria- recebe o frasco segurado pelo filho de Dora e
Kleber.
-Obrigado.
-O que fazes parado aí diante desta porta? Entres, fiques à
vontade.
-Com licença, então- Tato entra no apartamento das Irmãs
Gusmão Alencar, e Olívia enche o frasco com açúcar.
-Acho que não fomos devidamente apresentados naquele dia em
que estiveste aqui pela última vez. Meu nome é Olívia, muito prazer.
-E o meu é Otávio. Mas todos conhecem-me como “Tato”.
Inclusive tu.
-Verdade.
-Mas também já havia memorizado teu nome no dia em que fechei
o contrato de aluguel.
-Quer dizer que já fizeste tua mudança?
-Não trouxe nada além de mim mesmo. Havia guardado uma certa
quantia para comprar alguns alimentos, mas esqueci-me justamente do açúcar.
-Precisas adaptar-se ainda à rotina de um dono de casa.
-Vai ver é isto mesmo.
-Pensei que estivesses no casamento do Valente e da Cissa.
-Que nada. Preferi evitar comentários inoportunos. Como sou
eternamente grato ao que Valente fez por mim, eu não quis causar nenhuma
espécie de alarde com a minha presença. Acho que, pelo menos por hoje, ele pode
dormir mais tranquilo.
-E ele não ficou chateado de teres recusado o convite para
compareceres à cerimônia?
-Agora que tu falaste, reparei que ele não me chamou para o
casamento. Mas imagino que tenha sido justamente para poupar a noiva e a si
mesmo das línguas ferinas. Não será este detalhe que me fará deixar de torcer
pela felicidade do meu amigo.
-Bonita esta gratidão que tu sentes pelo Valente.
-Foi meu porto seguro quando ninguém mais queria ser.
Imagines: abrigar um total desconhecido na própria casa, interceder em minha
família a favor de mim, convidar-me para ir a uma igreja...
-De fato, Valente é um homem ímpar. Não à toa, todos o
conhecem como “varão valoroso”.
-Sem contar o primeiro nome, que já é autoexplicativo por
demais.
Vocês pensaram que eu não ia prosseguir com a ruptura do
casamento hoje?
Ocorre um burburinho depois da resposta dada pelo
saxofonista. Fabiano, acreditando que o noivo está afobado diante da circunstância,
resolve conceder-lhe outra oportunidade para a resposta esperada por todos.
-Bom, eu vou repetir a pergunta, acho que nosso irmão amado
não entendeu muito bem... Valente Valença, aceitas Clarissa Marques Barboza
como tua legítima esposa e prometes ser fiel na saúde e na doença, na alegria e
na tristeza, na riqueza e na pobreza, até que a morte os separe?
-Já te disse que serei fiel em todas estas oportunidades,
inclusive à minha noiva. Só que a minha resposta é “não”.
O buquê segurado pela noiva é levemente amassado, diante do
nervosismo de Cissa. O público fica cada vez mais atemorizado em face da
atitude do músico do Recifeeling.
-Melhor que eu repita a pergunta! Valente, tu aceitas...
-Não!- desta vez, o “varão valoroso” é incisivo em sua terceira
resposta negativa.
-Oh!- os presentes ficam em estado de choque. Beatriz,
inclusive, encerra a transmissão do casamento via Facebook.
-Não acredito que este calhorda deixará a minha irmã no
altar...
-Valente, digas o que está acontecendo! Por que está agindo
desta maneira?- Cissa exige uma explicação da parte do noivo.
-Meu filho, tu não vês que as pessoas vieram acompanhar teu
enlace com a Cissa? A igreja está toda ornamentada, o juiz está aqui para
recolher as vossas assinaturas e tu dizes que não se casará com a tua noiva?
-O senhor quer mesmo que eu diga por que razão eu não posso
casar-me com ela?
-E existe uma razão, Valente?
-Sim, e é mais forte do que o senhor imagina.
-Não podes casar-te comigo ou não queres?
-Não posso. Sinto muito, mas eu não posso, Cissa.
-Pois eu exijo saber o motivo de ter sido rechaçada no altar!
Que raio de razão é esta que faz com que eu passe a maior vergonha da minha
vida?
-Alguém tem que chegar até mim e dizer-me que isto não está
acontecendo... – Nete fica desesperada com a dissolução da cerimônia.
