24/11/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 25


Havia um costume quase religioso praticado por Olívia, desde que ela viajou para investir em sua pós-graduação: entrar em contato com Beatriz, nem que fosse ao menos uma vez ao dia. É verdade que as irmãs não eram tão próximas, mas a distância contribuiu para que uma sentisse a falta da outra. Dezoito horas após os últimos acontecimentos, aquela que ficou em sua terra natal abre o notebook para tentar uma videochamada. Sem sucesso em sua empreitada, ela comenta sobre o fato com o amigo, Michel, estando no apartamento do rapaz.
-Três vezes. Foram três vezes, e a Olívia não atende.
-Ligaste para o celular da tua irmã?
-E achas que não tentei? Mas está fora da área de cobertura. Essa falta de notícias está deixando-me um pouco preocupada.
-Não leves tudo ao extremo, estás parecendo até a própria Olívia. Na certa, ela deve estar ocupada elaborando a tese de mestrado, ou em uma reunião com o seu orientador.
-Deve ser...
-Mais tarde, ela ligará e vocês duas conversarão.
-Agora, digas: e a Cissa, hein? Rompeu com o tal varão valoroso?
-Claro que não- abatida, a jovem sai do quarto e vem até a sala- Deixes de dizer tolices.
-Até que enfim a libélula resolveu sair do casulo. Era eu capaz de jurar que tinhas tomado uma caixa inteira de Lexotan!- observa Michel, enquanto prepara uma playlist para tocar numa boate lisboeta à noite.
-Tua anedota eu dispenso, está bem? Passei a noite inteira sem dormir- Cissa senta em seu sofá.
-Amiga, como tu estás abatida... Não imaginei que o Valente te deixaria a este ponto.
-Mas não vai ser por muito tempo, não, Beatriz. Durante este tempo, eu pensei bem no que vou fazer.
-Já sei: dispensar o insuportável do saxofonista? Olhes, querida, se for isto, eu te dou a maior força. Podemos curar a tua fossa passando uns dias no SPA, programando uma viagem para encontrar a Olívia... Melhor: vinte dias em Ibiza, que tal?
-Achas que estou mesmo com cabeça para Ibiza, Beatriz?- Cissa levanta e põe as mãos na cintura- A minha felicidade está aqui e eu vou desfrutar dela, nem que para isto eu tenha que passar por cima dos princípios do Valente.
-Minha irmã, minha irmã... O que é que tu pretendes com esta conversa?
-Se o meu amor não é suficiente para que o meu noivo antecipe o casamento, a solução é outra: apelar para o peso na consciência.
-Do Valente?- Beatriz ri do plano da amiga- Aquele ali é evangélico, mas sonha em ser canonizado pelo Papa, Clarissa! E do jeito que ele se mantém imaculado, olhes que ele será capaz de conseguir...
-E quem disse que o Valente não tem uma mancha que seja na sua vida íntima?
-Calma... O que é que tu sabes, Cissa? Porque até onde tu contaste para mim e para a Beatriz, o Valente ainda é virgem.
-Por enquanto, sim. Mas não será assim para todo o sempre, Michel.
-Claro que não. Mesmo porque ele insiste naquela baboseira do sexo depois do casamento.
-Talvez ele faça antes.
-Não estás tentando dizer que...
-Exatamente. Eu vou levar o Valente para a cama antes do casamento!
-Cissa, trates de raciocinar. Tudo bem que sexo é bom, mas o Valente não tem o prazer como foco. Achas mesmo que ele transará contigo sem sentir culpa alguma, minha amiga?
-O que estou oferecendo é uma faca de dois gumes, e que certamente vai beneficiar-me. Se o Valente e eu transarmos, ele pode sentir-se extremamente culpado.
-Daí, ele sequer cogitará olhar para ti novamente.
-Não, Beatriz. Com o remorso de não ter resistido a mim, ele quererá reparar o mal que a mim fez. Portanto, falará com o Pastor Fabiano e pedirá que o nosso enlace aconteça o quanto antes, por medo de que descubram que nós nos entregamos.
-Tudo bem, mas... E se ele não quiser? Hum?- Michel indaga a irmã- Conheces tão pouco o Valente para sequer cogitar a possibilidade de que ele pode rejeitar-te para não chegar ao casamento sem a aclamada virgindade?
-Achas que não pensei nisto, Michel? Exatamente por conta desta hipótese é que a minha ideia é uma verdadeira faca de dois gumes. Valente tem vinte e dois anos de idade, é ultraconservador em pleno dois mil e vinte, defende com afinco os valores nos quais acredita, principalmente se estiverem relacionados à igreja.  Duvido muito que ele negue prazer à mulher que será sua em qualquer que seja a circunstância. Mas, considerando esta possibilidade e que o nosso compromisso está de pé, nada mais justo para ele do que adiantar ao máximo, para desfrutar de tudo de bom que o espera: eu mesma.
-Cissa, não achas que é esforço demais para um evangélico insuportável que pouco se lixa para os teus desejos sexuais?
-Vejas bem como falas do meu homem, Beatriz.
-Ah, desculpa-me, Cissa, mas terei que concordar com ela. O Valente pode muito bem perceber que teu interesse por ele é só sexo e desistir do casamento.
-Como vejo, vocês não conhecem o Valente tão bem como eu. Eu tenho certeza do desejo que ele sente por mim.
-O que é normal em qualquer relacionamento. Também entendo a tua vontade de ter a primeira vez com ele, mas... É esforço demais para pouco resultado. O que tu pensas que vais ganhar transando com um gajo e fazendo com ele remoa-se de culpa, Clarissa?
-A expulsão do Otávio daquele apartamento.
-Minha irmã, deixes de ser tola. O Valente e o Tato são amigos, e nada mais do que isto.
-Eu sei, mas o resto do mundo não sabe. E eu não vou deixar que falem mal do meu noivo por conta da presença infecta daquele homem na casa do Valente.
-Os comentários que devem fazer a respeito do teu noivo são incentivados por tu mesma, Cissa. Se não desses tanta importância ao Tato, se pensasses que ele está morando com o Valente provisoriamente, não haveria tantas discussões e tampouco mexericos a respeito da sexualidade do teu noivo.
-Escutes o teu irmão. Se o Valente não transou contigo até agora, por que faria isto sem casar?
