20/10/2013

SOBRE PRÓDIGOS E PRODÍGIOS/ CAPÍTULO 20

-Você perdeu a noção, Otaviano? São crianças. Precisam de um prato de comida, eu já pedi à Sônia que providenciasse o quanto antes.
-Pediu à governanta para servir dois meninos de rua?
-A gente não é menino de rua!
-Como não, garoto? Olha pra roupa que vocês estão vestindo!
-Meu pai mandou a gente colocar isso. Ele sujou a roupa e cortou- justifica Betina.
-Isso pouco me interessa.
-Não seja rude! Esses meninos não têm culpa do pai que têm, muito menos do seu humor.
-Sônia!- Otaviano chama.
-Sim, doutor?
-Você preparou um prato de comida pra esses dois?
-Sim, senhor. Já ia chamar os meninos pra eles virem comigo.
-Por favor, em vez de levá-los à mesa, leve-os até o portão da nossa casa. E não se esqueça de dar ordens aos seguranças para que tranquem. Quanto à comida, despeje num prato para os cachorros.
-Otaviano, você está passando dos limites. É só por alguns minutos, depois eu vou levá-los ao Conselho Tutelar.
-Ana Maria, pouco me importa como foi que você os encontrou ou o que pretende fazer com eles.
-Nada que esteja relacionado a mim tem importância pra você. Nunca teve.
-É esse o truque? Agora vai usar esses garotos para serem plateia das suas crises?
-Pode ficar certo de que eles não vai sair daqui.
-Vamos ver se não.
-Moça, a gente não quer causar problema nenhum. Eu e Betina vamos voltar pra casa...
-Imagina, rapaz. Imagina se vocês são capazes de nos trazerem um problema. São insignificantes demais pra isso.
-Eu não admito que você se refira a eles dessa maneira.
-Como é possível que, mesmo com todos esses problemas, você decida bancar a boa samaritana?
-Pelo menos na minha casa, eu tenho liberdade pra fazer o que você não me deixa fazer na sua empresa.
-Cara, relaxa. Os meninos só estão com fome- Yuri provoca o pai, fingindo estar do lado dos meninos.
-Não fale comigo nesse tom! Já não basta ter nos matado de preocupação a madrugada toda?
-De boa, deixa eu te falar: eles comem e vão embora daqui. Se bem que...
-O quê, meu filho?
-O tal conselho, o Tutelar... Eles vão mandar eles de volta pra casa, pro pai que manda eles pra rua. Se for assim, eles não podem ir pro Conselho. Melhor essa galera ficar aqui.
-Você perdeu o juízo? Eu não quero...
-Ótima ideia, Yuri. Eu vou falar com o meu advogado para que ele legalize essa situação.
-Você vai pedir a custódia desses meninos agora? Dois pivetes que você encontrou na rua, sabe-se lá fazendo o quê?
-Eu não vou deixar aquele homem maltratar os dois.
-Só que aquele homem é o pai. Ele tem todo direito de fazer o que quiser.
-Tipo jogar café quente na cara deles ou assinar contrato sem ler?
-Yuri, cala essa boca!
-Responde ao teu filho, Otaviano: é isso que você quer? Que eles sofram coisa pior do que as que Yuri e eu sofremos por sua causa?
-Já entendi... É pra me provocar. Tudo é de propósito.
-Entenda como quiser. Betina e Igor vão ficar aqui. E você pode colocar a gravadora no buraco, já não me importo. Na minha casa, você não manda. Venham, meninos- Yuri e Sônia acompanham os três.
-Esse garoto... Ele me lembra alguém... Não sei quem é, mas eu não gosto nem um pouco dele. Essas crianças não vão ficar na minha casa. Eu já sei o que vou fazer.

XXXXX

Betina e Igor estão almoçando junto com Yuri e Ana Maria.
-E o almoço? Está bom?- pergunta Sônia.
-Muito bom- reponde Betina.
-Gostoso mesmo- Igor confirma- Parece com o almoço que a minha mãe fazia.
-Fazia? Por quê?- Ana Maria fica curiosa- Não faz mais? Saiu de casa?
-Ela foi pro céu- Betina diz, causando um breve silêncio na sala.
-Ontem. Acidente de carro- esclarece Igor.
-Eu sinto muito... Como é que eu posso mandar esses meninos de volta pra um pai daqueles, Sônia?
-Ele sempre foi carinhoso com a gente. Bebia muito, mas gostava da gente. Só que desde hoje de manhã, ele mudou muito. Rasgou a roupa da gente, sujou... Pra gente pedir dinheiro na rua pra comer.
-Vem cá, e esse cara não tem um trampo, não?- Yuri questiona o irmão.
-Trabalha numa oficina com o amigo. Mas não aparece lá todo dia, não. Fica bebendo, enchendo a cara. Tinha muito ciúme da minha mãe.
-Nossa, esse homem parece mais ser padrasto do que pai de vocês dois. Ou então é um pai como o meu.
-Yuri, por favor, não vamos perturbar os meninos com os nossos problemas pessoais.
-Eles chegaram aqui não tem nem quinze minutos e o Otaviano já queria dar a comida deles pros cachorros da segurança. “Por favor” quem fala sou eu, mãe. Eu vou pro meu quarto.
-Você mal tocou na comida, meu filho.
-Sem fome. Depois eu vou pra geladeira beliscar alguma coisa- beija-lhe, mas deixa a mãe preocupada- A gente se vê, galera.
Betina acena para Yuri e continua comendo. Igor percebe que há algo errado.
-Pra onde ele vai?
-Pro quarto, Igor. Ele mesmo falou.
Yuri passa pela sala e sai de casa sem que ninguém perceba.

