21/10/2013

SOBRE PRÓDIGOS E PRODÍGIOS/ CAPÍTULO 21



-Não... Não, eu não me lembro de conhecer nenhuma mulher chamada Rosane.
-Como não, Otaviano?- Ana Maria o surpreende- Eu me lembro muito bem da Rosane- Ela apareceu no dia do nosso casamento, na sacristia. Foi falar com você. E estava grávida, devia ser do Igor.
-Mas... Onde está a Rosane? Por que ela não veio buscar os filhos dela?
-Rosane morreu ontem, num acidente de carro- explica Jandir.
-Coitada. Era uma boa pessoa. Uma mulher admirável. Lutava muito pela mãe, fazia tudo dentro de casa, se virava sozinha...
-Sozinha, não. Ela teve um marido que ficou todo o tempo do lado, cuidando do fi... Dos dois filhos.
-Claro. Eu peço que me perdoe, Jandir.
-Eu tenho coisa demais pra perdoar, não acha? Minha mulher está no IML agora, eu não pude enterrar porque os meus filhos foram tirados de mim. Tirados pela sua mulher!
-É mentira- Ana Maria se vira para o delegado- um homem que coloca os filhos pra arranjar dinheiro para ele beber não pode ter nenhum tipo sentimento pela falecida esposa. Delegado, nem Igor nem Betina puderam chorar a morte da própria mãe porque esse tal de Jandir já tratou de torná-los meninos de rua. É esse o tipo de pai que o senhor defende, senhor delegado? Um homem capaz de cometer uma atrocidade a uma criança e a um adolescente, que são sangue do seu sangue?
-Dona Ana Maria, eu não sou nenhum juiz para decidir com quem os meninos vão ficar. Não cabe a mim decidir isso. Mas eu estou aqui para que a lei seja cumprida. Jandir é o pai desses garotos, e eles têm que vir comigo para casa.
-Não vou voltar pra casa.
-Igor, meu filho...
-Não me chama de filho! Pode parar de mentir pro delegado, pai. Se dependesse do senhor, a moça nunca ia ajudar a gente, a gente ia desmaiar de fome e o senhor ia pegar o dinheiro pra ir pro bar. Se o pessoal da polícia não vai perguntar nada, eu falo: ele queria explorar a gente.
-Seu Jandir, sua situação está se complicando. O senhor forçou seus filhos a trabalhar na rua? O que esse garoto está dizendo é verdade?
-É. É isso mesmo. Eu obriguei os dois a trabalhar na rua. Nós não temos nada dentro de casa e eu achei que...
-Seria melhor que os dois trouxessem comida pra dentro de casa?
-Minha irmã é pequena, seu delegado, mas ela não mente. Pode perguntar que ela vai responder a mesma coisa que eu.
-Eu devia colocar o senhor atrás das grades por exploração de menores. Mas em respeito à sua dor e à dor de seus filhos, eu vou relevar isso. Quanto à senhora, dona Ana Maria, eu peço que entre imediatamente em contato com o Conselho Tutelar.
-Mas o senhor não pode deixar os meus filhos na mão dessa louca!
-E onde eles vão parar? Nas suas? Seu Jandir, não me faça rir. Vamos embora daqui.
-Eu não vou deixar os meus filhos. Não me impeça, por favor...
-O senhor vai realmente se queixar novamente? Essa mulher está salvando essas crianças de um pai bêbado, que é capaz de tudo por dinheiro.
-Não vai me proibir de levar os meus filhos pra casa de jeito nenhum!
-Meça as suas palavras, se não quiser ser preso por desacato à autoridade. O senhor sabe que tenho mais policiais lá fora e a família da Senhora Bittencourt para testemunhar contra qualquer ofensa que me fizer! Vamos embora daqui agora!
-Eu vou comunicar ao Conselho Tutelar, não se preocupe.
-Até logo. Boa tarde a todos.
-O senhor não vai nem deixar eu me despedir dos meus meninos?
-Seu Jandir, saia comigo de uma vez por todas- contrariado, o mecânico obedece ao delegado.
-Sônia?
-Sim, Ana Maria?
-Leva a Betina e o Igor pra tomarem um banho. Eu preciso ter uma conversa com o Otaviano.
-Menina...
-Por favor, Sônia.
-Está bem... Vamos, meninos.
-Até mesmo dois garotos são capazes de te tirar do sério? O que pensa que vai conseguir com isso? Se for me afastar de você, é bom tomar cuidado. Não é nada bom pra sociedade saber que somos um casal em crise, que vive se ameaçando, que mina a própria relação.
-Eu não quero esses pivetes na minha casa! Já deixei isso bem claro. Ou será que sua intenção é tentar corrigi-los, já que não consegue fazer isso com o nosso filho?
-Nunca mais se refira ao Yuri como exemplo de péssima educação. Ele não escolheu os pais que tem, e se tivesse esse poder, certamente não escolheria você como pai. Se você acredita que se esconder atrás de um cartão de crédito é ser afetuoso, vá pro inferno. Não me ensine como é ser mãe. Qualquer ser humano que tenha um pingo de amor sabe cuidar de um filho, como eu sei do meu- vai para a cozinha, deixando Otaviano transtornado.