-Mas eu vou atiçá-lo até ele não poder resistir mais.
-A virgindade do Valente é uma escolha que ele fez.
-Só que ele escolheu esperar por mim também, Beatriz, e eu não acho nada justo. Se tenho a certeza de que vamos nos casar e ficar juntos para toda a vida, eu não vejo motivos para não fazermos sexo. E depois, eu não consigo entender-te. Não é justamente a senhorita que acha retrógrada esta castidade, até para um homem?
-Cissa, não é o Valente que está em discussão, e sim o futuro do teu romance com ele. O que pensas em fazer? Aparecer na casa do rapaz e dizer “façamos amor” como se ele fosse concordar sem questionamentos?
-Se houver questionamentos, é sinal claro de que amor não há, pelo menos não da sua parte. Até posso esperar pelo casamento, mas só se ele adiantar a cerimônia falando com o Fabiano.
-Pareces estar ficando amalucada! Valente está contigo há quatro anos, por que é que tu não podes esperar mais um pouco, se aguentaste esta situação até agora?
-Quanto, Michel? Até a honra do meu noivo ser suja por aquele sujeito mequetrefe que está instalado na sua casa?
-Avalies bem este plano teu, amiga. Vamos supor que tu e Valente chegueis às vias de fato. Só que, por culpa ou por qualquer outro motivo, ele desista de ti para sempre. O que pretendes? Jogar aos quatro ventos que foi para a cama com ele por mera vingança? Cissa, se somente a presença do Tato naquele apartamento incomoda muita gente, fornicação incomoda muito mais.
-Uau! Falou agora a legítima irmã da Olívia. Por um momento, pensei que ela não tivesse ido viajar.
-Surpresa por quê? Os valores que ela segue são os mesmos que os teus, ou não? Tu insististe em levar esta relação adiante, mesmo quando Olívia e eu aconselhamos a não passares do convívio social. Agora, queres levá-lo para a cama pressionado?
-Pensam que meu interesse é só sexual, mas não é. Meu sonho é de casar-me com ele.
-Porque a noite de núpcias está incluída no casamento, Clarissa! O Valente conhece-te como a palma da mão. Quando ele perceber que não estás mais com ele por mera curiosidade e sim por uma obsessão desenfreada, ele te largará. Minha irmã, no dia em que ele perceber que não há mais amor de tua parte, ele acaba este compromisso!
-E quem és mesmo tu para falares de amor? O homem que finge diversas conquistas femininas para que ninguém saiba que ele é um enrustido? Ah, já sei, é o mesmo que dispensou o amante de tanto tempo e que causou um caos completo na minha vida! Foste tu que trouxeste aquela praga para as nossas vidas, e só cabe a mim limpar o rastro que vocês deixaram no caminho!
-Agora vais apelar para a agressividade contra o teu próprio irmão, Clarissa? Já não basta o quanto tu falas mal da decisão do Valente para a tal de Ednete, que pensa e espalha horrores a respeito do teu noivo?
-Para ver se assim, ele se sente pressionado de uma vez por todas e casa comigo!
-O que tu esperas com toda esta maledicência que formaste ao redor do teu noivo? Que ele se sinta tão constrangido a ponto de deixar a igreja, já que todos agora têm o nome do Valente na boca para falar mal a seu respeito?- Michel tenta trazer a jovem a si, sem êxito.
-Pouco estou eu importando-me com a igreja. Aliás, eu não me importo com mais nada. A única coisa que sei é que Valente será meu em todos os sentidos, e eu estou disposta a passar por cima de quem atravessar o meu caminho.
Após horas inconsciente, Olívia finalmente desperta, mas estão seus braços e pernas atados a uma cadeira de ferro, localizada em um galpão abandonado e cheio de verminoses. A mestranda olha ao redor para ver se há alguém por perto, até que sua visão turva mostra um homem se aproximando calmamente.
-Quem está aí?
-Calma, Olívia. Não está me reconhecendo mais?
-Nicolas?
-Acho que exagerei na dose do sonífero, não é? Pensei que nunca mais você iria acordar... Se bem que seria uma ótima ideia...
-O que foi que fizeste comigo?
-Trouxe você para um lugar agradável, aconchegante e, principalmente, sem ninguém pra incomodar.
-Foste tu que me trouxeste até aqui?
-Puxa, até que enfim você entendeu. Pensei que teria que desenhar, e eu não sou tão bom com artes visuais... Sente fome, meu amor?- retira da sacola que está carregando um prato descartável, com um almoço típico da região- Trouxe pra você.
-Nicolas, tira-me daqui.
-Mas já? Nós nem começamos a nos divertir... Que coisa chata, Olívia. Tive que esperar dezoito horas pra que você acordasse e já quer ir embora? Puxa...
-O que vais fazer comigo? Abusar de mim? Foi para isto que planejaste meu rapto?
-Se eu estivesse mesmo apaixonado por você, como te fiz pensar, até poderia te mostrar o que é um homem de verdade. Mas nem pra despertar desejo em mim você serve.
-Então, o que é que tu queres comigo?- grita, até que Nicolas joga o prato em seu rosto.
-Pensa que gritando vão te escutar, Olívia? Este lugar aqui só eu conheço. E quem conheceu além de mim não ficou vivo pra ensinar o caminho a ninguém. Estamos longe de tudo e de todos, meu amor...
-Não chegues perto de mim. Por que estás fazendo isto?
-Adoro me divertir, Olívia. E chegou a sua vez de se divertir comigo. Pensa que eu vou te estuprar? Não. Eu já me sinto realizado pela tua cara de pânico, de cogitar a ideia de que eu te trouxe num lugar deserto pra te matar. Mas é assim... Satisfeito mesmo, eu não estou... Só vou me dar por completo quando...
-Quando o quê? Fales, infeliz!
-Pensa bem, porque é uma charada difícil, Olívia. Eu não quero transar com você à força, ainda não encostei um dedo em você... O que será que eu posso ter e você ainda não me deu? Quem sabe, uma confissão?
-Tu não me sequestraste para que eu confessasse alguma cousa. Nunca te fiz nada, Nicolas. Se for verdade, o que eu posso falar para que tu me deixes sair daqui com vida?