-Se este canalha deixar a minha irmã plantada no altar, eu
vou matá-lo, Beatriz! Eu juro que vou matá-lo!
-Michel, acalma-te. Não provoques outro escândalo, o do altar
já nos é suficiente.
-Valente, tua noiva tens razão. Acho que merecemos uma
explicação para a tua recusa diante de todos.
-Está bem, então. A Cissa está certa, eu tenho que
justificar-me.
-O que estás fazendo comigo não tem justificativa.
-O senhor dá-me a licença?- Valente segura o microfone usado
por Fabiano, que se afasta um pouco do altar- Primeiramente, eu gostaria de
saudar a todos com a paz do Senhor, amém?
-Amém... - algumas pessoas respondem, ainda atordoadas com a
postura do funcionário de Hélio.
-Todos devem esperar que eu fale a verdadeira razão por não
ter aceitado casar-me hoje, e não seria justo que saíssem daqui sem resposta.
-Espero que seja uma justificativa boa, para eu não ter de
quebrar a cara deste infeliz- Michel revela-se cada vez mais ameaçador.
-Eu não posso casar-me com a Cissa porque a primeira cousa
que ela falou-me foi que iria tirar-me deste lugar.
A revelação deixa todos em silêncio, menos Beatriz, que ao
lado de um Michel mais comedido frente à verdade, comenta:
-Acho que o rosto do Valente permanecerá intacto por um bom
tempo...
-Do que estás a falar? Eu jamais te disse algo tão grave
quanto isto!
-Tu não lembras? Ou será que preferes não lembrar, Cissa?
Pois eu memorizei cada palavra que dissemos naquela noite. No dia em que foste
confundida com as mulheres do coral e sentaste ao meu lado...
Valente e Cissa, enfim, relembram a noite em que se
conheceram, quando ela entrou na Comportas por engano.
-Respirem fundo, olhem para os irmãos que estão do seu lado e
digam com fé- Fabiano pediu aos presentes no culto.
Empolgado com certa restrição, o saxofonista virou-se para
Cissa, que preferiu olhar pra cima.
-Irmã?- indagou o rapaz, fazendo a jovem olhar para ele,
praticamente revirando os olhos.
-Repitam comigo- a partir daí, Fabiano falou pausadamente
para que todos pudessem repetir- “Eu creio que tu receberás o milagre da parte
de Deus, e quero ver-te aqui para contares a tua bênção”. Amém?
-Amém.
-Agora, abrace esse irmão que está do seu lado e diga em seu
ouvido que quer vê-lo de volta à casa do Senhor. A paz do Senhor Jesus.
Valente trocou um abraço com Cissa e disse aquilo que Fabiano
ordenou à igreja.
-Quero ver-te de volta à casa do Senhor, minha amada.
-Se eu puser novamente os meus pés neste lugar, será para
tirar-te daqui. Porque nem eu nem tu merecemos igreja alguma.
-Meu amor, naquela época eu ainda não era convertida. Lógico
que o meu pensamento estava atrelado às coisas mundanas...
-E quando eu comecei a namorar, eu acreditei que teu
pensamento mudaria, que tu amarias estar neste lugar assim como eu amo. Mas eu
cometi um erro grave, Cissa. Eu quis que tu mudasses, da mesma forma que
quiseste, inúmeras vezes, desassociar-me da minha essência.
-Mas que invencionice é esta que estás a dizer-me? Eu sempre
te amei, sempre quis ficar contigo, lutei contra tudo para viver este amor e
agora tu me condenas a mim por causa de algo que falei há quatro anos? Faças-me
o favor! Se pretendes dar um “basta” na nossa relação, que o faças como um
homem de verdade!
-E o que entendes tu sobre “homem de verdade”? Aquele que faz
o que tu determinas? Achas mesmo que estou recusando casar-me contigo por conta
do que me disseste há tanto tempo? Não, Cissa. É porque tuas atitudes fizeram
com que todos se afastassem de mim.
-Será que fui eu realmente? Ou foste o fato de colocares um
gajo dentro da casa onde vamos morar?
-“Moraríamos” é o que tu queres dizer, não é? Porque “Valente
& Clarissa” é algo que tu mesma destruísses. Fingias que estavas preocupada
com o que as pessoas poderiam falar acerca da situação, mas tu, sozinha,
implantaste a ideia de que eu poderia ter algo a mais com o meu amigo. Quantas
vezes tu não deves ter trocado confidências com a Irmã Nete para que ela
tivesse o Tato como persona non grata
nas nossas vidas? Mesmo sabendo o quanto tu eras caprichosa, eu aceitei
prosseguir com o nosso relacionamento porque estou apaixonado por ti. Isto tu
não consideras como relevante, não é, Cissa?
