12/11/2019

CONFISSÕES PROLIXAS DE UM EXÍGUO MESOCLÍTICO/ BLOCO DE CENAS 2


Na delegacia, Flávio e Alan conversam sobre o desaparecimento de Igor com Erasmo.
ERASMO: Onde esteve na noite de 20 de dezembro?
ALAN: Jantando um espetinho no “Sal e Brasa”.
ERASMO: Desculpe, eu me confundi com as datas. O que estava fazendo na noite do dia 21?
ALAN: Além de comemorar os seis anos do fim do mundo, fui à calourada na Concha Acústica. Se lhe interessa saber, foi a última vez que vi o Igor.
ERASMO: Também foi nesse dia em que ambos tiveram um desentendimento em sala de aula?
ALAN: Claro, aquele lá não parava a boca! Só queria saber de mostrar o quão era inteligente. Uma falácia.
ERASMO: É, realmente uma tragédia pra quem se dedica aos estudos, como você. Ao voltar pra casa, acessou o Sig@ em seu computador pessoal pra ver a nota?
ALAN: Sim, e vi que tirei um nove, embora não fosse essa a pontuação que gostaria de tirar.
ERASMO: Mentira! (bate na mesa com um taco de beisebol, este com um prego gigante) Você não abriu o Sig@ naquela noite!
FLÁVIO: Pensando bem, quem conseguiria?
ERASMO: O especialista em crimes cibernéticos vasculhou o seu computador e me disse que encontrou um vídeo pornográfico no histórico. Teve até que baixar o volume de tão alto que eram os gemidos.
ALAN: Era só uma cena da novela das nove que estava eu revendo.
Alan lembra que o vídeo pertencia à novela “A força do querer”, e que os gemidos eram decorrentes da personagem Carine sendo estrangulada por Bibi.
ERASMO: E sobre o vídeo do “rabo maravilhoso”; é novela também, seu pervertido?
ALAN: Sobre isso eu abster-me-ei de comentar.
Em outra lembrança, Alan se vê assistindo a um diálogo da trilogia televisiva “Mutantes”.
ERASMO: Também viu todos os seus arquivos de áudio, e descobriu uma tal de “Cavalgada” em MP3. Que espécie de arquivo subversivo é esse ao qual você teve acesso, vagabundo?
ALAN: É do disco de Roberto Carlos lançado em 1977.
ERASMO: Bem sei. “Vou cavalgar por toda noite, por uma estrada colorida”. Colorida por qual razão? O governador mandou pintar o asfalto ou você anda vendo coisas por ter dado um “tapa na pantera”?
ALAN: Que pantera? Cor de rosa?
ERASMO: Cor de rosa será o uniforme que você vai usar na cadeia, mamador de tetas do governo!
ALAN: Ele não é laranja?
ERASMO: Não me interrompa, eu sou daltônico.
ALAN: OK. Já que é para usar expressões populares, mandar-te-ei a real. Eu não tenho nada a ver com o sumiço do Igor.
ERASMO: “Usar meus beijos como açoite e a minha mão mais atrevida”. Além de torturador é assediador também, pilantra?
FLÁVIO: Delegado, meu cliente não tem responsabilidade nenhuma com esse caso.
ERASMO: Você é advogado do Alan?
ALAN: Alan.
FLÁVIO: Empresário, amigo e colega de turma. Posso afirmar com propriedade que Igor não prestava.
ERASMO: No pretérito? “Prestava”? Sua situação está se complicando cada vez mais, Sr. Godoy.
ALAN: Veja...
ERASMO: Prefiro “Istoé”.
ALAN: Eu, de fato, não nutria grande simpatia pelo elemento. Mas o problema restringiu-se à faculdade. Nós fazíamos parte do mesmo grupo, dividimos as partes do trabalho que fizemos, mas Igor fez questão de parecer o único que havia se esforçado pra fazer. Isso que me deu raiva.
ERASMO: E só por isso que o elemento desapareceu?
ALAN: Meu senhor, eu não tenho...
ERASMO: Seu, não! Minha esposa, Milena, pode contestar esse título.
ALAN: Se o Igor desapareceu, a culpa não é minha. Por que o senhor não verifica na faculdade?
ERASMO: Enquanto você e seu amigo estavam gastando os combustíveis dos aviões da Gol, eu fazia o meu trabalho. Quer mesmo me dizer como eu devo proceder?
ALAN: Sim, e de que forma eu relacionar-me-ia com o crime, se é que houve crime? Igor pode ter desaparecido por conta própria, não?
ERASMO: Depois de duas discussões, é uma situação ocasional demais. Sr. Godoy, sabe por que minha mãe me batizou como Erasmo? Porque ela, tal qual a música “Mulher”, acha que tudo é uma...
(fundo musical: “Mulher”- “mentira absurda”)
ALAN: Mas eu não lhe matei! Jamais matar-lhe-ia!
ERASMO: Por acaso alguém aqui falou em matar?
(fundo musical: “Aqueous”)
Flávio e Alan se olham, apavorados com a interpretação da frase de Alan que Erasmo acaba de fazer.
ALAN: Eu exijo dar declarações de agora em diante na presença de um advogado.
ERASMO: Como queira. Mas tudo leva a crer que, inocente ou não, você não vai se calar por muito tempo.
ALAN: Pense o que bem entender. Vamos, Flávio. Eu vou chamar um táxi.
ERASMO: Onde é que o senhor mora mesmo, Sr. Barros?
FLÁVIO: Vila Tamandaré, Delegado.
ERASMO: Caso não se incomode, eu posso dar uma carona. Aceita?
FLÁVIO: O senhor vai largar o expediente só pra me levar pra casa?