-Dê tempo ao tempo, gatinha. Homem não gosta de mulher ansiosa, não.
-Só que tu não és um homem. És um monstro.
-Melhor assim. Com ódio mútuo, o nosso jogo fica mais excitante ainda- Nicolas sai calmamente do galpão.
-Onde vais? Não podes deixar-me aqui sozinha! Voltes aqui, Nicolas.
-Posso, sim. Por acaso está com medo dos ratos do galpão? Fica quietinha, assim eles não mordem você- deixa o galpão definitivamente.
-Nicolas, não me deixes aqui sozinha! Tira-me daqui! Socorro! Alguém me ajuda, pelo amor de Deus! Meu Deus, tira-me daqui! Eu não quero morrer, meu Deus, não quero...
E na manhã seguinte Kleber recebe a visita de seu irmão, Hélio, na clínica em que está internado.
-Quanto tempo, hein, meu querido?
-Parece que passei uma vida inteira sem ver o teu rosto.
-O importante é que agora tudo de ruim passou. Como te sentes?
-Melhor... Quer dizer, ainda agoniado. Posso dizer-te que estou assim desde a hora em que despertei após a operação.
-O que aconteceu para tu ficares deste jeito, Kleber? Nada te tira do eixo.
-Hélio, mesmo que tu tenhas feito esforço para que eu não escutasse cousa alguma, eu ouvi aquilo que confidenciaste à Dora.
-Que parte da confidência em específico, Kleber?
-Toda ela.
-Ah, meu Deus.
-Portanto, tu vais prestar-me um favor.
-O que tu queres, meu irmão?
-Discretamente, entres em contato com o doador misterioso.

17/11/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 24


-Não vou permitir que tu nos exponhas desta maneira, em um hospital!
-Que se dane o lugar onde estamos! Eu quero ver qual é o nível mais baixo que vais atingir, seu mentiroso!
-Clarissa, calma! Não estás vendo que o Valente está convalescente?
-Por que será, hein, Hélio? Porque salvou a vida do teu irmão. Mas não foi nenhum ato de altruísmo, não... Foi por ele, pelo Otávio.
-Valente, como foi que tiveste coragem de fazer isto com a tua noiva?- Fabiano passa a recriminá-lo.
-Colocaste a tua vida em risco para poupar a vida do pai de um desviado?- Nete chega à mesma conclusão que os demais.
-Eu não fiz nada por conta do Tato, eu nem mesmo sabia que o seu pai estava internado aqui. Ele não me contou nada. Aliás, eu não sei nem do paradeiro do Tato!
-Ah, por favor! Acreditas que enganarás a quem, Valente? Dirás que o fato de estarem Kleber e tu na mesma clínica não passa de coincidência?
-Meu amor, eu não tenho motivos para mentir, muito menos para ti.
-Mas é isto que estás fazendo, e descaradamente.
-Clarissa, o Valente deve estar exausto da operação. Acho melhor que tu converses com ele em outro momento...
-Que operação, Hélio? Eu levei pontos porque fui ferido no meio da rua, quando saía do orfanato! Cissa, fales com a Madre Joana, ela pode confirmar que eu estive lá hoje...
-Para quê? Aquela mulher protege a ti como se fosse tua própria mãe. Não duvido que deves tê-la deixado de sobreaviso para confirmar a trama que tu mesmo inventaste!
-Pelo amor de Deus, prestes atenção na loucura que estás dizendo-me, Clarissa! Agora afirmarás que a madre mente? A madre?
-Tanto ela como tu!
-Gente, por favor, esta discussão não vai levar-nos a nenhum lugar- Fabiano procura acalmar Cissa, sem sucesso.
-Não tires a razão de Clarissa, Fabiano. Estão muito nítidos os interesses escusos que este gajo tem ao submeter-se a um transplante. Bem que eu desconfiava que o tal Tato era um lobo debaixo da pele do cordeiro, e eu dizia: “cuidado, vai te devorar”!- Nete faz menção a uma composição musical angolana de sucesso.
-Irmã, Portugal é um país de primeiro mundo. Óleo de peroba não é tão caro assim para que tu passes em tua imensa cara de pau! A senhora jamais falou comigo a respeito do Tato, nem mesmo colocou-se contra o fato de abrigá-lo em minha própria casa!
-Agora revelaste a tua verdadeira personalidade...
-Nete, basta!- Fabiano tenta impedir a esposa de prosseguir discutindo.
-Com o que te chocas? A senhora é declaradamente intolerante há tempos e ninguém diz cousa alguma!
-Valente!- Hélio fica surpreso com o comentário.
-É isto mesmo, Hélio. Cansei de ter que ficar calado mediante as insinuações que vocês andam fazendo! Por que não perguntam abertamente quem eu sou, em vez de ficarem especulando?
-Especulações estas pelas quais tu és o único responsável. Será que tu não vês que a nossa vida começou a desandar quando puseste aquele pilantra na casa que vai ser nossa?
-Alto lá, eu não admito que tu fales do meu sobrinho desta maneira!
-Tu não tens nada a admitir, Hélio. Se fosse para tomares alguma atitude, terias tirado aquele verme da casa do Valente! Sabem de uma cousa? Eu não vou ficar aqui, protagonizando esta discussão que não vai mais a lugar nenhum, como bem disse o Pastor Fabiano. Estou farta de tuas desculpas, e agora também das tuas mentiras!
-Clarissa, se saíres daqui, eu não vou procurar-te!
-Agora vais apelar para a chantagem emocional? Queres que ninguém desconfie da tua falta de pudores, do caso que estás tendo com aquele parasita?
-Sempre estou tentando justificar-me do que faço e do que deixo de fazer, para agora ter que aturar as tuas acusações? Acredites naquilo que te convém, Clarissa. O esforço que eu poderia fazer para convencer-te de alguma cousa não será feito. Prefiro eximir-me daquilo que pensas a meu respeito.
-Quanta teatralidade! Pretendes assumir o papel de vítima, mas a única vítima desta história nojenta sou eu, Valente! Nunca vou perdoar-te pelo que fizeste comigo...
Abalada, a jovem sai correndo da clínica, sendo seguida por Nete e Fabiano, nervosos com o desespero da moça.
-Desculpa-me, Valente. Eu não sabia que causaria todo este alvoroço. Pensei que a Cissa soubesse de tudo.