-Valente, por favor, sejas razoável- Nete interfere na
confusão.
-Por que deveria? Para que continuem a inventar mentiras
sobre mim, como a senhora faz?
-Agora foste longe demais, gajo.
-Mais do que a senhora em conluio com a Cissa, nunca!
-Ele está perdendo a razão, não sabe o que fala... – Cissa
tenta “justificar” a atitude do músico, o que atiça ainda mais sua raiva.
-E acaso aceitarias casar-se com um lunático, um homem que
não sabe o que diz? Como é conveniente que todos pensem assim. Minimizas os
teus atos, a sujeira que praticaste!
-Acaso alegarás que fiz outra cousa senão amar-te como se
fosses tu o único ser da face da terra?
-Claro. Amas-me tanto a ponto de querer mudar cada aspecto de
minha personalidade, como se um dia eu já tivesse feito isto contigo.
-Nunca interferiste em minha personalidade? Eu só entrei
nesta igreja por tua causa!
-E permaneceste por minha causa também, nunca pelo que ela pode
oferecer. Nunca por Deus, por qualquer tipo de intimidade que possas ter com
Ele. Pensas que jamais reparei na forma como olhavas para a Madre Joana por ela
ser de uma religião diferente da tua? Ou que querias adiantar este casamento
para fazer o que todos os casais pensam em fazer, por não aguentar mais
esperar? Tentaste desrespeitar o teu próprio noivo querendo entregar teu corpo
em oferecimento, mesmo sabendo que eu jamais aceitaria nenhuma relação antes do
nosso enlace. Fizeste complô com ela- o saxofonista aponta o dedo para Nete-
Para que falassem mal de mim e eu usasse o casamento como alternativa para
calar a boca dos meus detratores. A tua maledicência foi tamanha que, quando o
Hélio pensou que eu havia doado o meu rim, foste a primeira a olhar-me
tortuosamente. Pensaste em procurar o médico da clínica, para saber se eu havia
mesmo passado por uma cirurgia? O Fabiano, que também não acreditou que eu
havia sido assaltado, destituiu-me do cargo de saxofonista da Comportas porque
eu supostamente ajudei o Kleber em detrimento do que eu sinto por ti. Mas algo
ficará claro, para todos vocês: está para nascer a mulher que conseguirá
afastar-me do caminho do céu! Confabulem! Confabulem sobre meu comportamento
supostamente errático, o vexame que protagonizei, o que for. Mas eu não
deixarei de ser Valente Valença, independente da imagem que tenham de mim.
Adorem a mentira, a farsa, a canalhice. A mim, só resta o melhor: continuar
servindo, mas a Deus, e não de chacotas.
Valente sai do altar e caminha pela igreja, forrada com um
tapete vermelho que mantém pétalas de rosas brancas sobre si. Cissa, por pouco
tempo, segue estática. Nete aproxima-se da jovem vendedora.
-Venhas, filha. Vamos sair daqui.
-Não me toques!
-Cissa, eu sei o quanto estás nervosa, mas venhas comigo.
Bebas um pouco de água, tentes acalmar-se...
-Eu não quero acalmar-me. E tampouco quero a tua presença
agora.
-O Valente reconsiderará. Brevemente, ele voltará para a
igreja, arrependido e disposto a casar...
-Cala-te! Eu não quero mais ouvir tua voz, Nete. Deixa-me em
paz!- Cissa joga o buquê no chão, e é seguida por Beatriz e Michel.
-Esperes, Cissa.
-Quero ficar sozinha, Beatriz. Não venham atrás de mim.
-Mas aonde tu vais, minha irmã?
-Para qualquer lugar. Só me deixem sozinha- Cissa deixa a Comportas,
abalada.
-Michel, não podemos deixá-la por aí, sem ninguém.
-Conhecemos bem a Cissa, Beatriz. Ela precisa deste tempo.
-Fabiano, faças tu alguma cousa. Não podemos deixar aqueles
dois saírem desta maneira.
-Não podemos, Ednete. Precisamos.
-Eu vou atrás da Cissa.