XXXXX

O delegado atende Jandir em sua sala.
-Sente-se, Jandir. É algo relacionado à sua mulher?
-Não, é sobre Igor e Betina, os meus filhos. O senhor imagina que eu estava passeando com eles, pra ver se eles se distraem um pouco depois da morte da mãe, e... - simula um choro.
-E o quê?
-Uma mulher, muito bem-vestida, viu os dois correndo na rua, e quase os atropelou. Ela ficou indignada, disse que eu tinha soltado os dois e queria chamar a polícia. Disse que iria chamar a polícia porque eu estava sendo displicente com meus meninos e os levou no carro.
-E como era essa mulher?
-Alta, loura, vestida de preto, com salto alto, olhos azuis...
-Seu Jandir, por que uma desconhecida leva os seus filhos e o senhor não faz nada pra impedir?
-Eu ainda gritei, chamei as pessoas que estavam passando e...
O telefone toca.
-Só um momento.
-O senhor vai deixar de me atender? Meus filhos correndo perigo desse jeito?
-É só um minuto, seu Jandir- atende- Alô?
-Por acaso, a polícia está procurando duas crianças de rua?- fala Otaviano, numa ligação feita diretamente de seu quarto.
-Quem está falando?
-Minha identidade será mantida em sigilo. Uma delas não é um garoto, de aproximadamente doze anos, chamado Igor?
-Sim. E a outra criança?
-Bom, a outra eu não sei o nome, mas é uma menininha. Bem menor do que ele. Eu sei que Ana Maria Bittencourt é o nome da mulher que os tirou do pai em plena rua.
-Como posso ter certeza de que essa informação é verdadeira?
-Ela se recusa a devolvê-los. Quem sabe se a polícia, aparecendo na casa dela, a faz devolver os garotos?- desliga.
-Alô? Alô!
-O que houve?
-Achamos suas crianças. Um telefonema anônimo avisou que Ana Maria Bittencourt está em posse de seus dois filhos.
-Ana Maria?
-Sim, vamos até a casa dela agora.

XXXXX

Yuri volta à escola e encontra Porcelana novamente vendendo drogas. Para tirar uma dúvida, ele se aproxima do traficante e o aborda.
-Eu sei quem você é.
-Como é a história?
-Eu sei quem você é.
-Qual é a tua cara? Ficou chapado de vez?
-Foi na minha casa, dizendo que estava precisando de ajuda pra ONG... Ajudar drogados, é? Ou quer fazer os drogados se acabarem de vez?
Com uma navalha, Porcelana agarra o adolescente e o leva para o fim daquela rua.
-Você não vai abrir a boca pra ninguém. Senão eu acabo com você e com a sua família. Você pensa que eu estou brincando, moleque? Se você me denunciar, contar alguma coisa pra polícia, você e toda aquela corja morrem, entendeu? Vem comigo!
-Onde é que você vai me levar?
-Cala essa boca e vem comigo- puxa-lhe, apontando o canivete para o pescoço.

XXXXX

Sônia vai atender a porta. Otaviano e Ana Maria, junto com os meninos, também conferem de quem se trata.
-Ana Maria Bittencourt?
-Sou eu, quem é o senhor?
-Sou da polícia. Recebi uma denúncia anônima de que a senhora estava em poder de um adolescente e uma menina.
-É verdade. Eu os trouxe pra casa para cuidar deles.
-Mentira!- Jandir entra na casa.
-Coimo o senhor se atreve a entrar desse jeito na minha casa?
-Eu estou com a polícia, minha senhora. Agora a senhora vai ter que devolver os meus dois filhos.
-Pra quê? Pro senhor explorá-los? Pra mandar eles trabalharem pra sustentar o seu vício, e depois ameaçá-los de uma surra, como queria fazer hoje de manhã?
-Calma, senhor delegado- Otaviano tenta disfarçar- Só pode estar havendo algum engano. Minha mulher seria incapaz de...
-Foi você? Você ligou pra polícia e disse que os meninos estavam aqui, Otaviano?
-Otaviano? Você é o Otaviano que morava na comunidade da Vila Velarde há uns anos?- Jandir começa a se lembrar do antigo vizinho.
-De onde você me conhece?
-Eu sou o pai dos meninos, e eles são os filhos da Rosane. Não é possível que você não se lembre dela- provoca o mecânico.
-Rosane... – Otaviano lembra do acidente no qual havia se envolvido no dia anterior.
-O senhor conheceu a minha mãe?- Igor pergunta, e agora ele presume que há um motivo maior para afastá-lo de sua casa, junto com Betina.

-Esse menino é meu filho. O filho da Rosane- conclui.

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