-Claro que não, não houve tempo... Não soube de tudo o quê?
-Da tua iniciativa em salvar a vida do meu irmão.
-Hélio, estás a cometer um terrível engano!
-Óbvio que eu não acredito num envolvimento que tanto se ventila por aí entre tu e o meu sobrinho...
-Pela fé, queres deixar-me sozinho?
-Tudo bem, eu não quero causar mais conflitos. Mas eu quero agradecer-te pelo ato em prol do Kleber.
-Saias!
-OK, conversamos depois... –Hélio deixa a enfermaria.
-O que mais falta acontecer, Senhor amado?
E olhe que, só para aquele mesmo dia, faltam muitas coisas! Lopes, por exemplo, vem pessoalmente ao leito do saxofonista e lhe traz uma notícia surpreendente, algumas horas depois do tumulto causado por Hélio.
-Como estás agora, Valente?
-Tirando um corte de canivete na barriga, um chefe que não sabe interpretar contextos e uma noiva em fúria, eu estou maravilhosamente bem.
-E é a mais pura verdade.
-Como assim?
-Valente, estou a conceder-te alta médica. Já podes voltar para casa.
-Sabes o que é, Doutor? É que... Como é que eu direi isso, meu Deus? Acho melhor passar mais uma noite aqui, em observação. Vai que eu tenha uma recaída e precise voltar, não é mesmo?
-Estás com medo da conta astronômica que cobrarei por ter suturado a tua barriga, certo?
-Corretíssimo!
-Despreocupa-te. O teu melhor amigo pagou as despesas hospitalares.
-Perdão, acho eu que não entendi.
-Aquele homem que, segundo relatos, trouxe-te para a clínica, é professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Cheguei a ter aulas com ele, e é uma pessoa iluminada.
-O senhor terá que desculpar minha sinceridade, mas é difícil de acreditar.
-Que o professor pagou a tua conta?
-Que tu tiveste aulas com ele. O senhor tem cara de quem conhece a andropausa de trás para a frente enquanto ele, se muito tiver, tem uns trinta e poucos anos!
-A jovialidade e vivacidade do professor são cousas que eu nunca entendi. Bom para ele, não?
-Meu Pai, que dia é este?
-Em quinze dias, voltes aqui para que haja a retirada dos pontos.
-Prefiro ir ao posto de saúde.
-Cortesia da casa. Um gajo tão em alta conta do professor deve ser alguém realmente especial.
-Só posso dizer... Obrigado.
-Disponhas- Lopes deixa a enfermaria, e Valente levanta para voltar ao seu prédio. Não sabe ele que, ao abrir a porta do elevador, vê a noiva batendo descontroladamente a porta do apartamento duzentos e um.
-Cissa?
-Tu estás aqui? Não deverias estar no hospital recuperando-se do transplante?
-Ah, não. De novo não! O que aconteceu agora para bateres feito uma louca desvairada?
-Vim dizer umas boas verdades frente ao teu... Bem, tu sabes o que ele é, não?
-Foi realmente bom estares aqui.
-Contigo eu não quero dialogar.
-Mas falarás. Pensas que depois daquele escândalo todo ficarei sem direito à defesa? Estás muito equivocada- Valente destranca a porta- Vejas bem o que está sobre o sofá.
Cissa lê o recado que tato deixou para o amigo músico.
-"Não fiques preocupado comigo. Tive que resolver um problema, e acho que somente eu posso resolvê-lo. Mas eu estou bem. Só peço-te que não deixes de orar por mim. Um abraço. Tato". O que isto quer dizer?
-Que Tato não me pôs a par do problema vivido por seu pai; portanto, não tinha como eu saber e doar um rim!
-Isto não prova cousa alguma! Deve ser uma evidência falsa, plantada por vocês dois em conluio!
-Quanta imaginação! Já pensou em escrever uma sequência para “O Espetacular Homem-Aranha”?
-Não trates o meu amor como uma brincadeira.
-Tampouco tu ouses tratar a mim como se eu fosse um traidor.
-Mas é exatamente o que penso a teu respeito.
-Olhes a lixeira. Vejas a quantidade de comida que eu ingeri antes de ir ao orfanato hoje. Alguém que faz cirurgia não se entupiria logo cedo. As taxas seriam mais elevadas que a Torre Eiffel!
-Eu já falei que não vim aqui para conversar contigo, e sim dizer o que penso diante daquele imbecil!
-Com esta gritaria, certamente ele sairia do quarto. Prova cabal de que o Tato não está aqui!
-Só de ouvir tu mencionares o nome daquele sujeito, eu sinto vontade de matar os dois!
-O que eu preciso fazer para que tu entendas que eu não fiz operação nenhuma para salvar o irmão do Hélio?
-Ora, por favor, não me tomes como uma tola! O próprio Hélio admitiu que tu fizeste a cirurgia para doar um dos teus rins. Queria ver se fosse eu a paciente, e não ele. Pagaria todo o dinheiro do mundo para saber se tu farias o mesmo sacrifício.
-Não digas bobagem! Tanto faria como faço. Mas eu não tenho nada a ver com a cirurgia do Kleber, ponhas na tua cabeça!
-Queres saber como eu posso convencer-me de que tu e Tato não têm nada além de uma simples amizade? Coloca-o para fora do nosso apartamento!
-E quanto a ti? Em que momento irás colocar-se em meu lugar?
-Aquele imbecil está acabando com a tua reputação e com o nosso noivado, será que não entendes? Terás que escolher entre ele ou eu!
-Pretendes o quê com isto? Pressionar-me?
-Se toda esta situação absurda não te é o bastante, quem sabe assim entendas o quão nociva é a presença do Otávio nesta casa?
-Cissa, não vais usar-me como se fosse eu uma peça de jogo!
-Nem eu serei usada para ser ridicularizada pelo homem que eu escolhi! Já não aguento mais o que estás fazendo para torturar-me!
-A decisão de dar um teto a ele coube exclusivamente a mim!
-Mas está afetando esta porcaria de relacionamento, seu idiota!- a agressividade da vendedora fez Valente parar de rebatê-la por alguns segundos, completamente devastado com o ódio demonstrado pela moça.