XXXXX

Porcelana e Yuri entram numa casa velha, cheia de garotos usuários de drogas.
-Sai todo mundo daqui!
-Porcelana, espera aí! A gente... – um deles ainda tenta argumentar, até que o canivete seja apontado para todos.
-Já mandei sair! Anda logo! Fora daqui!
Assustados, todos obedecem à temida pessoa. Yuri não entende nada sobre o lugar está.
-O que você vai fazer comigo?
-Senta aí!- joga-lhe contra uma cadeira- Senta aí e me escuta- tira o capuz que está usando, revelando que é Lana.
-Vai falar o quê, marginal? Que vende droga? Que é mentira essa historinha de ONG, de menor que vive fumando... Eu já ouvi meu pai falando uma vez que vocês têm o apoio da gravadora. Vai dizer o quê agora? Que o teu marido também é traficante, que nem você?
-Eu mandei você ficar quieto pra me escutar- esbofeteia o adolescente- Você vai ficar de boca fechada sobre isso. Vai ser melhor pra você!
-Quem disse que eu vou calar a minha boca?
-O meu marido, Frederico, não tem nada a ver com isso!
-Nada... Vai ver ele nem seu marido é. Se duvidar, até teu casamento é de fachada.
-Como o dos seus pais?
-Olha aqui, sua...
-Se ofendeu, querido? Eu ainda nem comecei! O meu marido não pode saber que eu faço isso.
-E como é que você vai calar a minha boca?
-Você já não está fazendo isso se drogando, infeliz? Sua família louca te procurando, e você fumando em alguma esquina escura, durante uma madrugada inteira, causando desespero em todos?
-Mentira!
-Pode até ser que você não tenha ingerido nada ontem, mas hoje você comprou. Das minhas mãos. E não veio atrás de mim só pra me desmascarar. Veio porque não se aguentou de vontade de fumar de novo. Você não sabe da minha vida, não sabe o que eu tive que passar pra fazer isso hoje.
-Olha aqui, você não me enrola. Você sempre teve dinheiro. Como o seu marido. Eu vi ontem lá em casa.
-Nem sempre foi assim, moleque. Muito mais nova do que você, eu assaltava as pessoas pra conseguir dinheiro pra fumar. Nem comer eu queria. O Frederico foi quem quis me tirar dessa vida.
-E conseguiu?
-Nunca. Nem acho que ele vai conseguir. O meu vício é mais forte do que eu.
-Eu não acredito em você. Pra mim, você está mentindo.
-Pois então, me escuta, porque eu só vou falar uma vez: contando essa estória pra alguém, é a sua mãe que você perde. Eu não vou fazer nada com o Dr. Otaviano. Já deu pra ver que se tocar num fio de cabelo dele, você não se importa. Você é um cara bem transparente, Yuri. Não esconde o nojo que sente do cara que te botou no mundo, que te sustenta...
-Mas que não me deu amor.
-Agora sai daqui. Pensa bem no que vai fazer. A cada vez que você pensar em chamar a polícia, é um minuto de vida a menos dela. Cuidado, Yuri- o garoto sai da casa- Eu vou calar a boca desse moleque de algum jeito.