-Melhor ficares aqui. A Cissa precisa de um tempo para si.
Nem a amiga e o irmão ela quis por perto, não serás a tua presença que ela quer
por perto.
Os transeuntes ficam sem compreender a dantesca cena da noiva
que caminha abalada pelos quarteirões lisboetas. Aquele que era para ser o
futuro marido da vendedora tira o terno branco que veste e, munido de uma
expressão menos séria que a do período antecedente à cerimônia de casamento,
vai ao Recifeeling, onde é recebido
por Alessandra, que estranha a presença do músico.
-Valente? Não era para estares no casamento?
-Já estive, Alessandra, mas esta é uma longa história.
-Não pode ser- Hélio fica surpreso com a aparição do rapaz- O
que estás tu a fazer aqui?
-Não houve casamento, Hélio.
-Por quê? Aconteceu alguma cousa com a Cissa, tua noiva?
-Ocorreu comigo: eu acordei. Antes tarde do que nunca.
-Valente- vários meninos, trazidos por Joana, chegam ao
restaurante de Hélio e abraçam o músico.
-Que falta eu estava a sentir de vocês, meus queridos.
-Tu vieste para nos contar histórias?- pergunta uma das
crianças.
-Inúmeras. Qual a que tu queres ouvir primeiro?
-Aquele do lobo que contaste naquele dia, quando foste ao
orfanato. Lembras qual é?
-Sei, sim. Ultimamente estou livrando-me de vários lobos em
pele de cordeiro... Bom, mas eu pedi para trazer vocês todos aqui porque o
Hélio, que é meu amigo e também meu patrão, quis dar-me um presente: uma tarde
aqui no restaurante, onde eu posso comer muitas delícias. Então, eu resolvi que
queria dividir isto com todos vocês.
As crianças gritam de felicidade, comovendo Alessandra e
Hélio. Joana suspeita o motivo pelo qual o protegido está no estabelecimento,
ao invés da igreja.
-Estiveste com a Cissa, Valente?
-Claro, Madre. Não seria justo eu desistir sem uma explicação
decente. Não sou covarde como ela.
-Tu rompeste com tua noiva?- Hélio fica assustado- Por que
isto, Valente, se eram tão apaixonados?
-Ao menos, o meu sentimento por Cissa continua vivo, embora
não devesse cultivá-lo.
-Nossa, então foi definitivo o rompimento mesmo?
-Sem a menor perspectiva de volta. Melhor assim, Hélio. Não
sou sadomasoquista.
-O que te levou a não se casar com a Cissa?
-Hélio, vamos deixar o Valente um pouco sozinho?- sugere
Alessandra- Talvez ele não queira falar do assunto.
-Tudo bem, Alessandra. De qualquer maneira, todos vão ficar
sabendo.
-Não tem nada a ver com o meu sobrinho, ou tem?
-Com o Tato exatamente, não. Mas com o burburinho, em parte
difundindo pela Cissa.
-Será que vocês não têm volta?
-A Cissa que eu quis para mim é outra mulher, não a que
esteve comigo durante todo este tempo. E ela amava um cara que pudesse ser
moldado aos critérios que ela estabelece. Não é justo que eu obrigue minha
noiva a mudar e vice-versa.
-Valente, não promoveste a dissolução do teu relacionamento
com a Cissa por conta... Por conta do que eu disse, não foi?- Joana se refere à
revelação da filiação de Valente.
-Gente, esta conversa está mais incompreensível que a letra
de “Chão de giz”!- raciocina Hélio.
-Antes que vocês dois perguntem, é uma canção brasileira que
o Hélio conheceu um dia desses e adora cantarolar quando está fazendo as
contas- explica Alessandra.
-Bom, esta outra história eu prefiro deixar oculta por ora.
Não me sinto apto ainda a falar disto.
-Então, vamos nos divertir- Hélio rapidamente muda de
assunto- Tu contas as histórias para os teus amigos e eu vou pedir para que
tragam os pratos. E os nossos convidados podem ir às mesas escolher no menu o que vão experimentar, certo?