-Hoje mais cedo, eu arrisquei a minha vida por conta de algo que me remetia a ti. Depois, fui humilhado. Não pela sexualidade que tu alegas desconhecer, mas por declarar, em alto e bom som, que eu não sou homem para que confies em mim. Agora, resume o nosso romance de quatro anos à “porcaria”?
-Valente, tu entendeste bem o que eu quis dizer.
-Com certeza. O grande problema deste caos que virou a nossa vida íntima é que ele pode revelar mais segredos teus do que os que supostamente eu guardo, não é?
Irritada, a moça chega até a porta do apartamento e declara, para depois deixar o prédio.
-Interpretes da maneira que te for conveniente!
Lentamente, o saxofonista caminha até a porta e a cerra. Em seguida, senta-se no sofá, onde chora em silêncio pela mais recente discussão. Tudo está mais calmo na clínica, quando Kleber acorda e vê a esposa velando o seu sono enquanto o irmão, ainda enganado por si mesmo, pode vê-lo por uma janela do quarto.
-Dora.
-Fales, querido.
-Por que o Hélio não entrou?
-O médico só permitiu uma visita por vez, meu amor. Como estás a se sentir agora?
-As dores passaram. Eu fui operado?
-Já. Foi uma verdadeira tormenta, mas a espera acabou. Daqui a nove dias, nós voltaremos para casa.
-Quem foi?
-Quem foi o quê, Kleber?
-Quem doou o rim para mim? Se tiver sido alguém que ainda é vivo, eu quero agradecer. Foi o Hélio?
-Não, meu amor. Quando o Hélio chegou, o Dr. Lopes já havia te levado para o centro cirúrgico.
-Verdade. Agora eu lembro. Mas ninguém descobriu de quem se trata?
-Não. Permanece o mistério. Querido, eu vou à cantina da clínica, e o Hélio ficará contigo, está bem?- Dora beija a cabeça de Kleber, que ouve a conversa entre a esposa e o seu irmão.
-Acho que descobri.
-O quê, Hélio? Estás a falar do doador anônimo?
-Por incrível que pareça, trata-se de Valente Valença.
-O teu saxofonista?- Dora fica atônita, e Kleber fecha os olhos, fingindo voltar a dormir- Tu tens certeza, Hélio?
-Certeza eu não tenho, mas ele estava aqui na clínica, com um curativo no mesmo lugar que o meu irmão. Tudo indica que foi ele, Dora.
-Como podes ter tanta certeza?
-Primeiro porque o Valente não é utente de planos de saúde. Segundo porque é coincidência demais o Kleber e ele estarem internados no mesmo lugar. Terceiro porque ele deu entrada na clínica pela manhã, exatamente quando o Kleber foi operado. O que eu não entendo é como ele ficou sabendo da situação do Kleber antes de mim.
-Só se o Tato contou-lhe.
-Mas como? O Tato nem deu as caras por aqui. Acho até que ele nem saiba do que houve com o pai.
-Otávio sabe, sim. Ontem eu fui procurá-lo no apartamento do Valente e intercedi pelo Kleber. Meu filho negou a ajuda ao pai, mas deve ter comentado algo do tipo para o gajo que mora com ele.
-Dora, como tu pudeste? O Tato esperava que tu o procurasses para uma reconciliação com o Kleber. Agora está claro para ele que a tua prioridade é o pai, e não o filho.
-Eu precisava fazer algo para salvar a vida do Kleber, estava desesperada!
-Então, tudo se encaixa. O Tato contou ao Valente o problema de meu irmão e ele ofereceu-se para fazer o teste de compatibilidade.
-Nem tudo está tão claro assim, Hélio. Por que o Valente se sujeitaria a doar um rim ao meu marido? O Kleber o detesta por pensar que ele vê o Tato com segundas intenções.
-As cousas mudaram de figura, Dora. Mesmo que Kleber e Tato não voltem a se falar, a vida do meu irmão estava em risco. E o Kleber jamais aceitaria um rim doado pelo Tato, já que estão sem se falar.
-Nem do tal Valente.
-Por isto a história do doador anônimo. Se o Kleber soubesse que o Valente seria o doador, teria recusado-se a fazer a operação.
-Talvez o Tato não tenha contado ao Valente o problema do pai.
-Por que pensas nesta hipótese?
-Porque ontem eu fui ao Recifeeling procurar-te, e contei para a Alessandra que o Kleber estava passando por um problema grave e que estava internado aqui. No mesmo momento, havia começando o show do Valente.
-Tu achas, então, que...
-A Alessandra pode ter soltado a informação ao Valente e ele veio checar.
-Seja como for, as duas suposições levam a crer que o Valente é o doador misterioso.
-Mas ainda há pontas soltas, Hélio. Caso o Tato tenha convencido o Valente de doar o rim, por que ele ainda não apareceu aqui, para visitar o pai?
-A rusga que o Tato tem com o Kleber é forte demais, Dora. Nenhum dos dois dará o braço a torcer.
-Seja como for, o importante é que o meu marido está a salvo. E se foi mesmo o Valente quem o salvou, que Deus o recompense.
No tarde do dia seguinte, Olívia e Nicolas estão no Sófocles, o restaurante que fica situado no interior da universidade em que ambos fazem a pós-graduação. Na mesa de número 4, longe do balcão da gerência, os amigos conversam.
-Gosto bastante de escutar as canções de Carla Abigail, Centro Cristão da Cidade, HopeSound... São os meus preferidos. E tu? Ouves o quê?
-Como assim?
-No que é tocante à música gospel. O que ouves?
-Bem, eu... Gosto muito do que toca no momento, sabe? Coisas que elevam um pouco a nossa alma e, principalmente, o nosso espírito.
-Cites alguma. Quem sabe eu não goste, Nicolas?
-Como gosta da minha companhia?
-Talvez até mais.
-Olha, eu gosto muito daquela... Daquela que toca na novela evangélica, que foi reprisada um dia desses. Depois que começaram a repetir, eu me apaixonei, entende?
-Por isto que eu acho importante avaliar o produto que o nosso ecrã exibe. Não é todo produto agradável e construtivo. Mas é interessante como, neste país, a dramaturgia bíblica vem conquistando cada vez mais espaço.
-Realmente, porque... Desculpa o que eu vou falar, Olívia.