XXXXX

Sônia espera no quarto com Betina que Igor saia do banho. O garoto vem, enrolado numa toalha branca.
-Pronto, agora é sua vez de ir pro banho. Mas não demora pra não gripar, viu?- a garota vai ao banheiro.
-Dona Sônia, eu não tenho roupa. Como é que eu faço?
-A Ana Maria separou umas roupas que o Yuri não usa mais. Pode vestir.
-Ele vai ficar bolado com isso?
-De jeito nenhum, menino. Pode vestir.
-Então, tudo bem- Igor fica de costas e revela uma cicatriz em suas costas.
-O que é isso nas suas costas, Igor?
-Marca de nascença. Feia demais.
-Não foi nenhuma queda? Não é cicatriz?
-Que nada. Eu jogava muito bola com os meninos da minha rua, o povo até pensava que fosse algum tombo. Mas tenho isso desde que eu nasci. Minha mãe disse que meu avô tinha uma igual.
-Bem, eu... Eu vou sair do quarto pra você se trocar.
-Obrigado, dona Sônia.
A governanta fica apavorada e vai até o jardim, onde senta num banco.
-Mas é a mesma marca do Yuri...
E se lembra de um diálogo tido entre Otaviano e Ana Maria, por consequência da aparição de Jandir na mansão, acompanhado da polícia.

-Não... Não, eu não me lembro de conhecer nenhuma mulher chamada Rosane.
-Como não, Otaviano? Eu me lembro muito bem da Rosane- Ela apareceu no dia do nosso casamento, na sacristia. Foi falar com você. E estava grávida, devia ser do Igor.

-Não é possível. Só pode ser uma coincidência. Mas o Dr. Otaviano já conhecia os pais do Igor. Como ele pode ter a mesma marca das costas do Yuri?