ERASMO: Eu moro perto de lá. E depois, já tá na minha hora de voltar pra casa.
FLÁVIO: Mas ainda não são nem dez da manhã.
ERASMO: Faço minha a máxima difundida na internet: “meu trabalho, minhas regras”.
(fundo musical: “Na calada”)
Erasmo dirige a viatura, acompanhado de Flávio, e pensa:
ERASMO: Vou ter que apelar. Se o Alan não abrir a boca, é desse cara que eu vou arrancar alguma coisa. E não vou me importar em fazer tortura psicológica, desde que esse cara fale o que sabe.
O sinal fica vermelho. O carro estaciona antes da faixa de pedestres.
FLÁVIO: Não tem como o senhor botar uma música pra alegrar o ambiente, não, Delegado?
ERASMO: Tá pensando que minha viatura é Uber?
FLÁVIO: Desculpa aí.
ERASMO: Tudo bem, vou quebrar o teu galho (liga o rádio, que começa a tocar “Eu sou Stephany”, reproduzindo mais uma cena do filme “As branquelas”).
Erasmo olha para Flávio, sorridente ao pensar que consegue constrangê-lo.
FLÁVIO: Por que é que você sintonizou nessa rádio? Você sabe que eu não posso ver uma vergonha que eu já quero passar (começa a cantar)! “Em frente do meu portão te esperei, te esperei; não veio. Agora vou te mostrar que não sou mulher, não sou mulher de esperar! Eu sou linda, absoluta, eu sou Stephany. No meu Cross Fox eu vou sair, vou dançar, me divertir. Não vou ficar mais te esperando porque agora eu sou demais”.
Erasmo mostra-se decepcionado por não conseguir extrair nenhuma informação do empresário de Alan.
LETREIRO: Dias depois...
Erasmo caminha pelo Marco Zero e seu celular vibra.
ERASMO: Oi, Milena.
MILENA: Alguma notícia do meu irmão?
ERASMO: Nada ainda. Interroguei mais algumas pessoas que estudam com ele e não tive novidades sobre o caso.
MILENA: Não aguento mais essa angústia. Alguém tem que saber aonde o Igor foi parar. Será que isso tem o dedo do tal de Alan?
ERASMO: Eu não duvido nada, mas por enquanto o que podemos fazer é (Erasmo avista Igor olhando o mar)...
MILENA: O que foi, Erasmo? Erasmo, você ainda tá na linha?
ERASMO: Milena, eu te ligo depois. Tenho um problema pra resolver. Beijo.
Erasmo se aproxima do cunhado, até então desaparecido.
ERASMO: Finalmente.
IGOR: Como é que você me achou aqui?
ERASMO: Não foi muito inteligente da sua parte sumir e correr o risco de ser visto logo aqui. A pergunta é: por quê?
IGOR: Eu sei que eu deixei a minha irmã preocupada com o meu sumiço, mas...
ERASMO: Sabe? Se sabe, por que não apareceu? O que você ganha com essa tramoia toda?
IGOR: Não é óbvio, Erasmo? A prisão do Alan.
ERASMO: Que não vai mais acontecer, pode ter certeza. Ele tá respondendo o processo em liberdade, mas não por muito tempo. Agora mesmo eu vou comunicar que o seu paradeiro foi descoberto.
IGOR: Que paradeiro? O Marco Zero é ponto turístico, meu filho. Assim como eu, qualquer pessoa pode circular aqui. Se eu me misturar com um grupo de turistas fotógrafos, você só vai ter notícias minhas em 2040!
ERASMO: Eu não vou deixar um inocente pagar pelas suas armadilhas. O motivo pelo qual você se desentendeu com ele não me interessa! Sabia que sua irmã chegou a pensar que você tinha morrido?
IGOR: Thalía vai aparecer dançando no Marco Zero pra justificar esse drama todo que você tá fazendo? Eu sumi porque eu quis, e só vou voltar quando eu decidir.
ERASMO: Não se eu colocar meus homens atrás de você. Não se eu te obrigar a comparecer à delegacia, e te intimar por forjar a própria morte.
IGOR: Sinceramente, Erasmo, eu não tomaria essa atitude tão precipitada...
ERASMO: Por que não, vagabundo capivara?
IGOR: Porque se você fizer o mundo descobrir que eu tô bem, a tua mulher vai ter uma surpresa desagradável nos próximos dias.
ERASMO: É isso mesmo, Igor? Você tá ameaçando me matar?
IGOR: Mesmo tendo coragem pra isso, coisa que você acha que eu não tenho, posso te neutralizar com uma solução menos radical. Mas sou capaz de apostar que você vai preferir o assassinato.
ERASMO: Escuta aqui, projeto de gente: se você acha que existe uma mancha na minha trajetória, com a qual você possa me chantagear...
IGOR: O seu compromisso antes de voltar pra casa.
ERASMO: Como é a história?
IGOR: A Milena me contou que desconfia de você, que você volta muito tarde pra casa, até depois do expediente. Minha irmã liga pro seu trabalho e você já tem batido o ponto. Foi, então, que eu te segui. E descobri o que você faz questão de esconder da Milena.
ERASMO: Você enlouqueceu...
IGOR: Ao contrário da minha irmã, que de tão lúcida, vai checar a minha denúncia, exatamente como você faz. A escolha é sua, cunhadinho: ou você deixa o Alan responder o processo pelo meu sumiço ou eu acabo com o seu casamento. Agora eu te pergunto: eu tô louco?
(fundo musical: “Hitman”)

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