-Fiques à vontade, Nicolas.
-Mas é cada nojeira que passa na televisão daqui. Mãe batendo na filha com direito a revide, prostituição, sexo, falta de ética, vilão que só é punido no final, criminalidade... Sinceramente... O pior é que essas coisas não saem do ar porque tem gente que se alimenta dessa lavagem cerebral.
-Pois é. Tem gente que acompanha novela para lazer, mas liga o televisor e vê o quê? Uma extensão das notícias sangrentas do telejornal.
-Horrível. Esse tipo de coisa nem pagando entra na minha casa.
-Dois guaranás pra mesa 4- anuncia o gerente, a respeito das latas de refrigerante solicitadas por Olívia e Nicolas.
-Eu vou buscar no balcão...
-Não, senhorita. Eu convidei, eu faço questão de trazer.
-Tu não existes, Nicolas...
O gerente faz anotações virado de costas para Nicolas, e ele aproveita a distração para colocar um pequeno comprimido efervescente numa das latas, trazendo a bandeja de plástico à mesa em que está com Olívia.
-Vamos brindar?- Nicolas entrega a lata aberta à mestranda e um canudo, abrindo o seu refrigerante em seguida.
-A quê, Nicolas?
-Ao nosso sucesso, tanto no mestrado quanto no doutorado. Saúde.
-Saúde, então- os jovens brindam e Olívia bebe o refrigerante.
-Posso te confessar uma coisa, Olívia?
-O quê?- continua ingerindo a bebida.
-Eu tenho pra mim que a gente vai viver momentos mais felizes ainda.
-Deus queira, Nicolas.
-Nada como me cercar de pessoas exatamente como você.
-O que eu tenho de tão especial?
-A sua fé. Ela te faz diferente de todas as moças daqui.
-Não devo ser a única protestante aqui no Brasil.
-Disso eu sei, mas fé como a sua, Olívia, vai ser difícil de encontrar novamente...

10/11/2018

VALENTE VALENÇA/ CAPÍTULO 23


Eis que o professor de Olívia passa pelo ladrão à toda velocidade, logo vendo o saxofonista ferido sobre a calçada. Corre para socorrê-lo, abraçando e colocando-lhe de pé.
-Consegues andar? Vamos para o hospital.
-Não tem nenhum pronto-socorro perto daqui.
-Há uma clínica. Venhas, Valente, eu te levo.
O músico põe a mão sobre o ferimento, mas o misterioso homem coloca a sua mão sobre a do rapaz, agora ensanguentada.
-Como é que o senhor...
-Confies em mim. Peço-te apenas isto.
O professor conhecia o trajeto correto para a clínica de um renomado médico da capital portuguesa: ninguém menos do que Jaime Lopes. Um enfermeiro é o responsável por receber a aflita dupla.
-Moço, ajuda-me, por favor.
-O que aconteceu?
-Atingiram-me com um objeto num assalto. Deve ter sido um canivete.
-Rápido, levem-no para a sala de curativo- mais dois enfermeiros conduzem o saxofonista, colocando-lhe sobre uma cadeira de rodas, mas são interrompidos pelo profissional que os atendeu à porta da clínica- Um momento: tens a carteira de utente?
-Se eu tiver uma hemorragia aqui dentro, o teu rosto é que vai ficar dormente com o safanão que te darei!- o manso Valente deu-se ao direito de ser agressivo, puxando o colarinho da camisa do enfermeiro.
-Tudo bem, tudo bem, podem levá-lo. Mas temos que avisar a algum responsável.
-Acalma-te. Eu sou o responsável.
-E o senhor, o que é do rapaz?
-O seu melhor amigo.
-Preciso preencher algumas informações sobre o gajo- o funcionário lança mão de uma prancheta- Nome completo?
-Valente Valença.
-Data de nascimento?
-Vinte e cinco de janeiro de mil novecentos e noventa e oito.
-Filiação?
-Órfão.
-Documento de identificação?
-Na calça que está ele trajando há o cartão de cidadão- o professor faz menção ao que é equivalente à carteira de identidade em Portugal.
-Tipo sanguíneo?
-A positivo.
-Tem algum problema relacionado à diabetes ou à pressão arterial?
-Não, é perfeitamente saudável.
-Endereço completo?
-Rua dos Fanqueiros, número trezentos, apartamento duzentos e um.
-Telefone para contato?
-Não possui número fixo, e o celular acabou de ser surrupiado. Daí o ferimento.
-E com relação à...
-Valente não possui nenhum plano de saúde, mas os gastos serão cobertos por mim.
-Nossa, o senhor sabe de tudo mesmo... Pedirei que o senhor aguarde aqui mesmo. E, assim que eu tiver informações a respeito do estado de saúde de teu amigo, avisarei. Está bem?
-Obrigado.
Hélio entra estabanadamente na clínica de Lopes, indo à recepção para saber notícias a respeito de seu irmão. O professor senta numa das poltronas da recepção, unindo as mãos e fechando os olhos, rezando em voz baixa.
-Bom dia. Eu preciso de informações a respeito do paciente Kleber Lacerda Goulart. É meu irmão.
-Só um momento, senhor... És o Hélio?
-Sim, sou eu.
-A tua cunhada, Isadora, havia nos avisado sobre tua vinda- esclarece o recepcionista da clínica.
-Como está o Kleber?
-Neste exato momento, na sala de cirurgia.
-Cirurgia? O que aconteceu com ele?
-Teve que ser submetido a um transplante de rim. O quadro que ele apresentou foi de insuficiência renal aguda.
-Santo Deus!- leva as mãos à cabeça- E onde posso encontrar a minha cunhada, moço?
-Provavelmente ela está na antessala do centro cirúrgico. Basta seguir em frente, entrar no terceiro corredor à direita e subir a rampa. Ela deve estar esperando informações a respeito da cirurgia.
-Faz muito tempo que ele entrou para a operação?
-Cerca de quarenta e cinco minutos. A cirurgia tem previsão de, no mínimo, quatro horas.
O tempo passa e parece ser uma verdadeira tortura para Hélio e Dora. Mas Lopes sai do centro cirúrgico com boas notícias.
-E então, Doutor?
-Como é que está o meu irmão?
-Fiquem tranquilos. O transplante do Kleber foi um sucesso.