As crianças voltam a comemorar, e Valente senta-se à mesa com
Joana. Alessandra volta à recepção e as crianças acomodam-se em seus lugares,
mas não sem antes serem todas conduzidas pela madre. As horas vão passando, o
saxofonista conta mais de uma fábula e vai, aos poucos, recuperando-se do
momento em que fingiu ser um homem forte na frente de todos e comporta-se como
o mais humilde dentre os seres humanos, expondo sua ineficiência em perceber
segundas intenções e duplo sentido- ou seja, como a maioria das crianças. Hélio
estava ansioso naquele dia, tanto por querer saber detalhes acerca do
rompimento de seu funcionário e Cissa, quanto por desejar cantarolar “Chão de
giz” em público. Alessandra, sempre atenta, impediu o patrão de realizar a
façanha, já que ele costuma confundir “fotografias recortadas em jornais de
folhas amiúde” por “fotografias recortadas em jornais de folhas, Robin Hood”.
E, finalmente, Fabiano conseguiu tirar todos os adereços postos exclusivamente
para a desastrosa cerimônia. Isolada, Nete está sentada num banco próximo ao
altar. O seu marido finalmente fecha a porta principal, vitrine dos olhares
curiosos durante todo o dia.
-Nunca pensei que este lugar um dia serviria de palco para um
vexame como o de hoje, Fabiano.
-Tampouco eu.
-Coitada daquela moça. Saiu daqui devastada, enquanto o
Valente saiu como se estivesse triunfando, ainda por cima sobre o sofrimento da
Cissa.
-“Coitada da Cissa”? É nisto que tu queres acreditar, depois
de tudo que vimos e ouvimos hoje, Ednete? Podamos aquele gajo.
-Como podes defender um rapaz que humilhou publicamente a própria
noiva depois de rechaçá-la?
-Por culpa tua.
-Minha?
-Não vou tirar a responsabilidade das costas de Cissa, mas o
que fizeste com Valente foi desumano. Achas que eu, como teu marido, não
percebo como tratas as pessoas que entram aqui? Olhas a todos de cima a baixo,
como se fossem a escória humana. Ninguém te é suficiente, Nete.
-O que dizer de um indivíduo que vai contra a própria noiva
para abrigar um promíscuo em seu apartamento, que doa o rim para salvar a vida
do pai de um suposto desconhecido?
-Não entendes o quanto é conveniente acreditar nisto? Queres
fazer dos teus argumentos a verdade absoluta, ser a dona da razão, mas não és,
Ednete. A única cousa que ele queria era adorar ao Senhor, servi-Lo. Tinhas que
ter visto como Valente comportou-se quando eu o destituí da banda da Comportas.
Aguentou tudo calado, sem dizer uma palavra que pudesse defendê-lo.
-Porque não há defesa. O que te garante que, a esta altura,
Valente não esteja com Tato, rindo da situação infame que ele criou?
-Queres mesmo que eu diga-te para o que não há defesa? Para o
teu comportamento, a tua língua, sempre pronta a condenar os outros, tê-los
como pecadores, como se nós não pecássemos também.
-Não me compares àqueles dois. Ainda tenho dignidade,
Fabiano!
-Quem não a tem sou eu, que continuo aguentando teu veneno
atingindo a todos, sem piedade. O não-casamento do Valente não revelou a todos
somente o que se passava no relacionamento entre ele e a Cissa. Revelou também
muito sobre nós dois.
-O que é? Vais separar-se de mim? Pedir-me o divórcio?
-Do que tens medo? De virares a pauta dos protestantes
lisboetas por não honrar ao teu marido e à tua igreja? Não, Ednete. Se nem por
mim, a quem tu alegas ser o homem da tua vida, mudas de postura, mudes pelo
amor de nosso Pai. Quem gosta de mentiras é amante do pai delas.
Fabiano apaga as luzes e espera que a esposa levante do banco
para que eles possam, enfim, voltar para casa. E o “varão valoroso” retorna ao
apartamento depois de um longo período longe de casa, e também depois de três
capítulos em que os leitores estão presos no mesmo dia. Sim, porque o próximo
tem mais um pouco de sofrimento do protagonista. E que graça tem ver um enredo
arrastando-se caso não houvesse suplício do personagem principal? Pois Valente
fecha a porta e joga o paletó branco sobre o sofá, colocando o saxofone num
canto da parede. Alguém bate a porta. Há uma suspeita na mente do rapaz que,
sem titubear, abre a porta.
-Falaste tudo o que querias. Agora chegou a minha vez... “Meu
amor”- Cissa aparece com a maquiagem borrada, tomada pelo ódio nutrido contra o
ex-companheiro.
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