XXXXX

Frederico e Ana Maria estão na ONG, vendo alguns adolescentes jogarem bola.
-Muito obrigada por você ter procurado o meu filho.
-Eu entendi o seu desespero. Realmente, foi um momento de muita tensão para todos. Saber de tudo daquela maneira.
-Eu queria agradecer à sua esposa também. Na ocasião, eu sequer lembrei de perguntar o nome...
-Lana. Mas ela não está. Provavelmente deve estar tentando conseguir alguém que nos ajude. Como tentamos fazer ontem à noite, quando fomos à sua casa.
-Deve ser difícil conseguir alguém que olhe por esses meninos. Da mesma forma, é difícil esquecer toda a decepção que eu senti ontem.
-Me perdoe a indiscrição, mas... O que me pareceu foi que a relação de vocês vinha se desgastando.
-O Otaviano foi um homem maravilhoso. Mas isso foi nos primeiros anos do nosso casamento. Depois, foi tudo se complicando. Tão lentamente... Tão naturalmente que, quando eu dei por mim, nós já estávamos enfrentando uma crise familiar.
-Quem sabe se o seu casamento tem solução? Nada é impossível, se o Otaviano tiver sido realmente destinado pra você.
-Nesse momento, eu queria muito crer nisso.
-A única coisa que não tem remédio, Ana Maria, é a morte. Enquanto você tiver seu marido e seu filho do lado, deve lutar por uma família que se una.
-Bonito o seu modo de ver as coisas, Frederico. Sua fé é impressionante, comovente. Daria tudo nesse momento pra ter uma perspectiva tão otimista quanto a sua.
-Eu lido com jovens que podem se recuperar do vício em drogas. Mas nem todos conseguem sair. Alguns nem querem se livrar delas, essa que é a verdade. Mas o que eu posso fazer? Só o que a vida me permite fazer.
-Não acho que eu possa fazer alguma coisa pela minha família. Talvez eu nem queira. Minha preocupação não é mais o Otaviano, e sim o Yuri. Eu não sei até onde essa falta de dinheiro pode influenciar o comportamento dele.  Mas eu vim falar de outro assunto.
-Do que se trata?
-Eu queria saber se você tem algum contato do Conselho Tutelar.
-Sim, claro. Mas você pode adiantar sobre o assunto?
-Dois garotos. Eu os encontrei na rua, com fome, sendo explorados pelo pai como se fossem meninos de rua.
-Mas como tem gente capaz disso, Ana Maria?
-E você não sabe do pior: esse homem veio com a polícia hoje, na minha porta, exigir as duas crianças. Por sorte, o delegado pediu pra que eu procurasse o Conselho Tutelar e esclarecesse a situação. Por enquanto, eles estão em minha casa. Eu os deixei sob os cuidados da Sônia, a minha governanta. Será que você pode me ajudar?
-Claro que eu posso, Ana Maria. Eu vou procurar uma amiga que trabalha lá e explicar o seu caso.
-Desde hoje eu me pergunto por que esses dois foram aparecer na minha casa logo hoje. Por que tive tanta intenção de trazê-los em meio a essa batalha que virou a minha vida quando o Otaviano revelou a verdade?
-Eu não posso resolver os seus problemas. Mas tem uma coisa que pode resolvê-los: a fé. Não desista desses meninos, Ana Maria. Confie que vai dar tudo certo. Se eles apareceram agora, é porque talvez a sua prova esteja perto do fim.
O sorriso reconfortado de Ana Maria deixa Frederico mais tranquilo. Ele não nota que a troca de olhares deixa Lana- que chega sem ser percebida- enciumada.

XXXXX

Jandir está novamente bebendo, em casa, quando alguém bate a sua porta. Assustado, ele pensa que se trata da polícia novamente, mas dá um suspiro e decide enfrentar a situação permanecendo na mentira, uma vez que está convencido de que é o delegado. Mas fica alterado quando vê de quem se trata.
-O que é que você está fazendo aqui?
-Não vai me convidar pra entrar, Jandir?
-Só quando a sua mulher devolver os meus filhos- Jandir é empurrado por Otaviano, que logo entra na casa.
-Mas as coisas estão bem diferentes por aqui. No meu tempo, isso daqui não tinha nem primeiro andar. Você fez um bom trabalho.
-Principalmente dando conta de uma mulher e dois filhos. Você pelo visto não teve a mesma sorte que eu.
-Se engana, Jandir. Eu tenho dinheiro. Pra mim, é sinônimo de felicidade.
-Um dia pode acabar. Como acabou a minha família. Assim, de repente.
-Com o tempo, você pode recuperar seus filhos. E aí, meu querido, você pode reconstruir sua vida.
-Fala de uma vez o que você quer e se manda daqui.
-Eu quero que você faça papel de vítima quando for procurado pelo Conselho Tutelar. Todo mundo tem que acreditar que você é a vítima da situação, e não a Ana Maria. Você precisa manter os meninos afastados da minha família.
-Por que está me falando isso? Qual o seu interesse nisso?
-Jandir, eu não vou tolerar que meninos venham morar na minha casa. Eu não estou disposto a fazer nenhum tipo de caridade. Evite que isso aconteça.
-Sua mulher não pensou em separar os filhos de um pai... Ou será que, no fundo, o que ela queria era trazer o filho do grande Otaviano Melo Passos pra junto dele?
-Do que você está falando?
-Não minta. Eu sei que você percebeu na hora em que eu falei da Rosane! Igor é seu filho! O filho que você abandonou há doze anos pra casar com a Ana Maria! É por isso que você quer tanto tirar ele de lá, não é?

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