-Ah, graças a Deus. Eu posso ver o meu marido, Doutor?
-Ainda não, Dora. Ele terá que ficar em observação por algumas horas. Mas os enfermeiros já o levaram para a sala de recuperação. Assim que ele for transferido para o quarto poderão entrar, mas apenas um de cada vez.
-Doutor, quanto tempo o meu irmão ficará internado?
-Se tudo correr como o previsto, o Kleber aqui ficará por um período de nove dias, sendo que antes iniciaremos o tratamento com os imunossupressores, para evitar a sua rejeição ao órgão. Claro que o doador ficará por menos tempo internado... – Lopes percebe que falou demais e procura dar o mínimo de informações possível.
-Doador?- Dora estranha a revelação- Pensei que o órgão do Kleber havia sido obtido no banco de doadores...
-Queres dizer que alguém fez a cirurgia para doar um rim ao Kleber?
-Bom... Sim, é verdade. Alguém ficou sabendo da situação do teu irmão e fez os exames para saber se era compatível ou não. A pessoa preencheu todos os requisitos para submeter-se à operação.
-Mas ontem tu tinhas garantido de que ainda entraria em contato com o banco de doadores.
-E entrei, mas só obtive resposta poucos minutos antes da chegada do nefrologista. Eles possuíam um órgão apto ao transplante, só que na madrugada apareceu esse doador. Por esta razão, levamos Kleber ao centro cirúrgico tão cedo.
-Quem é esta pessoa, Lopes? Eu quero agradecê-la, cumprimentá-la por ter salvo a vida do meu marido.
-Infelizmente não poderás fazer isto, Dora.
-Por que não? Minha cunhada tem todo o direito, Doutor; aliás, é sua obrigação falar com o doador e agradecer.
-A pessoa que doou um dos rins para o Kleber pediu sigilo absoluto sobre a sua identidade.
-Não entendo. Qual é a razão de tanto mistério, Lopes?
-Dora, eu já disse até mais do que eu deveria. Vamos respeitar a privacidade da pessoa que aceitou fazer o transplante, por favor. Se vocês dão-me licença, eu tenho que almoçar, já que mais tarde tenho consultas agendadas. Com licença.
-Tudo bem, Doutor. Muito obrigada por tudo- Dora espera o médico sair para confabular com o cunhado- O que pensas a respeito, Hélio?
-Muito estranho, Dora. Por que alguém doaria um rim ao Kleber e preferiria permanecer no anonimato?
-O importante é que agora tudo acabou. Graças a Deus, o meu marido está se recuperando e, em breve, voltaremos juntos para a nossa casa.
-Ainda assim, eu averiguarei esta história. O doador do meu irmão não ficará na obscuridade, ainda que assim o deseje. Eu vou dar um jeito de descobrir quem é esta pessoa.
Antes disso, Valente recebe uma transfusão de sangue pouco depois de ter levado pontos, a fim de cerrar o ferimento que ele levou. A perda acabou por deixá-lo um pouco fraco, sendo colocado numa das camas da enfermaria da clínica de Lopes após o término do procedimento. Mesmo sem permissão dada por enfermeiros ou por qualquer outro funcionário do recinto, o professor entra no local. O jovem músico abre os olhos e emula um tímido sorriso.
-Obrigado por ter me trazido até aqui. Deus colocou-te no meu caminho. Se o senhor não tivesse aparecido, acho que...
-Não penses nisso agora. Foi só um momento ruim, mas já acabou. O importante é que tu ficarás bem. Procures descansar.
-Que horas são?
-Onze da manhã.
-Cissa costuma ligar-me neste horário. Tenho que avisá-la sobre o que aconteceu.
-Não deverias ter reagido ao assalto. Foi um grande livramento que recebeste.
-Mas é que eu pensei no celular.
-Podes comprar outro.
-A questão não é esta, é que foi um presente da minha noiva... Meu Deus, eu tenho que avisar-lhe o que houve comigo. Eu posso pedir um favor?
-Dizes.
-O senhor pode ligar para a minha noiva e contar o que aconteceu comigo? O número da Cissa eu sei de cor.
-Notícias como esta não devem ser dadas por telefonemas, Valente, mesmo que estejas fora de perigo. Acalma-te, porque eu mesmo darei a notícia para a tua noiva.
-Ela trabalha numa loja do shopping chamada PORTrajes...
-Sei exatamente onde fica.
-Se bem que, neste horário, ela deve estar ensaiando com a Irmã Nete lá na Comportas...
-Não tens medo de dizer a mim estas coisas, revelando detalhes de tua vida? Conheceste-me hoje.
-Não sei responder-te o porquê, mas o senhor inspira em mim muita confiança. Aliás, até sei: porque, graças a Deus, o senhor trouxe-me até aqui. A esta hora, eu poderia... – o músico demonstra tristeza.
-Gajo, por que choras? O tormento já passou, estás a salvo.
-É que... Tudo está tão difícil...
-Já deverias saber que as tempestades, por mais fortes que sejam, não duram para sempre.
-Até sei, mas ainda sou de carne e osso...
-Em que queres transformar-se, então? Não possuis superpoderes.
-Que, aliás, seriam muito bem-vindos em minha vida.
-Sabes perfeitamente bem que não existe ser humano perfeito. Se quiseres tu resolver os problemas que, sozinho não consegues findar, apeles apenas para quem estiver com os ouvidos inclinados a você.
-Talvez seja isto o que mais eu tenha feito a minha vida inteira, mas não consigo ver as pessoas amando a mim por quem eu sou, e sim por quem eu deveria ser na sua concepção. Há vezes que eu penso que Deus colocou anjos para que fossem meus amigos e eu não me sentisse desamparado. Mas, em outras, o meu pensamento diz que somente Ele está comigo, e mais ninguém.
-Se apenas Deus estiver contigo, não te faltará ninguém. Pelo tempo que crês Nele, deverias saber. Fiques certo de que eu contatarei a tua noiva.
-O senhor estava esperando por mim todo este tempo lá fora?
-E esperaria mais, se necessário fosse.
-Por quê? Quem é o senhor?
-Se soubesse responder a mesma indagação, só que para si mesmo, saberias de quem eu me trato. Com licença- o professor deixa a enfermaria.
-Tomara que eu não me arrependa de ter confiado neste homem...
Naquele dia que parecia durar para sempre, o professor vai até a igreja que Cissa frequenta com o noivo, tendo ela ligado dezesseis vezes para o namorado depois do fim do ensaio, mesmo o aparelho alegando estar fora da área de cobertura.
-Não atende! O Valente não atende! Parece até que faz de propósito. Para que foi que lhe dei um celular? Para não me atender quando eu ligo?
-Querida, calma! Talvez o teu noivo esteja ocupado no orfanato daquela... Daquela freira lá.
-É isto o que me preocupa, Irmã Nete. Valente não tem o que fazer naquele lugar- Fabiano volta ao templo e flagra a conversa, e Cissa modifica o tom irritadiço que vem usando- Tudo bem que, às vezes, ele lê histórias para os órfãos, e conversa com a madre, mas nunca demorou tanto. Eu mesma fui trabalhar hoje cedo, saí da loja para o nosso ensaio e nada do meu noivo.
-Ainda mais num lugar com nome de santo... Misericórdia!
-Desejas alguma coisa?- Fabiano é solícito com o professor, que adentra as portas da igreja.
-Preciso falar com a Clarissa.
-Sou eu mesma. Quem é o senhor?
-Eu vim trazer notícias a respeito de Valente, o teu noivo.
-Bendita a hora que o senhor chegou, já está aflita.
-É cousa de Deus mesmo!- brada Nete.
-O que houve? Onde ele está? Não me dizes que com o desviado do Otávio?
-Valente está na Clínica Jaime Lopes. Eu o socorri há algumas horas.
-O Valente, socorrido? O que foi que aconteceu com o meu noivo?
-Uma tentativa de assalto. Ele tentou impedir que levassem o seu celular e foi ferido.
-Ah, meu Deus. Foi minha culpa! O Valente ficou ferido por minha culpa!
-Felizmente o pior já passou, Clarissa.
-Eu tenho que ver o meu noivo! Eu preciso ver o Valente agora mesmo!
-Acalma-te, querida! Tu não tens condições de sair com o carro à toda velocidade, ainda por cima dirigindo sozinha. Deixes que eu te acompanhe até o hospital... Fabiano!- Nete solta um berro ensurdecedor- Pegues já o molho da menina e abras o carro, tu vais dirigir!
-O senhor tem certeza de que o meu Valente está bem?
-Está fora de perigo. Ele pediu para avisar porque estava muito preocupado contigo.
-Então, não percamos mais um só minuto. Obrigada, muitíssimo obrigada.
Cissa, Fabiano e Nete deixam a igreja em direção à clínica, deixando o pastor conduzir o automóvel da vendedora. Demoram alguns minutos para chegar... Tempo suficiente para que um mal-entendido aconteça no local, causado pelo proprietário do Recifeeling, ainda que não seja sua intenção provocar um novo desentendimento entre o saxofonista e sua noiva.
O fato ocorre quando Dora tem a permissão de ver Kleber quando este finalmente é transferido para o quarto, ainda sonolento devido ao tempo que ficou sob efeito de anestésicos. Ficou acordado entre ela e seu cunhado que a esposa seria a primeira a ver o paciente. Hélio caminha pela recepção e vê dois médicos conversando na entrada do corredor que dá acesso à enfermaria. Para não alarmar a recepção, e aproveitando que os especialistas estão dialogando perto do balcão, passa ele despercebido. Sua intenção é clara: descobrir quem é o doador sigiloso.
Passando por vinte e dois leitos da enfermaria, chega ao vigésimo terceiro e sequer chega a ler o que a prancheta diz sobre o paciente, pois fica assustado ao se deparar com o seu funcionário mais famoso.
-Valente?
-Hélio? Tu aqui?
-Poderia perguntar-te eu a mesma cousa.
-O que estás fazendo aqui, Hélio?- o rapaz, que estava deitado, levanta-se para ficar sentado na cama, mas coloca a mão sobre o curativo, do lado direito da barriga.
-O que é que tu tens?
-Nada, eu só não deveria ter levantado. Ainda é recente, mas eu vou ficar bem. E quanto a ti?
-Bem, o meu irmão está internado aqui desde ontem e passou por uma cirurgia de emergência, acabou de... – o proprietário do Recifeeling tira uma conclusão precipitada- Não pode ser...
-O quê?
-Há quanto tempo tu estás internado nesta clínica, Valente?
-Desde hoje de manhã. Acho que eram umas oito horas quando o médico veio ver-me.
-De manhã...
-Hélio, fales-me o que está acontecendo!
-Tu, com um corte na barriga, e estando aqui desde cedo, queres que eu pense o quê, Valente? O que eu não entendo é como o Tato ficou sabendo para avisar-te.
-Por favor, Hélio, eu não estou entendendo.
-Estás, sim, e muito bem. Tu e o meu irmão no mesmo hospital, debilitados... Quem não está entendendo nada sou eu! Porque o Kleber chegou a pedir a tua demissão, agora tu fazes isto por ele?
-Isto o quê, homem de Deus? Fales!
-O meu irmão acaba de passar por um transplante de rim e o doador, segundo o Dr. Lopes, não quer ser identificado, por motivos que desconhecemos tanto quanto a sua identidade. Agora tu me apareces aqui? Tudo óbvio demais: foste tu que salvaste a vida do Kleber doando um dos teus rins!
-Como é?- Cissa entra na enfermaria, acompanhada de Nete e Fabiano- Eu não estou acreditando no que acabei de ouvir! Quer dizer que eu estava preocupada com o teu estado de saúde quando, na verdade, inventaste esta lorota de assalto para que eu não soubesse o que tu fizeste?
-Cissa, o que estás pensando?
-Eu não estou pensando, Valente! Estou constatando!- altera a voz- Tudo preparado, não é? Até contrataste um farsante para fazer-me de boba com a mentira do assalto, mas a tua máscara caiu!
-Por favor, Clarissa, acredites em mim. Eu fui vítima de um assalto hoje mais cedo...
-Mentira! Deves ter dado um fim no celular para que eu acreditasse na história do assalto. Mas está bem claro por que razão estás internado aqui. Tu doaste um rim para o pai do Otávio! O que tu fizeste foi pelo desgraçado do Otávio!